Álvaro Guerra, que já aqui recordei um dia, foi um dos poucos embaixadores oriundos do mundo fora da carreira diplomática por quem o Ministério dos negócios estrangeiros sempre manifestou genuíno respeito. A história que hoje relato passou-se em 1996, ao tempo em que ele era nosso representante junto do Conselho da Europa (CdE).
Nessa tarde, senti o Álvaro um pouco embaraçado durante a conversa que comigo teve, no caminho entre o aeroporto e hotel em Estrasburgo, onde eu representaria Portugal, no dia seguinte, no Comité de Ministros do CdE, nesse que era o meu primeiro ano de governo. Estava mais lacónico do que era costume e, uma hora depois, ao deixar-me à porta da residência do secretário-geral da organização, onde os membros dos governos tinham um ritual jantar, surpreendeu-me com a frase: "logo à noite, espero por si no hotel. Precisava de falar a sós consigo".
Fiquei intrigado. Eu tinha uma excelente relação pessoal com Álvaro Guerra, uma figura da intelectualidade portuguesa que conheci logo após o 25 de abril, cujo humor e simpatia, depois complementados pela vivacidade inteligente da Helena, sua mulher, transformavam as minhas idas a Estrasburgo em belos momentos de amena cavaqueira, onde a política portuguesa era sempre percorrida com apurada ironia. E grande cumplicidade. Que quereria o Álvaro? Um novo posto? Ele estava há pouco tempo no CdE, pelo que talvez me quisesse sensibilizar para algum problema de pessoal. Logo se veria.
Os jantares em casa do secretário-geral do CdE, que tinham lugar todos os seis meses, eram sempre precedidos de uma conversa "au coin du feu", com um convidado. Nessa noite, entrei na sala lado o lado com o ministro croata dos Negócios Estrangeiros, Mate Granic, e, por um acaso, sentámo-nos um em frente ao outro, nos dois melhores sofás individuais da sala.
(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)
(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)
Eu conhecera Granic, meses antes, em Zagreb. No quadro de um discreto périplo que havia feito à volta da Europa, acordara com ele uma troca de apoios: a Croácia votaria favoravelmente a nossa candidatura ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e nós dar-lhe-íamos o nosso voto para a sua pretensão de entrar para o CdE. Diga-se que esta última candidatura estava longe de ser consensual: o regime croata mantinha ainda falhas no tocante à observância de alguns princípios da ordem jurídica protegida pelo CdE e, por essa razão, alguns Estados membros mantinham reservas quanto a esta adesão. Por "realpolitik" e particular interesse nacional, mas igualmente pelo facto de considerarmos que uma integração da Croácia no CdE era a melhor forma de promover a observância de tais obrigações, o governo português, a que eu pertencia, havia optado por dar o seu apoio à pretensão croata, contrariando abertamente a posição que era defendida pela missão portuguesa em Estrasburgo, chefiada por Álvaro Guerra. No dia seguinte a esse jantar, a anteceder a reunião do Comité de Ministros, teria lugar a "foto de família", com os membros do governo e os embaixadores, que consagraria a entrada da Croácia na organização.
Regressei ao hotel e, no "hall", estava já o Álvaro Guerra. Sentámo-nos para uma bebida no bar e ele revelou-me a razão pela qual queria falar comigo: vinha pedir-me o favor de o dispensar de estar presente na cerimónia do dia seguinte. Álvaro Guerra fora embaixador em Belgrado e, tal como a esmagadora maioria dos colegas portugueses que haviam tido a experiência de servir na capital jugoslava (hoje da Sérvia), Belgrado, Álvaro "went native" e assumia uma posição fortemente pró-sérvia, com muito escassa simpatia (e isto é um "understatement"...) pela Croácia.
Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo discreto. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).
Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci.
Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo discreto. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).
Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci.
Álvaro Guerra não se zangou comigo, como também o não fazia quando eu combatia, com ardor e ironia, a sua "aficción" tauromáquica. Lembrei-me ontem dele, com bastante saudade, quando intervim na mesma sala, num diferente contexto. O Álvaro morreu em 2002. Acho que ficaria contente se soubesse que, nos dias de hoje, dirijo o Centro Norte-Sul, do "seu" Conselho da Europa. Estrutura da qual a Croácia ainda não é membro, mas a que estou a tentar que adira. Desta vez, não em nome de Portugal, mas sim do próprio Conselho da Europa.
