quarta-feira, outubro 21, 2009

Saudades do Meireles

Uma patética tragédia na eleição autárquica em Mondim de Basto em 2009, fez-me recordar que, em Outubro de 1969, precisamente 40 anos antes, fomos por lá fazer campanha eleitoral pela Oposição Democrática contra o Estado Novo.

Como já aqui foi referido, as listas eleitorais, ao contrário do que hoje sucede, eram então impressas sob responsabilidade das forças políticas promotoras (aliás, só havia duas: a "Situação" e a "Oposição"...) e entregues pelo correio ou directamente aos eleitores, neste caso num porta-a-porta mais seguro, mas nem sempre fácil.

Numa reunião da Comissão Democrática Eleitoral de Vila Real, dirigida por essa figura, para mim inesquecível, que foi o médico Otílio de Figueiredo, e que congregava o escasso número de quantos, no distrito, abertamente se dispunham aos riscos de enfrentar o regime, demo-nos conta que o concelho de Mondim de Basto era o único onde não dispúnhamos de nenhum contacto.

Na discussão sobre o assunto, ao ser constatada esta lacuna, o Carvalho Araújo protestou: "Ora essa! Temos lá o Meireles! Já fez connosco o Norton e o Delgado. O Meireles é fixíssimo". (Um parêntesis para dizer que o nome "Meireles" me ficou na memória, mas posso estar enganado. Porém, para o que aqui importa, é irrelevante).

Convém esclarecer que o Carvalho Araújo era um homem já idoso, feroz republicano, que havia sido demitido da função pública nos anos 30, por actividades anti-regime. Tinha sempre um semblante grave e fechado, tratando-nos a nós, os mais novos que andávamos envolvidos na acção política da Oposição, com visível distância e até alguma desconfiança. Na verdade, não tínhamos andado com "o Norton" ou com "o Delgado": as eleições em que Norton de Matos havia sido candidato presidencial tinham tido lugar em 1949 (eu tinha nascido no ano anterior, o que, como se compreenderá, condicionou muito a minha participação na respectiva campanha...) e a idêntica aventura de Humberto Delgado fora em 1958 (altura em que as minhas prioridades se centravam na admissão ao liceu...). Porém, se o Carvalho Araújo, democrata experimentado, assegurava o apoio do tal Meireles, era uma oportunidade que havia que aproveitar.

Assim, no dia seguinte, com a mala de um carro (creio que era um NSU do Délio Machado) cheia de envelopes já endereçados com boletins de voto, lá avançámos nós para Mondim. Aí chegados, com o Carvalho Araújo no comando das operações, fomos à procura do Meireles. Tarefa que se revelou menos viável, porque o Meireles havia falecido... já há sete anos!

Quando pensávamos que o Carvalho Araújo se ia deixar abater pela dura realidade, ele renasce: "Não há problema! Vamos à farmácia!". Olhámo-nos intrigados: "À farmácia? Para quê?". O Carvalho Araújo lança-nos, condescendente, a sociológica revelação: "Meus amigos, os farmacêuticos são sempre gente com espírito liberal, as farmácias são espaços de tertúlia, confiem em mim!". Verdade seja que as alternativas eram poucas e tínhamos necessidade de "despachar" as centenas de boletins de voto (os inscritos de então não eram muitos) que levávamos connosco.

O nosso homem tomou conta das operações, foi falar com o responsável da única farmácia local e, impante, regressou com o anúncio: "Eu não lhes dizia?! É um democrata, fica com os boletins de voto e encarrega-se de distribuí-los". Ficámos banzados! E a nossa admiração pelo sentido estratégico do Carvalho Araújo cresceu, de modo exponencial.

Semanas mais tarde, quando o nosso saldo eleitoral em Mondim de Basto se computou no magérrimo resultado de escassas dezenas de votos, o pior em todo o distrito de Vila Real, creio que tivemos a piedade de não comentar com o Carvalho Araújo a eficácia da sua "operação farmácia". E, mesmo sem o termos conhecido, sentimos fortes saudades do Meireles.

terça-feira, outubro 20, 2009

Aliados

A literatura lusófona tem, em França, um aliado seguro: as Editions Métailié. Há 30 anos que as letras do Brasil começaram a merecer a sua atenção e há 25 anos que os autores portugueses aí começaram a ser acolhidos.

(Devo confessar, em jeito de nota à margem, que cada vez sinto uma tentação para trabalhar na promoção da língua portuguesa através do conceito da lusofonia, sem com isso descurar a minha obrigação primeira de tratar do que é especificamente português.)

Hoje, ao final da tarde, na Gulbenkian de Paris ("where else?", diria George Clooney), a fundadora e directora da editora, Anne Marie Métailié, lado-a-lado com alguém que por aqui é um "embaixador" constante e teimoso do Portugal cultural, Pierre Léglise-Costa, falaram desses já longos anos de bom trabalho. Por aí estiveram também, em mesa-redonda, escritores como Lídia Jorge, José Eduardo Agualusa e Pedro Rosa Mendes - sendo este último o novo delegado da Agência Lusa em França, um "luxo" jornalístico-cultural de que poucos países se podem gabar.

Léglise-Costa é responsável na Métailié pela "Bibliothèque Portugaise", onde também já foram publicadas obras de escritores como Vergílio Ferreira, José Régio, Jorge de Sena, Mário Cláudio, Maria Gabriela Llansol, Eduardo Lourenço ou Agustina Bessa Luís.

O debate foi muito interessante, com Pedro Rosa Mendes a falar, entre outras coisas, do destino complexo da língua portuguesa em Timor-Leste, com Lídia Jorge a defender a importância da narrativa na literatura e com Agualusa a chamar ao português "uma língua com afeição a diversas geografias".

Portugal e Brasil

Depois do triste "affaire" Maitê Proença, talvez valha a pena lembrar que há quem, no Brasil, tenha uma visão bem mais interessante - e incomensuravelmente mais culta! - daquilo que liga os dois países.

É claro que não me dá jeito nenhum aceitar o amável convite que recebi para ir ao Leblon na próxima semana, mas este livro de Ângela Dutra de Menezes, agora em nova edição, é um excelente exemplo de como a realidade portuguesa pode ser lida de outra forma, bem mais carinhosa e elaborada, embora sem necessitar de ser pesada, e por mais provocatório que o título possa parecer à "sensibilidade" de alguns ouvidos portugueses.

segunda-feira, outubro 19, 2009

Boaventura

Hoje, apetece-me contar uma historieta da minha terra, de Vila Real, que ouvia ao meu pai.

Na minha adolescência, vivia na cidade uma figura de porte imponente, sempre bem vestida e com um chapéu cinzento, que parecia apenas pousado no alto da sua cabeça, que dava pelo nome de Boaventura. Ao que se sabia, o senhor Boaventura vivia dos rendimentos de anteriores actividades comerciais no Brasil, que lhe garantiam a prosperidade que transparecia no seu quotidiano. Homem sociável, bem disposto e de trato agradável, parava pelos finais de tarde na Relojoaria Salgueiro, na "rua central", local para conversas soltas, sem agenda, entre amigos.

Estava-se nos anos 60, algumas crises sacudiam então o país, tentativas de golpes políticos tinham sido abafadas, ideias "avançadas" (como à época se qualificavam as ideias de esquerda) iam fazendo o seu clandestino caminho, Portugal dava ares de estar já cansado de "viver habitualmente", como o doutor Salazar desejaria.

Num desses fins de tarde de charlas, um dos amigos do senhor Boaventura não resiste, e lança-lhe, irónico e ousado: "Ó Boaventura, você tem de se 'pôr a pau', homem! Isto está a aquecer, um destes dias o comunismo vem 'por aí acima' e o meu amigo, que não faz nada na vida, vai ter que começar a trabalhar".

O Boaventura não se desmancha e responde: "Pode ser que sim. Mas uma coisa é certa: quarenta anos de boa vida já ninguém me tira!".

Contei hoje esta historieta a Lídia Jorge, à hora do almoço. O comentário dela foi de que não era por acaso que o nosso homem se chamava Boaventura...

domingo, outubro 18, 2009

Lourdes Castro

Se estiver ou for a Paris, não deixe de visitar, no Centro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, a imaginativa exposição de Lourdes de Castro, intitulada "Grand Herbier d'Ombres", projecções em papel de plantas da Madeira, feitas em 1972.

