Nesse dia, na embaixada de Portugal em Brasília, surgiu uma chamada telefónica feita, de Lisboa, pelo jornalista Jorge Rodrigues, que dirigia e estava em direto no programa cultural "Ritornello", da Antena 2 e, simultaneamente, na Rádio Cultura brasileira, uma iniciativa com a amável colaboração em Brasíla do então secretário de Estado da Cultura, Pedro Bório.
A questão que me era colocada, enquanto embaixador, tinha alguma delicadeza. Segundo Jorge Rodrigues me informava, a editora francesa Gallimard havia decidido publicar, na sua prestigiada coleção "La Pléiade", as obras completas de Augusto Maria de Saa. Muito diretamente, eu era inquirido sobre se havia algum conflito entre Portugal e o Brasil que pudesse justificar que, até à data, o importante espólio de Saa não tivesse merecido, em qualquer dos dois países, um tratamento editorial à altura da magnitude da sua contribuição para a cultura luso-brasileira.
A minha resposta foi perentória: não havia, que eu soubesse, o menor conflito mas também desconhecia a razão pela qual uma recolha exaustiva das obras de Saa não havia sido feita num dos dois países de língua portuguesa a que ele estava fortemente ligado.
Como era sabido, Saa nascera em Portugal em 1854. Anos mais tarde, partira para o Brasil em busca de melhor vida e viria a morrer tragicamente, em Lisboa, em 1908, no quadro de uma visita fortuita ao seu país natal. Porém, toda a sua obra fora escrita em terras brasileiras e era aí, com naturalidade, que o essencial dos estudos saaianos se desenvolviam. A razão pela qual a "Aguilar", no Brasil, não tinha editado Saa em papel bíblia era uma questão para mim nebulosa. Do mesmo modo, era incapaz de perceber o motivo que levara a nossa "Lello" a nunca empreender em Portugal tarefa semelhante, a exemplo do que fizera para Eça ou Pessoa, entre outros.
Agora, em edição francesa, a obra de Saa passaria a estar disponível. Lembrámos, na conversa, os "Prolegómenos à teoria dinâmica do conflito", obra de ciências políticas e antropológicas, publicado por Saa ao tempo em que dirigia a Gazeta Democrática de Paranoá. Igualmente, seria acessível ao grande público francófono o "Olhai a Europa!", opúsculo-manifesto onde, pela primeira vez, se refere uma possível "carta constitucional" europeia. Também passava a ser consultável o texto "As volteaduras da musicalidade recorrente", texto
de teoria musical, tema central
de um recente seminário interdiscipinar realizado pelo professor holandês Schopp
Innkop, em Hobbart, na Tasmânia, organizado pelos "Círculos Musicais
Heineken", com apoio da prestigiada "Fundação Foster". Finalmente, "O equilíbrio da ruptura no voltâmetro de potência suspeitada", obra no domínio da física que tinha uma edição em servo-croata, infelizmente esgotada, passava a ser de fácil acesso. Tudo apenas em francês, infelizmente.
Nessa conversa com Jorge Rodrigues falou-se também dos trabalhos sobre a vida e obra de Saa, em curso
no Departamento de Linguística do polo experimental de Taguatinga,
dependente da Universidade Católica de Abadiânia Leste (UCAL). Além
disso, foi referida a conhecida dedicação do
Professor Romário Ibirapuera, da Universidade Espírita de Rondónia, figura
incontornável da investigação saaiana, em especial depois da iniciativa
da reedição desse marco linguístico, há muito esgotado e objecto de
especulação nos alfarrabistas, que era a "Recolha crítica de
interjeições tupis", que Saa publicou, em edição do autor, em 1887.
O programa contou com outros intervenientes, durante mais de uma hora de recolha de depoimentos. Um
professor universitário brasileiro leu dois inspirados poemas do tempo
tropical de Augusto Maria de Saa, familiares do autor perdidos na Rondónia deram conta
de como a sua memória continua a ser acarinhada na família índia que
criou na Amazónia. Também revelações sobre correspondência entre Saa e Eça de Queiroz existente nos arquivos de São Petersburgo foram feitas por um
especialista em temas russos. Figuras conhecidas do meio académico brasileiro sublinharam a
explosão crescente de estudos saaianos que então atravessava o Brasil, quiçá
(melhor diria, "quissá"...) premonitória da abertura próxima de um
cátedra.
O programa e algumas das revelações nele feitas não deixaram de ter consequências. Um conhecido especialista de Eça de Queiroz telefonou de Marrocos a Jorge Rodrigues, alertado para a nova contribuição que seria necessário acolher em futuras recolhas epistolares. Um outro autor, com obra sobre o Regicídio de 1908, em cujo cenário de tragédia a morte de Saa tem lugar, inquiriu de imediato sobre o tema, consciente da lacuna que, com os factos relatados no programa, se abria na temática. Eu próprio fui contactado, pouco tempo depois, por uma muito conhecida jornalista e apresentadora televisiva portuguesa, que pretendia fazer um trabalho sobre essa figura luso-brasileira que, lamentavelmente, "conhecia muito pouco". Meses mais tarde, ao recordar Augusto Maria de Saa, à mesa da embaixada em Brasília, num jantar oferecido a um intelectual português de visita, recordo bem uma convidada dizer "já li coisas dele, mas é uma tristeza a sua obra ser tão pouco divulgada". E claro que tinha toda a razão! O nosso atual embaixador na Etiópia foi, aliás, testemunha presencial deste episódio, prova flagrante de como temos de ir muito mais longe neste esforço de divulgação dessa grande figura que é Augusto Maria Saa, talvez começando por fazer uma edição bilingue etíope-português do conhecido estudo de Saa sobre "As origens alentejanas do Preste João". A diplomacia não é só economia!
Foi assim esse programa, que deu mesmo origem a um blogue, no 1º de abril de 2005. Passaram oito anos. Parece mentira...