sexta-feira, março 22, 2013

O Bertelo e as Finanças


Há dois tipos de gerações em Vila Real. As que conheceram o Bertelo e as que existem depois dele. É para as primeiras que eu aqui escrevo esta memória, tentando que as posteriores possam perceber o que perdeu ao já não fazer parte da cidade do Bertelo.

Sempre me lembro de mim conhecendo o António Bertelo. Não me recordo da cidade antiga sem ele. Era uma figura de feições algo disformes, com um evidente atraso psicológico, que, por muitos anos, serviu de "moço de recados" de muita gente, que lhe pagava a execução de tarefas simples, de levar-e-trazer coisas. 

A minha geração tratava-o por "tu" e, com naturalidade, ele procedia da mesma maneira. Um dia dos anos 80, à entrada para a redação de "A Voz de Trás-os-Montes", ao cumprimentá-lo, notei que o Bertelo me tratou por "senhor doutor". Reagi de pronto: "estás parvo ou quê, António? Então não me tratas por tu?". O Bertelo fez um sorriso que caía estranho naquela cara atípica, mas não me creio que, desde então, tivesse optado por mudar essa forma de tratamento, o que, para minha genuína tristeza, quebrou uma ligação simples que vinha desde a minha infância.

Durante muito tempo, o Bertelo - o nome vem da aldeia dos contrafortes do Marão de onde era originário - apareceu ligado a tarefas de uma peixaria que havia na rua Direita, o que fez com que ficasse associado odorificamente a essa tarefa, bem notória  à distância. Depois, sem que nunca tivesse havido um sensível "improvement" em matéria de odores, o Bertelo teve outras atividades, desde auxiliar nas entregas do jornal da cidade, de refeições ao domicílio e, por um longo período, ao serviço da sé catedral, neste caso sob a tutela do padre Henrique, que muito o protegeu. Nos últimos anos de vida, creio, preponderava no controlo do portão do seminário.

Quando coadjuvava aquele pároco da Sé, o Bertelo foi protagonista, num domingo de Páscoa, de um episódio memorável. Ia ele pela avenida Carvalho Araújo acima, à frente do padre, com a cruz na mão, quando uma gandulagem decidiu chamá-lo, à distância, por um nome que, à época, ele abominava: "Manaca". O Manaca era um jogador que provocara um contencioso sério entre o Sporting e o Benfica, com um desfecho favorável ao primeiro. Chamar "Manaca" ao Bertelo, indefectível benfiquista, era o suprassumo do insulto. Daí que, em reação à provocação, esquecendo as vestes litúrgicas que trazia, tivesse decidido "plantar" a cruz, bem vertical, no relvado do canteiro junto à estátua de Carvalho Araújo e perseguir em corrida quem o provocara. Sob o olhar divertido de toda a gente, o padre Henrique ficou a gritar pelo Bertelo, que demorou minutos a acalmar e a retomar o auxílio à visita pascal.

O Benfica era a "perdição" do Bertelo. Um dia de 1966, um grupo de vilarealenses da cor do clube da águia deslocou-se a Lisboa para ver uma partida entre o Benfica e o Manchester United. À falta de lugares no carro, o Bertelo teria viajado no porta-bagagens (mas há versões que contradizem esta), com alguém a ter a simpatia de lhe garantir um bilhete para o estádio. Conta-se que, nos primeiros minutos de jogo, chegou a levar alguns "cachaços", porque estranhamente lhe terá dado para "puxar" pelo Manchester, para grande surpresa dos companheiros de jornada. A explicação veio logo de seguida: o Bertelo via muito mal e como o Benfica naquela noite jogava de branco havia decidido, com naturalidade, apoiar os "vermelhos"... que era o uniforme da equipa adversária. (Talvez tivesse sido melhor se a ilusão se tivesse prolongado até ao fim do jogo: o Benfica perdeu por 5-1, com dois belos golos de George Best, nessa fabulosa equipa de Busby).

O Bertelo foi, muito provavelmente, por muitos anos, a figura mais popular de Vila Real. Respeitador, era extremamente simpático para quem bem o tratava. Sempre com a sua típica boina basca, metia o braço a muitos conhecidos que se passeavam pela rua Direita ou pela rua Central, fosse essa pessoa o Governador Civil ou o presidente da Câmara, um advogado, um estudante ou um empresário. Ninguém de bem se afastava do Bertelo, um homem honestíssimo, que não bebia uma gota de álcool, cuja pobreza o levava a aceitar ajudas de quantos com ele simpatizavam. Com gosto, fui das pessoas que, até ao seu desaparecimento, lhe ia dando algum apoio, sempre que com ele me cruzava, nas minhas subidas à "Bila", como nós chamamos à nossa cidade.