A abertura foi no dia 13 de Outubro e o entusiasmo de Lourdes Castro contagiou quem com ela viveu esses momentos, em que recordou os tempos dos anos 50 em que veio para Paris e, com outros artistas portugueses, por aqui passou tempos que viriam a revelar-se marcantes para a história da arte contemporânea nacional.

A agenda de realizações da Gulbenkian, em Paris, sob a direcção atenta de João Pedro Garcia, constitui um contributo inestimável para a projecção da nossa cultura na capital francesa, conseguindo, com maestria, aliar temáticas cada vez mais diversas.

A Fundação Calouste Gulbenkian não necessita de nenhum reconhecimento do Estado português. Precisamente por isso, e como diplomata português, sinto-me livre para expressar a grande admiração que tenho pelo seu trabalho e a avaliação que faço de quanto Portugal lhe deve no seu prestígio externo.

Estrasburgo (3) - Português

Os meses que levo de funções em França ensinaram-me que a questão do ensino da língua portuguesa é uma realidade muito complexa, com uma variedade de situações que aconselham uma abordagem diferenciada.

Desta vez, analisei longamente, com diversos responsáveis da Universidade de Estrasburgo, bem como com docentes portugueses que aí operam, a importância de podermos caminhar para modelos de maior identificação da língua portuguesa no quadro do respectivo processo de ensino e formação. Portugal está disposto a conceder meios acrescidos para tal fim, desde que seja possível consensualizar novos formatos académicos, susceptíveis de abrirem as portas a uma frequência acrescida de alunos.

Neste domínio, há uma realidade e um mito que importa referir.

A realidade é que a promoção do português no plano internacional não deve ser vista, nos dias de hoje, como uma responsabilidade exclusiva de Portugal. Todos os países que se exprimem oficialmente em português têm hoje consciência que a difusão e o prestígio da sua língua comum são elementos constitutivos da sua própria relevância no quadro global. Por essa razão, Estados como o Brasil e Angola, com recursos capazes de poderem auxiliar a uma expansão da língua que nos é comum, estão hoje ao nosso lado numa luta que, no passado, parecia uma responsabilidade única de Lisboa. Com isso, ganhamos todos e ganha cada um.

O mito é a ideia de que o interesse em promover o ensino da língua portuguesa em França tem a ver, exclusivamente, com a vontade estratégica de Portugal de aculturar as novas gerações de luso-descendentes no cultivo da mesma língua. Quem assim pensa, esquece a importância crescente para a própria França de ter gente preparada para actuar em português, por exemplo, em mercados da importância do Brasil ou de Angola. E põe de lado, do mesmo modo, a consideração do interesse de um país como a França em sublinhar e promover a riqueza que constitui a sua própria diversidade interna, ao serviço de uma agenda de influência global. Daí que a continuidade das emissões em língua portuguesa na Radio France Internationale me parece que faz parte do quadro de interesses específicos da própria França.

Vamos ter muito que falar sobre a língua portuguesa em França.

Estrasburgo (2) - Europa

A racionalidade económica da manutenção de Estrasburgo como sede das instituições europeias é, muitas vezes, posta em causa e tida como um reflexo de uma velha teimosia francesa. Mas Estrasburgo é muito mais do que uma das sedes dos Parlamento Europeu, do que o local onde funcionam o Conselho da Europa ou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A capital da Alsácia, encostada à Alemanha, palco de históricas tragédias, é, em si mesma, a verdadeira representação daquilo que é a própria Europa.

No passado sábado, fiz parte de um painel de um colóquio, na majestosa "Salle de l'Aubette", da "Mairie" da cidade, sob o tema "De Nice a Lisboa - que futuro para a Europa?". Impressionou-me ver reunida e mobilizada uma audiência de mais de uma centena de pessoas para, durante hora e meia, ouvir e participar activamente, numa discussão franca e aprofundada, sobre as grandes temáticas europeias. A juventude do auditório e a vitalidade das suas contribuições foram para mim a prova provada de que o centro da Europa passa, definitivamente, por Estrasburgo.

Estrasburgo (1) - Elsau

Elsau é uma zona periférica de Estrasburgo, com sérios problemas sociais, enfrentados com coragem e capacidade de liderança por Eric Elkouby, um responsável político da "Mairie" da cidade. Questões étnicas, forte desemprego e outras tensões marcam o quotidiano complexo desse sector da cidade, que foi, curiosamente, o primeiro ponto de fixação dos portugueses, nos anos 70.

Hoje, os portugueses representam aí um importante factor de promoção da estabilidade, como me sublinhou, com entusiasmo, o deputado Armand Jung, uma das figuras mais activas do grupo parlamentar de amizade França-Portugal, na Assembleia Nacional francesa. Com efeito, a "Association Sportive de Strasbourg Elsau Portugais", dirigida por Alfredo da Fonseca, está hoje no centro de um magnífico projecto de integração, louvado por todas as comunidades, e que se constituiu um aliado essencial das iniciativas que procuram recuperar o tecido social daquela área da cidade.

É muito agradável para um responsável diplomático português ouvir, das autoridades francesas, rasgados elogios à contribuição dos nossos compatriotas para as soluções de integração de outras comunidades. Melhor prova não pode haver de que os portugueses são, já hoje, parte da solução para as questões inter-étnicas com que a França se debate. Da mesma forma que, em nenhum momento do seu passado em terras francesas, constituíram parte dos problemas que emergiram nesse terreno - nunca é demais lembrá-lo.

O francês

O óbvio declínio do estatuto da língua francesa no mundo é algo que, com grande frequência, tenho sentido como uma preocupação entre amigos franceses. E que é igualmente um motivo de tristeza para quantos, entre os portugueses da minha geração, se habituaram a ter o francês como a primeira língua estrangeira de cultura. Mas a vida é o que é e até os franceses têm hoje de se resignar com a prevalência do "soft imperialism" da língua inglesa.
Há duas semanas, o papel global relativo do português e do francês esteve em debate em Paris, durante um dia, numa iniciativa realizada na Maison de l'Europe, sob o impulso das delegações da Comissão Europeia em Lisboa e em Paris. Figuras interessadas de ambos os países animaram um debate onde se juntaram perspectivas bastante realistas com outras que, pelo menos no breve período a que pude assistir, relevavam muito de uma visão marcada apenas por um simpático voluntarismo sem visão prospectiva sólida. De qualquer forma, esta é uma temática que há vantagem em tentarmos continuar a seguir e a aprofundar, porque, em ambos os casos, tem muito a ver com questões culturais identitárias que se interligam e a que nos importa estar atentos.
A este respeito, descobri hoje na internet um texto de Guy Sorman, um autor francês. (Não conheço muito de Sorman. Por um mero acaso, comprei, há menos de um ano, numa livraria de Buenos Aires, uma sua obra, curiosamente em "contra-corrente" às ideologias do quotidiano mediático, intitulada, na versão argentina que tenho, "La economía no miente", onde se releva a importância dos mercados em tempos de crise). Sorman escreve agora, de Lisboa, um texto sobre a questão do francês no mundo, onde refere o estatuto de que hoje essa língua dispõe em Portugal.

No artigo, o autor nota, de passagem, que "le Portugal déteste se percevoir en petite nation". É uma nota curiosa, mas talvez Guy Sorman, com o tempo, venha a entender melhor que essa reacção se deve apenas à circunstância de, de facto, não sermos uma pequena nação - também por razões de natureza cultural e estratégica que não faria mal serem reflectidas pela própria França.
Leia o texto de Guy Sorman aqui.

sexta-feira, outubro 16, 2009

Europa

Com apresentação e comentários, de grande profundidade, da responsabilidade de Eduardo Lourenço, Marcelo Rebelo de Sousa falou, na passada terça-feira, no Centro Cultural da Fundação Gulbenkian em Paris, sobre "A Europa depois da crise".

Esta excelente série de conferências sobre a temática europeia, que foi iniciada com Jorge Sampaio e Jacques Delors, constitui um importante contributo dado por Portugal, para auditórios franceses, na reflexão sobre os destinos do continente.

Marcelo Rebelo de Sousa esteve igual a si próprio: inteligente e perspicaz, académico e inventivo, polémico e prospectivo. Entre outras coisas interessantes que disse, para além de notas históricas que deixou das suas andanças no PPE, ao tempo que era líder do PSD, explicou, em detalhe, a sua leitura da opção europeia por Durão Barroso, em 2004.