12 comentários:
Passei em Dubrovnick duas vezes no ano passado. Bela cidade histórica, separada por duas colinas da Bosnia vizinha, donde os bosnianos não se privaram de bombardear Dubrovnick.
A historia deixa por vezes recordações tenazes. Tenho uma certa antipatia pelos Croatas. Direi que é um povo que parece ter o fascismo no sangue. Quem não recorda os Oustachis, de sinistra memória .Foram bons auxiliares dos alemães durante a ultima guerra , e muitos foram os patriotas e resistentes assassinados pelos croatas.
Com a "compreensão" do povo croata e o apoio ativo do clero católico, os Oustachis instauraram uma das mais sangrentas ditaduras da segunda guerra mundial. Massacrando aldeias inteiras ou exterminando milhares em campos de concentração.
Os oustachis tentaram de converter pela força, os servos, ao catolicismo. Os que continuaram na ortodoxia foram exterminados. O campo de Jasenovac é conhecido.O ministro da cultura croata disse um dia : " 1/3 dos Servos deve ser convertido, outro 1/3 exterminado e o outro 1/3 expulso do estado independente croata.
O regime oustachi é culpado da morte de 60.000 Judeus, 550 000 Servos, 20 000 Croatas, 90 000 Bosniacos (Muçulmanos), 50 000 Montenegrinos , 30 000 Eslovenos e 40 000 Ciganos.
O que é curioso, é que no fim da ultima guerra, muitos fascistas croatas fugiram com os nazistas alemães para a América do Sul. E também aí demonstraram a tendência fascista .
O chefe dos oponentes ao presidente boliviano Evo Morales é um milionário de origem croata, filho dum oustachi.
A rica provincia de Santa Cruz, que procura separar-se da Bolivia, como a Croácia se separou da Yougoslavia, é agitada por um partido abertamente xenofobo, a Falange "socialista" boliviana ( como noutros tempos o "nacional-socialismo" na Alemanha), no qual a saudação - braço estendido - faz pensar ao franquismo, e a União da Juventude, braço armado dum comitê criado pelos croatas.
Compreendo a atitude do seu Amigo Alvaro, Sr. Embaixador .
Comentei o post que refere no início deste (não sei porquê como "anónimo") da seguinte forma:
"Foi durante a sua missão em Estrasburgo que o Álvaro Guerra escreveu, em outras coisas, bem entendido, as “Crónicas Jugoslavas”, uma elegia amarga e raivosa sobre o fim trágico da Jugoslávia que tão bem conhecera e amara desde que servira em Belgrado.
O post traz-me à memória, com grande nitidez, a vivacidade e boa-disposição dos longos serões na Rue de l'Orangerie, quase sempre antecedidos pela excelência gastronómica garantida pela Helena.
Tive mais sorte do que o Embaixador e pratiquei com ele, várias vezes, a “route des vins”, com paragens obrigatórias em Liesel, berço do “fois gras” que aí foi inventado, e em Munster, para o queijo. E, depois de reservas feitas com, pelo menos, três meses de antecedência, uma das catedrais da cozinha francesa: L’Auberge de l’Ill.
Foi um dos homens mais generosos (e delicados) que conheci. Meu amigo.
Também tenho saudades."
0 Álvaro Guerra "went native" em Belgrado mas como jugoslavo, não como sérvio. Não odiava os croatas e escreveu belíssimas páginas sobre Mostar e Dubrovnik martirizadas.
Ora a adesão da Croácia independente ao CdE foi a confirmação de que a dissolução da Jugoslávia, motivada por sórdidas razões de revanchismo e secas considerações de "real politik", era irreversível. Acarretou também a demonização obscurantista e irracional de uma Sérvia caricaturada, friamente promovida pelos próprios fautores da tragédia dos Balcãs.
Eu sei, eu estava lá.
Era contra isso que o Embx. Guerra lutava.