Por que razão trago hoje o Bertelo ao blogue? Porque me lembrei de uma frase que o meu pai, com simpatia, sempre recordava do Bertelo, quando um dia este lhe pretendeu transmitir que passara a fazer alguns recados para a Repartição de Finanças de Vila Real. Na sua simples e permanente disponibilidade, de quem se esforçou sempre por ser útil, aproximou-se do meu pai e disse: "Desde a semana passada, estou a trabalhar nas Finanças. Se precisar alguma coisa de lá, é só dizer!" 

Tenho saudades do Bertelo. É que, hoje mais do que nunca, nestes tempos de "troika", é que dava jeito ter um amigo nas Finanças...

19 comentários:

Ésse Gê (sectário-geral) disse...

"(...)hoje mais do que nunca, é o tempo certo para ter um amigo nas Finanças."

Se é tempo, Senhor Embaixador, se é!...

Como vivemos em gram cuidado, muito nos tarda ter esse amigo em guarda.

E.Dias

Defreitas disse...

C’était le 22 janvier au Bourget. François Hollande donnait un nom à son adversaire :”Cet adversaire, c’est le monde de la finance !“

O Snr. Embaixador pedala ao contrário , e pretende infiltrar-se no mundo da finança através dum velho amigo : o Bertelo!
Contrariamente ao François Hollande que, num movimento eleitoral e nada mais, sugeria de declarar a guerra à finança!

Se o Bertelo for uma boa cunha capaz de fazer a reforma bancária em Portugal, seria bom mandà-lo para cá, para França, porque, para o momento, a única reforma da finança do Hollande foi de limitar o "trading alta frequência", isto é, aumentar o intervalo entre duas ordens de bolsa para 0,51 segundos! Assim os bancos vão mais lentamente para a falência, quando jogam no casino, com o dinheiro dos depósitos à ordem dos pequeninos.

J. de Freitas

Anónimo disse...

Agora, as nossas sociedades ditas avançadas, têm vergonha dos Bertelos e os Srs Doutores às mesas dos cafés ficariam eles próprios envergonhados e ofendidos se um qualquer Bertelo viesse interrogar as suas consciências. Muitos Bertelos foram atirados para o fundo dos hospitais psiquiátricos e outros para outros centros prisionais.
Quanto mais avançada se quer, esta sociedade dos Doutores, mais Bertelos ela atira para a margem e como não há hospitais e prisões que cheguem, nem psicógos ou agentes de assistencia social, eles por aí andam a deambular à margem...
O contemporaneo do Bertelo na minha "bila" chamava-se Ricardinho. Nunca o vi sem gravata por baixo daquele colarinho escurecido...
Estarei fora do assunto mas quero gritar que as nossas sociedades que se dizem avançadas perderam o sentido do "humano" e, no sentido da procura da homogeneidade, até já tiveram tentações inqualificáveis...
E não há áreas de conforto que valham. Mesmo além fronteiras naquelas raras fisgas que parecem abrir-se para emigrar...
José Barros

a d´almeida nunes disse...

Gostei de ler a história do Bertelo. Fazem-me recordar outras figuras típicas das terras, em ambiente dos anos 60 e 70, nomeadamente aqui, em Leiria. Sem esquecer Viseu e a Rua Formosa!

Em Leiria tivemos o snr. Basílio, que viveu até aos 100 anos e foi, durante quase toda a sua vida, o "alcaide" do Castelo.

Figuras que davam vida à comunidade.
Hoje está-se a perder esse espírito comunitário, mas dá muito jeito ter alguém nas Finanças que possa dar uma ajuda no momento certo.

Alexandre Matos disse...

Sr. Embaixador,

Um abraço por nos fazer chegar esta e outras histórias. Vou passar esta à família que viveu na "Bila" durante uns largos anos.

Anónimo disse...

A "instituição dos amigos" em Portugal é que nos perde.
Como não há almoços grátis, isto é um ciclo vicioso pouco compreensivel pelas instituições do Norte da Europa e como já não existem os Pirenéus, a Sul a vida vai mesmo mal. Pode ser que melhor um dia mas a que preço.

Anónimo disse...

Humanidade é a mensagem que retiro desta sua lembrança.

N371111

Guerra disse...

Boa tarde Sr. Embaixador.
Queria incluir neste comentário uma foto de António Bertelo, que mão amiga me fez chegar recentemente. Não consegui. Também não tenho á mão o meu técnico informático, que é o meu filho, para pedir ajuda. São muitas as histórias de António Bertelo e o seu Benfica. As discussões, entre ele e o Fernando (Fenano) (portista) tendo como arbitro o sr. Eduardo (Cara de Reco). Já todos partiram, mas deles falo, falamos com simpatia, com saudade.
A sua ironia final, nada mais a calhar.