Para o professor, o tipo de lideranças de Jacques Santer e de Romano Prodi já haviam tido lugar precisamente porque os líderes europeus se haviam assustado com a "força" de Jacques Delors. Quase só faltou que Marcelo Rebelo de Sousa citasse Steinbroken: Delors era "fort, excessivement fort!".

quinta-feira, outubro 15, 2009

Álvaro Guerra


Ontem à tarde, ao chegar a Estrasburgo, tive saudades do Álvaro Guerra.

Senti falta das nossas conversas depois dos opíparos jantares que a Helena por aqui preparava, quando ele era embaixador junto do Conselho de Europa. Gostava das nossas eternas discussões sobre os touros, vício vilafranquense que eu combatia com argumentos ideológicos, com ele a atirar-me à cara com o Hemingway. Um dia, ofereceu-me um livro de Jean Cocteau para me convencer da bondade natural da "fiesta".

O Álvaro era um homem com uma serenidade bem disposta, que tinha prazer genuíno em partilhar connosco leituras feitas, que nos ajudava a procurar na magnífica imensidão da Kléber. Nunca concretizámos uma viagem várias vezes planeada pela "route des vins", durante a qual me prometia que eu iria conhecer néctares que iam ser a alegria cimeira dos meus triglicéridos.

Teve uma vida cheia, do jornalismo à literatura, da política à diplomacia. Foi uma figura maior da intelectualidade portuguesa, que é importante não esquecer e dar a conhecer às novas gerações. Para o ano, na comemoração do centenário do estertor da chefia hereditária do Estado em Portugal, convirá relermos o seu "Café República".

Votações diplomáticas

A pretexto da despedida oficial de um amigo comum, tive a jantar na residência a nova directora-geral da UNESCO, a bulgara Irina Bukova.

Irina é uma amiga pessoal de há quase 15 anos. Foi secretária de Estado dos Assuntos Europeus e ministra dos Negócios Estrangeiros do seu país e era, até há pouco, embaixadora da Bulgária em França. Temo-nos encontrado frequentemente pelo mundo e, a título pessoal, fiquei muito satisfeito pelo facto dela ter ascendido ao posto mais elevado desta agência especializada da ONU.

Irina Bukova sabe e entende que Portugal não pôde votar na sua candidatura, por ter anteriores compromissos assumidos que relevavam de outros equilíbrios que não interessa aqui analisar, até porque se trata de temas fora da minha área de competência. E ela sabe, em especial, que Portugal é um país que honra sempre, com o maior rigor, os compromissos que assume no plano internacional - que um voto comprometido é, pela nossa parte, um voto garantido. Não são muitos os Estados que têm esta imagem na vida multilateral. Nós têmo-la, tal como temos a obrigação de mantê-la. Por isso, não obstante alguma polémica que envolveu, mesmo entre nós, o processo da eleição do novo director-geral da UNESCO, Portugal procedeu de forma perfeitamente consonante com os compromissos que, em tempo oportuno, havia assumido.

Na minha conversa com Irina Bukova, ao referirmos o facto de quase metade dos países membros da UNESCO não terem votado nela, recordei-lhe uma lição que recebi de Jaime Gama, no termo da nossa eleição, em 1996, para o Conselho de Segurança da ONU. Na altura, eu manifestava-me abertamente desagradado e disposto a tirar algumas consequências futuras do facto de alguns dos nossos aliados tradicionais nos terem abandonado, num momento em que necessitavamos deles, o que, contudo, não impediu a nossa vitória. Gama foi mais ponderado e recomendou-me que rectificasse a minha atitude: "Não se constrói uma política externa com base em ressentimentos". Tinha toda a razão.

Estou certo que a inteligência, simpatia e sentido de compromisso de Irina Bukova a farão caminhar no sentido da união de todos os países que compõem a UNESCO. E nós estaremos, ao seu lado, para a ajudar a dar vitalidade a uma organização a cuja actividade atribuímos a maior importância.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Palhaçadas

Nos últimos dias, a internet foi inundada por um vídeo no qual a actriz brasileira Maitê Proença revela ideias fortemente preconceituosas em relação aos portugueses. Trata-se de graçolas de quem, finalmente, tornou clara uma lusofobia que, com inegável sucesso, há anos que vinha a disfarçar bastante bem. Entretanto, fez já um acto de contrição, porque, afinal, o mercado português sempre lhe dá regular jeito à conta bancária.

Quando fui embaixador no Brasil, defrontei-me, por mais de uma ocasião, com situações idênticas. Algumas vezes em que achei oportuno, respondi a esses comentários. Outras, optei por não reagir.

Este é um problema que se coloca, de forma recorrente, a muitos embaixadores: avaliar se devem ou não actuar, em face de ataques públicos ao seu país ou aos seus cidadãos. Há que ponderar se tal reacção não acabará por ter um efeito desproporcionado, isto é, se não ajudará a chamar mais atenção para a questão, do que aquela que ela teve no momento em que ocorreu. E, depois, nos casos em que decidirmos intervir, há que ainda que escolher e medir o tom que essa intervenção deve ter. Podem crer que é uma questão nada fácil.

Também aqui em França, o problema se coloca. Um conhecido cómico de "stand-up comedy", Patrick Timsit, tem feito, num espectáculo público em exibição em Paris, comentários desagradáveis sobre os portugueses. Vários compatriotas sugeriram uma reacção a esse "sketch". Também acho que devemos tê-la: rir dele. Não é isso que os palhaços querem?

Ainda a solidão

A tragédia do cidadão português cujo cadáver foi descoberto, aqui em França, apenas dois anos após a sua morte, foi objecto de um artigo que hoje publico no "Correio da Manhã".

Pode ser lido aqui.

Madeira

Ontem, a Embaixada de Portugal em Paris encheu-se de "experts", para apreciarem a fantástica variedade dos nossos excelentes Vinhos da Madeira.

Quase duas centenas de escanções, enólogos, "restaurateurs" (detesto o português "restauradores", que, para além da praça, me faz sempre lembrar mobiliário), importadores, distribuidores, responsáveis por lojas "gourmet" e muitos jornalistas especializados andaram pelos nossos salões, tendo tido também o ensejo de petiscar algumas especialidades portuguesas da casa Canelas (passe a merecida publicidade).

Uma agenda de trabalho alternativa impediu-me, infelizmente, de partilhar os prazeres do Verdelho, do Malvasia ou do Sercial. Mas diz-me quem esteve presente que o êxito desta degustação foi bastante grande. Agora, só esperemos que as encomendas correspondam.

Em tempo: leia o que escreve a Radio du Goût.

terça-feira, outubro 13, 2009

Solidão

O corpo de um cidadão português de 62 anos foi ontem encontrado, numa casa, nos arredores de Paris, dois anos após a sua morte natural. Nenhum familiar, amigo, conhecido ou vizinho deu, entretanto, pela sua falta.

Pode haver algo mais triste do que isto?

Prós e Contras

O debate que ontem teve lugar no programa "Prós e Contras", que a RTP Internacional nos proporcionou, constituiu um interessante momento para a aferição de diferentes leituras sobre conceitos deontológicos da profissão de jornalista em Portugal.

Porque é muito raro ver aquela classe profissional dar-nos o privilégio de ver contrapostas tal diversidade de posições, afastando-se do monolitismo de defesa corporativa que parece ser uma sua endémica e sacrossanta regra, todos ganhámos muito com o que ouvimos. Nalguns casos, por razões bem alheias à vontade dos intervenientes. Foi um favor que ficamos a dever a Fátima Campos Ferreira.

Turquia

Está este ano a ter lugar a "Saison de la Turquie en France", uma iniciativa de cariz cultural que permitirá à sociedade francesa ter um olhar sobre a realidade turca que vá para além da caricatura com que a questão da aproximação deste país à União Europeia tem vindo a ser abordada, nos últimos anos, por vários sectores da opinião pública.

Este é um tema que sabemos não ser nada fácil em França e que aqui continua a suscitar fortes reacções e polémicas, com natural projecção nos agentes políticos. Por essa razão, considero ser muito saudável encontrar, no seio da opinião pública francesa, figuras de prestígio que, aproveitando estes eventos culturais, tentam recolocar o debate num ambiente de serenidade e maior racionalidade.

A carta que, no jornal "Le Monde" de hoje, surge assinada por figuras como Michel Rocard, Jacques Delors, Luc Ferry, Edgar Morin e Alain Touraine é um verdadeiro manifesto de responsabilidade cívica e um alerta para o erro que constitui a criação de uma espécie de "muro" civilizacional, que alguns parece pretenderem erigir entre o processo integrador europeu e a Turquia. Leia aqui o texto.