Eu sei, eu estava também lá.i
tem ai uma gralha "zabreg" ,
deve ser a capital da Borduria..
bem haja
Eu recordaria o papel do jornalista Alvaro Guerra, da "Republica", no ano de 1974, na ligação entre a oposição nao comunista e o "movimento dos Capitães" (quem também estava nessas lides era o Carlos Albino). Em 1974 íamos todos almoçar ao Mealhada - por amizade do Mário Mesquita eu tornara-me colaborador do "Republica", sob a direcção ( de redacção, o director era o Dr.Raul Rego) do Alvaro Guerra (" este texto esta enorme, pá: corta"). Depois do 16 de Março, com Melo Antunes nos Açores, eu nao acreditava já na viabilidade do movimento militar. O Guerra um dia explodiu. : " nao sabes o que dizes, pá!". Ele sabia, nao podia dizer. Na manha do dia 25 de Abril percebi que eu nao sabia o que dizia. O Alvaro sim.
E eu que não sou nada nem ninguém, apenas recordo o casal, o Alentejo e a Helena, uma das mulheres bonitas e inteligentes que conheci!
Caríssimo,
Aqui entre nós: Quantos mais "deals" pode revelar ter feito? Certamente tema de futuras indiscrições? Cá as esperamos. Mas não demore muito!
Abraço,
Gilberto
A primeira vez que visitei a Jugoslávia ofereçi um carro ao então Presidente das Rpublicas Josip Broz Tito. E não o fiz por motivos ideológicos; foi por motivos económicos.
José Barros
um homem sério, no jornalismo na na literatura e na diplomacia, não sei porquê agora um pouco esquecido, os livros dele, digo.
grande confusão e melting pot isto dos balcãs...
@Defreitas,
Para além da sua febre opinativa, é impressionante a ignorância e a coragem com que se mete em assuntos que desconhece, com que não hesita de falsificar a história e de ofender, decuplicando o seu número e sujando a sua memória, as vítimas do fascismo croata durante a Segunda guerra mundial. E deitar as ofensas, à beira do racismo, a um povo inteiro de que evidentemente sabe pouco.
Se conhecesse o assunto, teria mencionado que os os oustachis beneficiavam de apoio de, aproximadamente, entre 5 (versão dos reduccionistas) e 15 (maximalistas) por cento da população: a larga maioria da população croata estava nas fileiras dos partisãos de Tito, formando, por exemplo, em 1943, onze das vinte e seis divisões (das restantes, duas eram sérvias, uma montenegrina, sete da Bósnia e Herzegovina e cinco eslovenas). Saberia também que a resistência croata foi – em proporção demográfica – a maior na Europa ocupada, que o dia 22 de Junho, Dia da Luta Antifascista, é hoje feriado nacional na Croácia. Etc., etc.
Também teria mencionado que os crimes dos oustachis são, na sociedade croata, condenados jurídica, politica e historicamente, que o negacionismo não existe e que a República da Croácia não representa, histórica, politica ou constitucionalmente, a continuação do Estado Independente da Croácia, trazido e instalado nos tanques nazistas, que a própria sociedade croata venceu com as armas na mão.
Enquanto em Belgrado, Álvaro Guerra terminou a trilogia dos Cafés, que representam as melhores páginas da prosa portuguesa do século XX. E ainda bem, porque, infelizmente, não conseguiu conhecer as realidades das repúblicas jugoslavas, para além da sérvia e montenegrina, com que a sua imagem das realidades daqui se tornou incompleta e parcial, subjugada à propaganda de Milošević que alegava defender a Jugoslávia de Tito, enquanto a destruía.
Talvez por isso também a esquerda portuguesa no início dos anos noventa traísse a esquerda croata. Mas isso é já uma outra questão.
Želimir Brala, Zagreb
Bem vindo, amigo Zelimir. Todas as vozes devem ser ouvidas. Este blog não pode "balcanizar-se". Seja bem vindo um grande amigo de Portugal e um grande intelectual croata.
a) Alcipe
Obrigado pelos elogíos, meu caro Luís Filipe, mas eles são fruto da tua magnanimidade e não da realidade...
Partilho as tuas palavras, esse blogue não se deve "balcanizar".
Um abraço,
Želimir
Em relação à ex-Jugoslávia(tema que me apaixona),devo confessar que tenho uma simpatia natural pela Croácia, por algumas razões; Existe um homem que se chama Marko Petrovich(?) Thomson. Trata-se de um patriota Croata e acho,sinceramente,que o seu trabalho e percurso,devia ser mais conhecido na Europa inteira. Que pena eu tenho de não conhecer(á excepção do meu Pai),nenhum Português como ele. Creio que o povo croata lhe tem muito a agradeçer e eu,se fosse Croata,sentiria um enorme orgulho por ter tamanho indivíduo como concidadão!
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