Anónimo disse...

resta saber se o amigo é russo ou europeu

e ainda dizem mal do obelix!...
esse é que a sabe toda!


o senhor embaixador nao quer ser consul honorario da mordovia?
veja-la homem, se for preciso puxam-se uns cordelinhos...
sempre fica com mais espaco para os seus livros!



bh

Defreitas disse...

Voltando ao fundo da historia que nos conta o Sr. Embaixador, também conheci na minha terra minhota , ainda jovem e antes de emigrar para sempre, um personagem do mesmo gênero, simples e generoso, conhecido de toda a gente, a quem chamavam o "Ligeiro"! A sua silhueta era única na cidade. Magro e alto, não tinha de certeza uma grama de gordura, só músculos, tantos eram os quilômetros que andava durante o dia. Chamavam-lhe o "Ligeiro', porque andava sempre apressado, o busto inclinado para a frente, num angulo que desafiava as leis do equilíbrio ! Claro que a canalhada, quando o viam passar, gritavam-lhe " Oh Ligeiro! Oh Ligeiro!! Ele respondia, invariavelmente : " Bem os vejo, bem os vejo"
Durante anos, puxava uma carroça nas ruas da cidade, e parava em cada loja do percurso, onde ia buscar pacotes e "encomendas" de toda a espécie, que ia "despachar" à estação dos caminhos de ferro , destinadas ao Porto. No regresso, trazia as que vinham no sentido contrário. Creio que era na realidade o "recoveiro" da cidade. Havia outro, menos pitoresco, que levava também as encomendas a Braga.
O "Ligeiro" , fora das horas do comboio, fazia "recados" para o Hospital e outras instituições administrativas. Ganhava assim a vida e ao fio dos anos integrou-se na vida da urbe.
Um dia, as forças faltaram-lhe e já não puxava a carroça para a estação. Continuava a fazer os recados mais fáceis, na cidade, para ganhar alguns "tostoes" !
O Ligeiro pertencia , como outros, a essa humanidade abandonada pela sociedade à berma da estrada, "les laissés pour compte" , que se desenrascavam em tarefas que ninguém queria fazer, e que lhes permitiam de viver , pobremente, mas sem pedir esmolas como outros.
Estes pobres seres eram, por vezes, vitimas da credulidade e da simplicidade que os caracterizavam.
Claro que, no outro extremo da sociedade local, existiam aqueles que viviam à larga, a pequena burguesia industrial e comerciante, e para quem o "Ligeiro" não era mais que um pobre diabo. A dimensão humana escapava-lhes. Não digo que eram todos, mas haviam alguns que eu detestava . Por exemplo, aqueles que nos tempos da caça, passavam no fim da tarde na principal rua da cidade, em grupos de senhores da alta, exibindo as peças de caça penduradas à cinta, mais do que eles iam comer, a espingarda a tiracolo, e as cartucheiras de couro rico bem municiadas.
Quantos invejavam , nesses anos da guerra, toda essa carne exibida, enquanto o povo comia o seu caldinho de couves ,com broa e sardinhas da Povoa ! Também é verdade que, retrospectivamente, a alimentação dos pobres era do gênero daquela que faz que hoje na ilha de Creta é onde existem mais centenários ! Era saudável, sem o saberem !
Um dia, estes senhores da alta, resolveram convidar o "Ligeiro" para almoçar com eles, num restaurante onde faziam os banquetes da caça. A ementa era : coelho ! O "Ligeiro" regalou-se e quando foi embora disseram-lhe que aquilo que ele comeu era na realidade um gato! Fartaram-se de rir e o pobre "Ligeiro" foi embora sem saber se realmente tinha comido gato ou coelho!
O que ele não sabia é que os "senhores" contariam a historia cá fora, e quando a canalhada soube da ementa do Ligeiro, acrescentaram ao tradicional " Oh Ligeiro !" mais duas palavras : " Olha o gato "!Por toda a parte onde passava, a canalha, cruel, gritava " Oh Ligeiro, olha o garo !" Pobre Ligeiro!

O pobre homem definhou e nunca mais foi o que era! Macambúzio, passo menos apressado, um dia desapareceu! Não se sabe para onde foi! Os "senhores", esses, continuaram as festas como dantes!
Eu era jovem. Mas nunca mais perdoei àqueles que se arrogaram o direito, porque eram ricos, de troçar o Ligeiro e de esquecer que era um ser humano.
J. de Freitas

Carlos Fonseca disse...