Vale a pena recordar que a Turquia foi convidada a ingressar nas então Comunidades Europeias ainda antes da Grécia e que foi plenamente reconhecido que aquele país preenche os chamados "critérios de Copenhague", que definem as bases para uma candidatura de qualquer Estado ao "clube" europeu. E também é interessante notar que o actual primeiro-ministro grego, Georgios Papandreou, se revelou um defensor da adesão turca à União Europeia, não obstante persistirem alguns temas de sensível conflitualidade entre os dois Estados.

Naturalmente que não podemos deixar de ter em conta a sensibilidade negativa que se sabe continuar a existir em vários países europeus, em face de uma futura adesão da Turquia. Por isso, compete-nos respeitar a dificuldade com que dirigentes de alguns desses Estados se defrontam. O que não nos parece aceitável é que se anuncie que se fecham as portas à Turquia à luz de preconceitos civilizacionais, assumindo uma espécie de fronteira religiosa, esquecendo o efeito deletério que isso pode ter na evolução da própria sociedade turca, assim potenciando o seu caminho num sentido que, a prazo, pode vir a revelar-se estrategicamente trágico para a Europa.

Como lembrou, há meses, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, num artigo divulgado pelo jornal "Público", os europeus continuam a ter reflexos em torno das suas questões de segurança à luz de uma lógica que ainda é meramente tributária dos tempos da Guerra Fria, não entendendo a urgência de redimensionar essa mesma perspectiva estratégica sob o prisma de um mundo onde, entretanto, teve lugar a tragédia do 11 de Setembro. Não perceber as consequências de natureza cultural e civilizacional que este novo tempo acarreta constituiu uma cegueira que é indigna de um projecto que se pretende com ambições de projecção à escala global.

Portugal é um país que, em face dos processos de alargamento da União Europeia, esteve e está, desde sempre, muito à vontade. Para surpresa de muitos, nunca nos colocámos na postura egoísta que alguns de nós esperariam, como reflexo defensivo face à necessidade de partilha das vantagens financeiras que disfrutávamos desde a nossa própria adesão. Porque sempre assumimos esse mesmo projecto de abrangência como um esforço de reconciliação da Europa consigo própria.

Por isso, e tal como o presidente da República portuguesa claramente deixou definido na sua recente visita oficial à Turquia, encaramos de forma muito positiva o processo de aproximação de Ancara das instituições europeias e tudo faremos para, no âmbito da União, manter o nosso compromisso de solidariedade e responsabilidade assumido para com a nação turca.

segunda-feira, outubro 12, 2009

Romance

A imprensa francesa, e não só, tem especulado muito sobre o livro de ficção que o antigo presidente da República, Valéry Giscard d'Estaing, acaba de publicar, no qual desenha um "affaire" entre um chefe de Estado francês e uma infeliz princesa britânica. A proximidade entre os perfis das personagens retratadas e as do autor do livro e da falecida princesa Diana têm alimentado imensos comentários.

Porque este género de literatura também faz parte da vida, decidi-me a ler o livro. Cheguei a duas conclusões. A primeira é que, não obstante ser membro titular da Academia Francesa, Giscard d'Estaing dificilmente será prémio Nobel da literatura. A segunda é que a obra pode ajudar a que, um destes dias, ainda possamos ter uma boa tradução gaulesa da expressão "wishful thinking".

domingo, outubro 11, 2009

Acabou!

O facto da sociedade portuguesa estar, desde há mais de meio ano, retida numa contínua campanha eleitoral, em especial num ano de crise económica, não terá sido uma coincidência muito feliz. Este é, contudo, o preço da democracia de que usufruímos e devemos felicitar-nos pelo facto de, neste tempo complexo da vida portuguesa, ter sido possível confrontar ideias e projectos.

Agora, desculpem lá!, é tempo de voltar ao trabalho!

Em tempo: não deixa de ser profundamente estranho que um país com menos de 10 milhões de habitantes demore longas horas para apurar os seus resultados eleitorais e o Brasil, com uma população quase vinte vezes superior, consiga ter os dados definidos pouco mais de uma hora depois do encerramento das urnas. Será que não poderíamos utilizar um sistema electrónico similiar ao brasileiro, que hoje não sofre qualquer contestação significativa?

Vote bem!

sábado, outubro 10, 2009

Castanhas

Há duas semanas, saído de uma mesa de voto, soube-me bem sujar as mãos com castanhas assadas, embrulhadas num papel de jornal que não "passava" num teste da Asae...

Comer castanhas pelas ruas, especialmente no Outono, é um hábito comum em cidades de vários países do mundo, como é o caso de Paris, mas, não sei bem porquê, tem sempre um especial gosto em Lisboa.

E, já agora, ouçam isto.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Correio

A propósito da polémica que aqui em França prossegue sobre a intenção de abrir ao capital privado o serviço dos correios, apeteceu-me relembrar uma música que sei que dirá alguma coisa a uma certa geração portuguesa. Ouçam-na aqui.

Abstenção nas Comunidades

O Portugal Digital, uma interessante plataforma informática luso-brasileira, muito atenta às questões económicas e sociais, dá hoje conta da subida da abstenção entre os votantes, no Brasil, nas recentes eleições legislativas.

Nos últimos anos, correspondendo a um imperativo cívico mas, igualmente, a apelos públicos de várias origens, os consulados portugueses estimulam os cidadãos nacionais, no momento em que fazem a sua inscrição ou praticam actos consulares, a promoverem simultaneamente o seu registo no recenseamento eleitoral.

Os números do recenseamento, se bem que em dimensões geograficamente diferenciadas, mostram bem o êxito desse esforço. Porém, há um outro "lado" desta realidade: muitos desses cidadãos, não obstante terem acedido ao convite para se recensearem, mantêm-se, na prática, completamente alheios à realidade política em Portugal, pelo que, chegado que seja o momento das eleições, ficam alheios a elas e não votam.

Esta é uma importante razão que não pode ser esquecida, ao fazer-se a leitura deste aumento da abstenção. E é também um alerta para a necessidade das forças políticas portuguesas não se lembrarem dos cidadãos nos estrangeiros apenas na ocasião das eleições, importando manter com eles um continuado esforço de informação ao longo do tempo.

Klaus

O presidente da República Checa, Vaclav Klaus, um eurocéptico que mantém o Tratado de Lisboa como refém, é uma personalidade polémica, com que muitos não concordam, mas cuja coragem e frontalidade ninguém pode contestar. Agora, num gesto que está a embaraçar de novo os círculos europeus, quer colocar uma adenda ao Tratado, como condição imperativa para o assinar. Posso estar enganado, mas acho que acabará por fazê-lo.

Klaus é uma figura histórica importante do período subsequente à queda do muro de Berlim. Com o então líder eslovaco, Vladimir Meciar, é considerado um dos "culpados" pela divisão da antiga Checoslováquia, uma decisão à época muito discutida, mas que hoje parece já consensual.

A acompanhar o primeiro-ministro António Guterres, estive no seu gabinete de presidente do parlamento checo, em 1999. As suas reticências sobre o curso do processo europeu eram muito evidentes e, já à época, abertamente contrastantes com as ideias do então presidente da República, Vaclav Havel, com quem também tínhamos falado. Desde sempre, a República Checa viveu nessa polarização face ao processo integrador, muito por motivo da posição crítica de Vaclav Klaus.

Klaus veio a Lisboa, algures no primeiro semestre de 2000, a título privado, no âmbito de um "think tank" conservador que dá pelo nome de "Le Cercle", que tem como representante em Portugal - o que não será uma surpresa para ninguém! - o meu amigo Jaime Nogueira Pinto. Um jantar do grupo no "Ritz", que reunia umas centenas de membros, oriundos de vários países, tinha como convidado Jaime Gama, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros, que nele deveria falar sobre a presidência portuguesa da União Europeia, então em curso. À última hora, fui escalado para substituir o ministro na tarefa e, confesso, estava longe de presumir no que me ia meter.

O tempo político estava então dominado pela chamada "questão austríaca", uma espécie de quarentena que os restantes 14 membros da União tinham decidido impor a Viena, como "punição" pela entrada no respectivo governo de um partido de extrema-direita, acusado de propósitos racistas e de simpatias pelo passado nazi. O governo português titulava essa posição de rejeição por parte dos "quatorze" e, por essa razão, era o alvo favorito das fortes críticas que se faziam sentir em meios conservadores europeus. Noutra ocasião, já aqui referi o que ouvi de Jean-Marie Le Pen, no Parlamento Europeu, por virtude dessa mesma atitude.

Apresentado no final do jantar pelo antigo ministro das Finanças britânico, Norman Lamont, a minha prestação correu com normalidade, até que chegou o tempo das perguntas. Sem surpresas, elas foram quase exclusivamente centradas no tema austríaco. E foi Vaclav Klaus quem tomou a liderança do ataque à posição portuguesa e dos parceiros europeus que nós representávamos. Durante bastante tempo, envolvemo-nos num aceso debate de razões cruzadas, sob o olhar deliciado, mas nada simpático para os meus argumentos, de um auditório que oscilava entre um forte conservadorismo e um reaccionarismo quase primário. Vaclav Klaus acabou por ser a "estrela" da noite, acolitado por outras figuras que aproveitaram para, por meu intermédio, "malhar" na Europa que se mostrava crítica da Áustria.

Quando a sessão terminou, confesso que fiquei aliviado. Mas ainda não perdoei totalmente ao Jaime Gama e ao Jaime Nogueira Pinto o "assado" em que me meteram...

A Paz no Nobel

quinta-feira, outubro 08, 2009

Cerâmica portuguesa

Chamam-se Sofia Beça, Heitor Figueiredo e Mário Reis (na imagem) - e são os ceramistas portugueses contemporâneos seleccionados para exporem no Céramique 14 Paris.

Este ano, Portugal é o país convidado do certame, cuja inauguração teve lugar ao final da tarde de ontem e na qual intervim a convite do "maire" Pascal Cherki, que tem como seu conselheiro uma figura proeminente da comunidade de origem portuguesa em França, Hermano Sanches Ruivo.

A grande surpresa desta exposição foi, porém, a presença paralela, num espaço próprio, de um surpreendente e criativo conjunto de peças oriundas da tradicional "escola" de cerâmica de Barcelos, dos herdeiros artísticos de Rosa Ramalho.

Leia também aqui.

Copé

Foi muito interessante o almoço que o meu colega sueco hoje promoveu com o líder parlamentar do partido da maioria UMP, Jean-François Copé, uma figura em ascensão na vida política francesa, que corajosamente recusa a "langue de bois" e que tem uma afirmação pública cada vez mais forte.

Porque o papel de um embaixador também exige a assunção da frontalidade, tive com ele um "bate-bola" franco, embora muito cordial, sobre a Política Agrícola Comum (PAC) e os fundos estruturais.

As regras destas conversas exigem que não revelemos o que os nossos convidados dizem. Mas nada me impede de deixar aqui expresso o que eu próprio disse: refutei a "racionalidade" da actual PAC, tão cara à França e tão "cara" a todos nós, afirmando que estaríamos preparados para rediscutir os seus actuais desequilíbrios e trabalhar, se para tal houvesse um dia vontade colectiva, para uma sua futura reorientação em favor das produções "do Sul" da Europa. E não deixei de lembrar uma realidade escondida: Portugal é "contribuinte líquido" desta política, isto é, paga para ela mais do que recebe.

Sobre os fundos estruturais, que a Europa mais rica regularmente nos atira à cara como uma espécie de resultante de uma sua suposta boa vontade histórica, deixei claro que o nosso desenvolvimento e o nosso consequente maior consumo faz com que as prateleiras das nossas lojas estejam hoje cheias de produtos produzidos noutros lugares da Europa e que as grandes empresas comunitárias sejam tão livres como as portuguesas de usufruir de tais fundos, obtendo por isso um considerável retorno. E não perdi a oportunidade de lembrar uma coisa que a maioria das pessoas teima esquecer: o maior volume de fundos estruturais, contrariamente a um velho mito, não vai para os países mais pobres da União mas sim para as regiões mais pobres dos países mais ricos.

Vale sempre a pena ter uma bela discussão e Jean-François Copé foi, neste almoço, um debatedor admirável, tanto mais que muito nos elucidou depois sobre a vida política interna francesa.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Debate

Foi apresentado e discutido nos salões da Embaixada, da autoria de Felipe Cammaert, o livro "L'écriture de la mémoire dans l'oeuvre d'António Lobo Antunes et de Claude Simon". O prefácio de Maria Alzira Seixo introduz este trabalho comparativo de dois autores que, em algumas obras, percorreram temáticas comuns que o autor explora.

As dezenas de atentos espectadores ontem presentes à sessão mostraram-se muito interessadas no debate que esta obra suscitou e deram-nos mais razões para continuar, no futuro, a abrir as nossas portas a iniciativas culturais congéneres.

Devo confessar que me causa uma certa tristeza que, à parte as magníficas iniciativas do Centro da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, Portugal não disponha, na capital do país onde tem a sua maior comunidade no estrangeiro, de instalações adequadas e especificamente dedicadas a exposições e debates sobre a nossa cultura, bem como para a promoção regular da nossa economia.

Mas se há uma atitude com a qual não podem contar da minha parte é a resignação. Por isso, continuaremos a "travestir" a nossa Embaixada numa espécie de centro de divulgação português improvisado...

RIA

Para quem não saiba, a expressão RIA significava em Portugal, ao tempo das lutas académicas dos anos 60 e 70, "Reunião Inter-Associações", isto é, encontros de dirigentes estudantis de várias faculdades, normalmente para discussão das "novas formas de luta", nos tempos áureos em que os universitários se uniam em torno de reivindicações que iam bastante para além das propinas e das praxes.

Lembrei-me do ambiente das RIA ao ler alguns comentários deixados no post "Ainda uma gravata", que aconselho que consultem. Aí aparecem citadas figuras que vieram a ser conhecidas em diversos sectores da vida portuguesa, para além de outras que optaram pela sábia serenidade de uma existência sem paragonas.

Neste contexto de luta académica, há um nome que não resisto a trazer à memória, uma figura de dirigente associativo que marcou muito a minha geração e que, infelizmente, já desapareceu: João Crisóstomo. Era uma voz forte e tonitruante que saía daquela bigodaça farfalhuda, sempre marcada por expressões que, as mais das vezes, se colocavam à margem da linguagem estereotipada que caracterizava os nossos discursos associativos. Ouvir o João era uma delícia!

A primeira vez que o conheci, e perante um comentário que terei feito, talvez sugerindo uma qualquer acção, arrumou-me com um definitivo: "Deixa-te disso! Essa questão já foi discutida no 4º seminário!". A timidez de novato impediu-me de perguntar o que era o "4º seminário" e, ao que recordo, andei uns dias, por caminhos ínvios e que não amesquinhassem mais a minha ignorância, a tentar perceber de que se tratava. Lá vim, finalmente, a saber que se estava a referir ao 4º Seminário de Estudos Associativos, iniciativa cujas conclusões obtive e que, deduzo, terá sido antecedida de três outros "seminários" cujo rasto, confesso, nunca encontrei. Pode ser que, agora, algum comentador me possa esclarecer.

O João Crisóstomo era uma verdadeira enciclopédia associativa. Falava de pormenores das lutas académicas anteriores com imensa certeza e conhecimento, citando, com inesperada precisão, factos muito antigos, a que manifestamente nunca podia ter assistido, dada a sua idade. Por essa razão, uma madrugada, numa sala de Económicas, no Quelhas, no auge de uma RIA, que viria a acabar, horas mais tarde, connosco a fugir pelas janelas e a saltar os muros, devido a um cerco da polícia, alguém lhe lançou uma questão provocatória: "Ó João, esclarece lá uma coisa: tu afinal estiveste ou não na greve de 1907, antes da implantação da República?". O João Crisóstomo, já de si sempre propenso a reacções fortes, "passou-se"! E iam voando dossiês!

Homenagem

Por assumida opção, não é meu costume citar outros blogues, muito simplesmente porque, por falta de tempo, é muito raro "passear" pela blogosfera. Mas alguém me chamou a atenção para um "post" e verifiquei que nele se dizia uma coisa que eu gostaria de ter dito. Por isso, reitero aqui a devida homenagem feita a uma grande Senhora que tenho tido a sorte de ter como leitora bem disposta e atenta destas "Duas ou Três Coisas", com que procuro amenizar os meus dias e os de quem acha que, às vezes, vale a pena olhar para o que escrevo: Helena Sacadura Cabral.