Na década de 1960, o FãFã (não me lembro do seu nome e todos chamavam assim porque nasalava as vogais) era a figura típica de Rio de Mouro, freguesia pacata do concelho de Sintra, antes de vir o cimento abastardar a paisagem. E, sem ocupação certa, tal como o Bertelo estava sempre disponível para fazer recados.

Às vezes, em vez de ir à Câmara pagar a água, cedia à tentação e aplicava os parcos escudos numas Sagres ou nuns bagaços.

Há também muitos outros episódios que podiam ser contados. Mas nunca me esqueci da noite em que ele, no café Arco-Íris, onde ia à espreita do café e da bebida (havia sempre um do nosso grupo disposto a pagar-lhos), metendo as mãos nos bolsos no casaco, respondeu ao "João da mota" que lhe tinha pedido vinte escudos emprestados: "Ó pá, se eu tiver vinte escudos no bolso é porque vesti o casaco de outro gajo!"

patricio branco disse...

essa do bertelo faz-me lembrar o amado, um musico sempre embriagado que tocava em certos momentos as czardas do monti, e noutros momentos menos elevados guitarradas; e que durante 40 ou 50anos leu e releu o d. qixote arrebatadamente; ou o dr navalhinhas formado em direito mas que nunca usou o curso, nem trabalhou, sempre preocupado com a barba e perguntando diariamente nas lojas se tinham chegado novos tipos de lãminas ou navalhas de barbear que via anunciadas em revistas que lia.
são todos bertelos e fazem parte das nossas recordações...

EGR disse...

Senhor Embaixador: o meu comentário resume-se a uma frase: o post de hoje,independentemente de se ter conhecido ou não o senhor Bertelo,cusa comoção.

Anónimo disse...

Curiosamente, quási todas as Terras tem o seu "Bertelo". Este seu post revela, nos dias de hoje, uma sensibilidade especial, deixando ao lado os problemas com euros, bancos, crise, troikas, e tudo mais que por aí vai. Parabens!

gherkin disse...

Mais outra das boas proveniente de Trás-os-Montes! E esta, o agora Betelo das Finanças! Promoção gradual, o que é raro sem cunhas nesse "jardim à beira-mar plantado". E, para cúmulo, nas atualmente influentes Finanças!
Meu caro, pode perguntar a esse seu "amigo" de infância se se pode mudar para Cascais? Ali, também me seria útil. O "isco" seria a pretexto de outro ou mais jogos com o Benfica, em que poderá "torcer" pela equipa adversária!
O habitual e grande abraço do Gilberto Ferraz

Anónimo disse...


Viva sr. Embaixador

O Bertelo ía aos arames quando a d. Emilia Leite lhe dizia."outra vez sr. padre Henrique!"
Bem nos riamos....

Arm.

Anónimo disse...

nao posso deixa de me lembrar de gente que sofreu problemas profundos de stress de guerra e que foi abandonada ao deus dara quando regressou as suas aldeias.
tal vez nao fosse o caso do tal bertelo, mas recordo-me de ver um ou outro caso desses.

Fernando B. disse...

Deste António Bertelo acrescento dois pontos;
-nos anos 60, o sitio onde mais parava era sem duvida na Rosas, até pelas "lampionices"...
-para maiores de 18 anos, é aquele dito do Bertelo ao PSP aqui por mim censurado e a medo... " ó Esteves dá uma xxxx aqui na minha cadela, para eu ter um cão-policia !
Queremos mais figuras da Bila aqui... esforce-se, vá lá...
X-9 ; Naralhas ; Xico Cereja.

Anónimo disse...

Há muito que acompanho a sua galeria de figuras vilarealenses...é sempre um gosto revisitar..
Bertelo, e tantos outros...
Eduardo, Cara de Reco, Honório, Chinês, Toninho do Rosas, etc,etc, Armandinho do Excelsior, Neves;
Bragança taxista, D.luLu, explicadora de Matemática numa casa da Avenida, a quem um explicando declarou, quando os «amaricanos» alunaram, que o Neil aterrara no Tibete Inferior e, por isso, a Terra era um penico sem asas!Ainda me lembro quem foi o autor dessa doutrina, que não vejo há 50 anos..
O padre Max, meu professor de Francês no Liceu, inquilino da D. fAUSTINA, mãe do Cara de Reco..
O Lavinas a perorar na Brasileira..O pai, Juíz corregedor, de um ex futebolista do SCVR E, depois da AAC e do FCP, mais conhecido pelo Tenente Gerard..A PASSEAR O SEU CÃO nas imediações dasa Casas dos Magistrados...Dr zeze e o Almor que vendia na R, dIREITA «CHUMBO DE CAÇA COM OLHOS»...o mACÁRIO dar voltas ao circuito no seu «bólide!«..




Foi assim...