Amália em Paris

Ainda no quadro destes dez anos sem Amália, vale a pena registar uma imagem que dela resta, como homenagem, numa parede da rue Mouffetard, em Paris, que nos foi cedida por uma leitora atenta deste blogue.

terça-feira, outubro 06, 2009

Cardeais

A Embaixada de Portugal junto da Santa Sé - "posto santo e santo posto", como ironicamente se diz, por vezes, na nossa carreira - ocupa em Roma um belíssimo palácio, com um deslumbrante e imenso jardim.

Havia - embora eu desconheça se ainda há - uma velha tradição naquele posto diplomático: sempre que um cardeal vinha jantar à Embaixada, dois empregados, fardados à antiga, deslocavam-se até ao portão de entrada, munidos de duas tochas ardentes, e acompanhavam os "príncipes da Igreja" até à escadaria do edifício.

A história que me chegou, já com bastantes anos, diz respeito a um desses jantares, a que dois cardeais iriam estar presentes. Presumo que tal evento constitua sempre um momento especial, pelo que digno do maior cuidado protocolar. Porém, nessa noite, algo terá corrido menos bem e os arranjos coreográficos de recepção, com vista a garantir o acolhimento dos cardinalícios comensais pelos fâmulos de serviço, acabaram por não se conjugar de forma harmoniosa. Por uma qualquer razão, quiçá devida a uma informação errada recebida ao portão, os cardeais, logo que entrados no jardim, e porque não tinham os tocheiros à sua espera, decidiram meter-se a caminho, em direcção à residência. Fizeram-no, porém, por um percurso ínvio que os fez entrar na casa por uma porta lateral e aceder a uma sala vazia, onde serena e discretamente se acomodaram, esperando que alguém os viesse receber.

Alertados pela portaria, embora com atraso, da chegada dos cardeais, os fâmulos de libré para aí haviam corrido, com as chamas das suas tochas ao vento, quais portadores de facho olímpico. Porém, lá chegados, foram informados que as reverendíssimas visitas já teriam dado entrada no jardim. O pânico criado pela "gaffe" acelerou-lhes então o passo e, conta-se, o espectáculo seguinte foi digno de opereta: sob o olhar ansioso dos embaixadores e convidados, o breu do grande jardim da Embaixada passou a ser cruzado, durante vários minutos, por duas nervosas e lépidas tochas ardentes, que corriam atarantadas de um lado para o outro, espiando todos os escaninhos possíveis, na desesperada e cada vez mais angustiada busca das figuras cardinalícias perdidas.

O resto da história não a conheço, mas podemos imaginar que, descobertos finalmente por alguém no aposento onde esperavam, com a infinita paciência que a sua instituição lhes incutiu, aos nossos cardeais tenha entretanto chegado um reconfortante Porto ou, pelo menos, um vero limoncello...

Amália

O meu colega embaixador Manuel Maria Carrilho vai apresentar, para o ano, no âmbito da UNESCO, a candidatura do Fado a "património imaterial da humanidade". Trata-se de uma excelente iniciativa e acaba por ser uma justa coincidência com os dez anos que passam, hoje mesmo, sobre a morte de Amália Rodrigues - a qual, não por acaso, é a única mulher cujo túmulo integra o nosso Panteão Nacional.

A França é porventura o país do mundo onde o nome de Amália se mantém, com mais força, identificado à imagem de Portugal, muito graças ao culto e à acção de personalidades francesas que aqui se esforçam por manter bem viva a sua memória - de que o caso mais notável é Jean-Jacques Lafaye -, bem como ao insubstituível lugar que ela continua a ter na afectividade dos nossos compatriotas e dos seus descendentes.

Eu próprio, dou por mim, quando passo pelo "Olympia", a recordar o modo como, em Portugal, íamos sabendo do êxito das passagens de Amália por esse lugar mítico da música francesa. O lugar onde ela começou um dia por cantar isto.

segunda-feira, outubro 05, 2009

De gravata

A cena passou-se nos últimos meses de 1968.

Toda a direcção associativa universitária, de que eu fazia parte, eleita pelos estudantes com uma expressiva maioria de votos, fora recusada pelo Ministério da Educação - a eleição fora "não homologada", como então se dizia.

Um parêntesis para referir que era assim que as coisas se passavam antes do 25 de Abril, pelo que convém recordá-lo às novas gerações: se os dirigentes eleitos pelo estudantes não agradavam ao poder político, não eram autorizados a tomar posse. Tanto podia ser recusada a lista toda, como podiam ser "seleccionados" apenas alguns elementos como não aceitáveis - como me voltou a suceder mais tarde, a mim e ao Fausto (esse mesmo, o cantautor famoso), em 1972.

Este tipo de decisões era sempre seguido pela nomeação de uma "comissão administrativa" escolhida pelo poder, constituída por alguns dos seus complacentes cúmplices, os quais, por regra, vinham posteriormente justificar perante nós a sua farisaica atitude, com o argumento de terem aceite apenas para evitar o encerramento da Associação Académica, para dar continuidade à edição das "sebentas", etc.

Esse ano de 1968 foi, em Portugal, muito complicado.

O Maio parisiense ainda estava próximo e nós havíamos editado uma revista bem irreverente, chamada "Ibis", onde as ideias desse movimento estavam muito reflectidas e eram adaptadas à realidade portuguesa. Era o prenúncio de uma importante agitação académica que começava a grassar e que viria a incendiar as nossas universidades no ano seguinte.

Em Agosto de 1968, Salazar caíra da cadeira, em Setembro caíra do poder, Marcelo Caetano ensaiva a farsa da "primavera política", mantendo o mesmo ministro da Educação escolhido por Salazar: José Hermano Saraiva, a figura que todos conhecem, hoje com um perfil inofensivo, que a liberdade que então combatia transformou em divulgador televisivo de uma visão pessoal dos factos históricos nacionais.

À época, o Ministério da Educação, chefiado por José Hermano Saraiva, era no Campo de Santana, em Lisboa. A direcção académica de que eu fazia parte, eleita mas "não homologada", havia pedido uma audiência ao ministro, para protestar contra essa "não homologação". Para nossa grande surpresa, este acedeu a receber-nos. A coreografia da "primavera política" tinha destes gestos.

Num primeiro contacto com o gabinete do ministro, surge um inesperado problema: um de nós, o Raul Caixinhas, não tinha gravata. E o senhor ministro, foi-nos dito, não recebia pessoas sem gravata. A verdade é que, à época, a gravata era um adereço obrigatório para se assistir às aulas. Por maioria de razão, compreendia-se que ela fosse indispensável para a visita a um ministro.

Que fazer? O Caixinhas era um interlocutor importante para o diálogo que se iria seguir, não podia faltar ao encontro e ficar à porta. Tinha de arranjar uma gravata! Saiu disparado e, um quarto de hora depois, reapareceu de gravata posta. Preta, claro. E lá entrou a nossa direcção associativa para a audiência. Esta acabou por converter-se numa patética conversa entre um ministro de uma ditadura e um grupo de estudantes que a ela abertamente se opunham, pelo que a reunião, como seria de esperar, foi totalmente inconclusiva. Se bem que tivesse tido alguns pontos pícaros, como os insistentes olhares lúbricos do ministro para as mini-saias de algumas capitosas colegas que nos acompanhavam, mas isso não vem para esta história.

À saída, alguns de nós não deixaram de ironizar com a tradicional rebeldia do Caixinhas: "então lá tiveste que pôr gravata, pá!". O Caixinhas desarmou-nos: "É verdade, fui de gravata. Mas, para compensar, fui sem meias!". E mostrou-nos as peúgas que entretanto metera no bolso, antes de entrar para a audiência com o ministro. Julgo que os funcionários do Ministério da Educação nunca perceberam a razão por que descemos as escadas às gargalhadas. Pensavam, talvez, que nos estávamos a rir do ministro. E, de certa maneira, estávamos.

Georgios

Georgios Papandreou foi ontem eleito primeiro-ministro da Grécia.

Desde o tempo em que foi secretário de Estado e depois ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país, Georgios anima anualmente um clube internacional de discussão, para o qual tive o privilégio de ser por ele convidado algumas vezes - o Symi Symposium. António Guterres e Jaime Gama foram os outros portugueses presentes nessas reuniões, que têm uma composição variável. Por lá passaram já Bill Clinton, Amartya Sen, Joseph Stiglitz, Richard Holbrook, Fernando Henrique Cardoso, Yossi Beilin, Ségolène Royal, etc. São encontros com cerca de 25 pessoas, cada uma de sua nacionalidade, realizados sempre em locais diferentes da Grécia, nos quais, durante uma semana, se pensa livremente o mundo e, muito em especial, a Europa.

Houve um desses debates, creio que em 1999, que nunca mais esquecerei. Estávamos no tempo imediatamente posterior à grande crise do Kosovo e, à mesa, desencadeou-se uma acesa discussão entre uma resistente sérvia, aberta opositora de Milosevic, e um intelectual kosovar, recém-saído de meses de clandestinidade em Pristina. Num certo momento, o kosovar, num óbvio excesso de argumento, volta-se para nossa amiga sérvia e ataca-a da seguinte forma: "tu podes ser pró ou anti-Milosevic, mas o problema que nunca poderás ultrapassar é o facto de seres sérvia!".

Todos ficámos gelados! O ambiente de diálogo e cordialidade que caracteriza, desde há vários anos, aquelas reuniões, que não impede discussões acesas e vivas, nunca terá chegado a um extremo tal de agressividade, muito fruto de um tempo de tensão balcânica que, de certo modo, cuja conflitualidade inter-étnica ficámos naquele instante a perceber bem melhor.

Foi então que, com o seu ar sereno, no tom suave que nunca perde, Georgios interveio. E fê-lo para contar uma história, que se tinha passado consigo, já há muitos anos.

Durante a ditadura militar grega, o seu pai, Andreas Papandreou, que mais tarde viria a ser primeiro-ministro, encontrava-se na clandestinidade. Uma noite, o exército invadiu a casa da família de Georgios, que era então adolescente, e levou-o de carro para uma qualquer zona da Grécia. Umas horas mais tarde, ao chegarem a uma moradia isolada, cercada pela tropa, Georgios viu o oficial que o detivera e que comandava o grupo pegar num megafone e dirigir-se à habitação, que logo compreendeu ser o esconderijo onde estava o seu pai. O oficial gritou então para que Andreas Papandreou se rendesse, informando-o de que tinha ali o seu filho, que prenderia se ele não se rendesse, tudo isto acompanhado de outras ameaças violentas. Perante este cobarde ultimatum, o pai Papandreou entregou-se e foi preso.

A história que Georgios nos contou tinha um significado que ele pretendia projectar no ambiente de tensão que se criara no nosso debate. E acrescentou: "na passada semana, encontrei casualmente o militar que fez essa chantagem comigo e com o meu pai, utilizando-me como refém. Estendi-lhe a mão e cumprimentei-o. Essa é a nossa superioridade como democratas".

Recordo-me que todos olhámos para os nossos amigos da Sérvia e do Kosovo, para tentar perceber se eram sensíveis à lição. Não estou certo que ela tenha sido eficaz.

Se outras razões não tivesse, fruto da minha já antiga amizade com Georgios Papandreou, este testemunho reforçou-me a admiração pelo perfil humanista do homem que, desde ontem, dirige os destinos da Grécia. E a quem já dei os meus sinceros parabéns.

Gonçalo M. Tavares

Foi um prazer passar hoje pela "Écume des Pages" (esse belo nome para livraria, que se inspira numa obra desse génio que se chamou Boris Vian) e ver na montra, com grande destaque, a página que insere o elogioso artigo que a "Livres Hebdo" dedica ao romance "Jerusalem", do prolífico escritor português Gonçalo M. Tavares.

Passo a passo, a nova literatura portuguesa vai-se afirmando em França.

domingo, outubro 04, 2009

Viva a República!

Em 5 de Outubro de 1910, foi instaurado em Portugal aquele que viria a ser o segundo regime republicano do continente europeu, depois da França. A partir de então, os seus inimigos combateram-no e acabaram por contribuir para desestabilizar a jovem República, criando condições para a imposição do regime ditatorial que, de 1926 a 1974, esmagou a liberdade e abafou a vida portuguesa por quase meio século.

Durante o ano de 2010, a Embaixada de Portugal em Paris promoverá iniciativas alusivas à data e associar-se-á a eventos comemorativos do Centenário da República - esse momento fundador da modernidade política portuguesa.

Viva a República!

Saudades do Chile



O golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende, no Chile, em 11 de setembro de 1973, teve um forte impacto emocional na geração política portuguesa que, por cá, expressava então a sua revolta contra a ditadura. À época, eu fazia serviço militar e recordo bem acesas discussões por ali tidas com colegas conservadores, que se regozijaram com o êxito de Pinochet e dos seus esbirros. 

O 25 de Abril como que nos vingou e foi com um sentimento de forte solidariedade que, em Lisboa, a partir de 1974, viemos a conhecer alguns chilenos que haviam sido forçados ao exílio. Com eles, partilhámos o sucesso da nossa Revolução. Recordo-me de gente do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria), com quem passei tempos à conversa nas instalações do MES (Movimento de Esquerda Socialista), na avenida dom Carlos.

Seis anos mais tarde, no meu primeiro posto no estrangeiro, na Noruega, vim a cruzar outros chilenos, expatriados nas mesmas condições. Os países nórdicos acolhiam então com generosidade essas pessoas, a quem facilitavam meios para a sua sustentação. A vida dessa gente era muito simples: empregos em fábricas ou serviços, habitações sem o menor luxo e, como pano de fundo de tudo isso, um ambiente de imensa saudade do seu país.

Um dia, em Oslo, fomos assistir a um espetáculo musical da argentina Mercedes Sosa, conhecida por "La negra", uma cantora que, ao longo da vida, seria uma das vozes mais críticas das ditaduras militares latino-americanas. O seu "Gracias a la vida" marcava-nos então bastante.

Fui ao espetáculo num grupo de diplomatas, que, além de espanhóis e de um brasileiro, integrava um chileno, casado com uma paraguaia, e um casal colombiano. As questões políticas não atravessavam, por regra e por prudência, a conversa de todas aquelas pessoas, jovens profissionais da diplomacia, todos no seu primeiro posto no exterior, que se iam encontrando em agradáveis convívios ao final do dia de trabalho. À época, eu era, com toda a certeza, a pessoa mais à esquerda de todo aquele grupo, sendo que o chileno, que se chamava Enrique, representava o governo de Pinochet. Mas, curiosamente, ambos ficámos amigos para a vida, sem termos tocado alguma vez em temas que pudessem trazer à tona as nossas óbvias divergências. Nas décadas profissionais que se seguiram, vim a apurar esta forma de estar na vida. Ainda hoje tento funcionar assim.

No final do espetáculo, vi os meus amigos latino-americanos a falarem com outras pessoas com a mesma origem geográfica, que ali tinham acabado de conhecer, todos unidos pela voz e pela música de "La negra". Com o meu "portuñol", meti-me na conversa. E, numa dessas sintonias caídas do acaso, vi-me a trocar impressões com um chileno, que, no passo da conversa, me referiu ser exilado. O nome de Allende veio com naturalidade à baila, e ele disse-me ser irmão da mítica "Payita", secretária de Salvador Allende. Num instante, alguma sintonia ideológica se estabeleceu entre nós. Trocámos telefones e, dias depois, o Fermin, era esse o nome do chileno, convidou-me, a mim e à minha mulher, para uma almoço simples, num domingo, em sua casa. 

Vivia num modesto apartamento, numa zona menos nobre de Oslo, a que se acedia por uma escada esconsa. Lembro-me bem do aviso que me fez, logo que entrei na casa: "Daqui a pouco, vai chegar, para o almoço, o Enrique, o teu colega da embaixada do Chile. Não te espantes!" Eu espantei-me um pouco, confesso, mas ele logo explicou: "Ele é um chileno como eu e nem imaginas como me fará bem conversar com alguém que também vem do meu país. Temos de adiar a conversa política entre nós os dois para "unas copas", numa outra ocasião". 

E assim aconteceu. Minutos depois, chegaram o Enrique e a Monse. A política, quiçá estranhamente, não passou por aquelas horas em que a saudade dos dois foi atenuada por algumas garrafas de "Casillero del Diablo", um sofrível vinho chileno trazido pelo Enrique, o único que havia à venda no monopólio estatal de venda de bebidas alcoólicas, Vinmonipolet.

Se hoje tenho uma invejável colecção dos "Rolling Stones", em vinil, devo isso ao Fermin, um amigo magnífico, um revolucionário romântico, cujo partido esqueci, que trabalhava numa fábrica de discos e insistia em me municiar regularmente com discos. Em algumas noites em minha casa, para as quais cuidávamos em não juntar à festa o diplomata chileno, para podermos conversar sobre as nossas afinidades políticas, ouvimos deliciados Violeta Parra e Victor Jara. E, para sempre, guardei a imagem de vê-lo chorar a escutar Zeca Afonso...

Pela vida, com grande pena minha, fui perdendo contacto com imensas pessoas que conheci. Uma delas foi esse meu amigo chileno Fermin, que conheci na Noruega, no final de um concerto de Mercedes Sosa. A qual, segundo as notícias que me chegam, morreu agora.

Emmanuel

Foi muito interessante e divertido o espectáculo "L'Européenne", ontem apresentado no Théâtre des Abesses, em Montmartre. Uma curiosa construção dramática sobre o dilema da compreensão interlinguística no seio da União Europeia, da autoria de David Lescot, com um jovem actor português, Victor Hugo Pontes, no seu elenco. (Leia o que disse o "Le Monde").

O espectáculo tem lugar no âmbito da acção do Théâtre de la Ville, da Mairie de Paris, dirigido por Emmanuel Demarcy-Mota.

Nascido em Paris, em 1970, filho de Teresa Mota, uma importante personalidade do teatro português, e de uma grande figura da dramaturgia francesa, Richard Demarcy, Emmanuel viveu desde sempre nos meios teatrais, ascendendo muito cedo a lugares de responsabilidade, tendo já hoje uma carreira marcada por imensos sucessos. É, aqui em França, uma das mais proeminentes marcas do teatro contemporâneo.

E, já agora, acrescento: fala português como qualquer de nós! Ontem, Daniel Ribeiro fez-lhe um retrato e uma entrevista no suplemento "Actual", do "Expresso", que recomendo a quem o quiser conhecer melhor.

sábado, outubro 03, 2009

Gravatas

A cena de um líder partidário se apresentar para uma reunião oficial com o chefe de Estado português sem usar gravata - o que, aliás, julgo já ter acontecido no passado - sublinhou , definitivamente, o facto da camisa aberta ter passado a ser uma forma cada vez mais natural dos políticos portugueses se apresentarem em público. Nuns casos, será a mostra de uma assumida rebeldia contra hábitos considerados burgueses, noutros terá sido a colagem a uma certa modernidade de vestuário, àquilo a que os brasileiros chamam de "esporte fino". Ainda em outras circunstâncias, presumo, deve ser já o efeito da nossa quota no aquecimento global, muito embora a generalização do uso do ar condicionado às vezes atenue um pouco a pertinência do argumento.

O modelo da camisa aberta sob o casaco tem, porém, algumas não despiciendas "nuances". Numa versão "soft", os políticos abrem apenas um botão da camisa; na fórmula mais "avançada" abrem dois botões. De uma coisa podem ficar certos: nada disto é casual (pelo contrário, como diriam os anglo-saxónicos, é mesmo "very casual") e estamos perante fenómenos que convocam lições de semiologia! Cada botão aberto a mais corresponde a uma fatia acrescida de informalidade que se pretende incutir no subsconsciente do público, normalmente à procura de identificação com um eleitorado mais jovem ou descontraído, com tudo o que isso encerra de mensagem subliminar.

Esta evolução de trajes públicos, diga-se, já tinha sido prenunciada, em termos bem mais radicais, pelos representantes da comunicação social. Hoje em dia, em Portugal, numa qualquer conferência de imprensa ou acto oficial, por mais solene que ele seja, é vulgar ver jornalistas, portadores de "cornetos" de som, fotógrafos ou "cameramen" vestidos das formas mais bizarras, alguns com um ar que se aproxima já do dos arrumadores de carros, às vezes de t-shirt e ténis, como se eles próprios se considerassem "invisíveis" no cenário e não se sentissem obrigados a respeitar o rigor do acto em que também estão inseridos. E, num dia não muito distante, lá chegaremos ao fato-de-treino! Basta olhar para as conferências de imprensa da Casa Branca e fazer a comparação!

Mas há um hábito, já não dos políticos mas de cidadãos em geral, que, para mim, se tornou extremamente irritante: o de trazer a gravata descaída, com o botão aberto, por mero desleixo, por pura saloiíce ou fruto do calor (caso em que seria preferível tirá-la), outras vezes por assumida moda. Mas, neste último caso, já nada há a fazer, é um facto da vida: na televisão francesa há mesmo um jornalista que apresenta um "talk show" sério vestido dessa forma.

Sempre que posso, não uso gravata. Mas sentiria algum desconforto em pensar não utilizá-la em certas circunstâncias. Deve ser da idade. Da mesma maneira que hoje é permitido, cada vez mais, não usar gravata em certas ocasiões, espero que não venha a ser proibido usá-la quando me apetecer. É que eu gosto de gravatas, como já devem ter percebido!

Nice

Hoje, vá-se lá saber porquê, senti saudades de Nice.

sexta-feira, outubro 02, 2009

Alemanha

Há 20 anos, o muro de Berlim caía e a reunificação alemã iniciava-se.

Ontem, na Embaixada alemã em Paris, uma festa celebrou, por antecipação, esse histórico momento em que uma nova Europa estava a começar. Todos parecem reconhecer hoje as virtualidades desse passo político e o modo como ele veio a contribuir para a estabilidade europeia. O que viria a ocorrer depois, no Centro e no Leste do continente, completou o fim da traumática divisão alemã e consagrou a própria reunificação política do continente, simbolizada nos alargamentos da União Europeia e da NATO.

Mas nem sempre foi assim. Ao tempo da queda do muro, muitas dúvidas se levantavam ainda sobre qual iria ser o destino dessa nova Alemanha, se o seu histórico tropismo para Leste suplantaria a força das alianças que entretanto gizara a Oeste. Alguns mantinham ainda o cínico dito do pós-guerra: "gosto tanto da Alemanha que até prefiro que existam duas!".

O tempo veio a provar que tais reticências eram totalmente infundadas e que a evolução da Alemanha se fez num sentido consonante com os interesses da unidade europeia, para a qual muito contribuiu e de que continua hoje a ser um dos principais esteios.

Rio olímpico

O Cristo do Corcovado pode sorrir. Daqui a sete anos terá a seus pés os Jogos Olímpicos.

Um forte abraço de parabéns para os meus amigos brasileiros.

João Moniz

Foi um público muito diverso, onde se pôde contar com muita gente do sector artístico, aquele que ontem esteve na Embaixada de Portugal em Paris, na apresentação das obras mais recentes de João Moniz.

O pintor trabalha entre Paris e Lisboa e, desde 1967, apresentou diversas exposições individuais e participou em dezenas de mostras colectivas. Quadros seus fazem parte de colecções de muitas instituições e particulares, um pouco por todo o mundo.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Financeiros

São umas dezenas de jovens na casa dos 20 e dos 30 anos, portugueses ou luso-descendentes, que ocupam lugares técnicos de relevo em empresas em França. Reúnem-se mensalmente, para reforçar amizades, contactos e lusitanidade. Chamam-se a si próprios a "Confraria dos Financeiros" e têm homólogos no Luxemburgo e no Reino Unido.

Ontem, estive a jantar com eles e a aprender um pouco o que é esta nossa nova comunidade, unida pelas raízes portuguesas, leal à França onde se inserem plenamente, com o seu presente marcado já pelas principais profissões do futuro.

Ocupação

Um grupo britânico de "okupas", dedicado a ocupar casas devolutas, acaba de instalar-se numa moradia em Belgravia, umas das zonas mais prestigiosas de Londres, perto da casa de Margareth Thatcher, da Embaixada de Portugal e, ao que li na imprensa, de Vale a Azevedo.

Esta história recordou-me uma outra, ocorrida em S. Paulo, no Brasil, há alguns anos. Um grupo de "sem abrigo" ocupou um andar de luxo, desabitado, na zona dos Jardins. Ao final de alguns dias, os ocupantes desistiram da ocupação, não por qualquer atitude coerciva, mas, muito simplesmente, por terem concluído que os preços dos produtos básicos, em todas as lojas da zona, era muito superior àquilo que poderiam pagar no seu dia-a-dia.

Tal não será o caso de Belgravia, pelo género de ocupantes e pela própria geografia. Por todas as razões, a história terá, sem dúvida, um final diferente.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...