sábado, novembro 23, 2019

Muito obrigado, Jorge Jesus


O sucesso hoje obtido por Jorge Jesus na Libertadores, a somar ao que inevitavelmente aí virá no Brasileirão, representa uma grande vitória na carreira de um qualificado técnico de futebol português, agora por terras brasileiras. Jorge Jesus garantiu mesmo um lugar na história do futebol daquele país.

Porém, para quem conhece “o Portugal” que existe no Brasil, o “nosso” espaço naquela grande nação, este êxito de um treinador português representa muito mais do que isso. Sei que não preciso de dizer mais nada, deixando aqui apenas um imenso e solidário abraço aos muitos amigos portugueses e luso-descendentes, que entendem como ninguém o que quero significar com este meu muito sincero agradecimento a Jorge Jesus!

Madalena Fischer


As primeiras mulheres admitidas na carreira diplomática portuguesa entraram no Ministério dos Negócios Estrangeiros em agosto de 1975, no mesmo concurso público em que eu próprio ingressei. Tinha sido o ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares quem, meses antes, havia feito alterar a retrógrada lei da ditadura que determinava que apenas os homens pudessem ser diplomatas.

Dinah Azevedo Neves foi a mais bem classificada mulher de quantos ingressaram naquele concurso, pelo que pode ser considerada a primeira mulher na história da carreira diplomática portuguesa.

Maria do Carmo Allegro Magalhães viria a ser a primeira funcionária diplomática a assumir funções como chefe de uma missão diplomática, com credenciais de embaixadora, na embaixada portuguesa na Namíbia. Depois dela, muitas outras mulheres viriam a dirigir embaixadas e missões multilaterais.

Anos mais tarde, a embaixadora Ana Martinho seria a primeira mulher a desempenhar funções de secretária-geral nas Necessidades, o mais elevado lugar da hierarquia formal do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Nos dias de hoje, Ana Paula Zacarias é secretária de Estado dos Assuntos Europeus, depois de, há já bastantes anos, a diplomata Manuela Franco ter tido funções similares num outro governo.

Agora, foi anunciado que Madalena Carvalho Fischer, atual embaixadora no Cairo, irá assumir o cargo mais importante na direção político-diplomática das Necessidades, como diretora-geral de Política Externa. Nunca uma mulher tinha, até hoje, ascendido a essas funções.

A história da presença feminina nos quadros diplomáticos portugueses, nas últimas décadas, reflete um percurso de inegável sucesso, com o surgimento de funcionárias altamente qualificadas a ocuparem lugares destacados, quer em Portugal, quer na rede diplomática e consular exterior, muito contribuindo para o prestígio da imagem de Portugal no mundo.

A nomeação de Madalena Fischer, uma qualificada profissional, com um perfil muito consensual na carreira diplomática portuguesa, é assim uma excelente notícia.

Muitos parabéns, Madalena! Os faraós vão sentir saudades suas...

sexta-feira, novembro 22, 2019

A “Piauí” na “Sarita”

Não sabe o que é a “Piauí”? É pena! É, de longe, a melhor revista brasileira da atualidade.

Não sabe o que é a “Sarita”? É pena! É o “lugar” onde, em Portalegre, ali perto do Rossio, se compra a imprensa que interessa. A prova provada é que, há minutos, encontrei por lá, à venda, a “Piauí”. Não comprei, apenas porque sou assinante e generoso: deixei o exemplar para quem quiser adquiri-lo.

quinta-feira, novembro 21, 2019


Estrelas


Não sou muito dado ao cultivo regular dos restaurantes de cozinha contemporânea, como quem faz o favor de me ler já se deve ter dado conta. A minha “praia” mais corrente são outras “freguesias” culinárias.

Mas reconheço, sem o menor esforço, que o refinamento da arte gastronómica atinge, em alguns desses locais de “fine dining”, formas superlativas de qualidade sensorial, superiores requintes de paladar, pela junção criativa de sabores, que correspondem a anos de trabalho e pesquisa, a uma aprendizagem feita com quem apurou a sensibilidade a níveis elevados de cultura culinária. Fico, muitas vezes, deslumbrado com aquilo que me chega ao prato, admirando imenso o trabalho desses artífices do gosto. Conheço muitos, admiro bastantes.

Rejubilo sempre, por essa razão, com a atribuição de mais estrelas Michelin aos chefes portugueses que se dedicam, dia e noite, a um esforço de constante aperfeiçoamento, apurando a oferta, qualificando o serviço de mesa, ajudando a que Portugal se torne num destino de quantos apreciam essa gastronomia requintada, a qual, naturalmente, tem de ser paga a um preço que se liga à qualidade dos produtos escolhidos, ao excecional tempo de confeção, ao conjunto da “produção” essencial para aquilo que apuradamente nos chega à mesa. O país e o seu turismo devem-lhes muito e, mais do que isso, devem agradecer-lhes o que têm feito pela nossa imagem de mesas acolhedoras.

Dito isto, vou-lhes contar um segredo. Às vezes, em alguns desses restaurantes em Portugal, fecho os olhos e pergunto a mim mesmo: se eu não soubesse onde estou, conseguiria perceber, pelo que estou a comer, onde de facto estou?

Irrita-me imenso a “oferta” (oferta é uma ironia, porque se paga uma “conta calada”) de alguns chefes (eu nunca escrevo “chefs”) de cozinha que por aí andam, portugueses ou não, que parece que, mais do que tudo, cuidam em “disfarçar” a geografia onde operam, “fingindo” que abancamos no Noma ou no Ambroisie. 

Ora eu, quando quiser (e se tiver dinheiro e pachorra), vou ao Noma ou ao Ambroisie. Mas o que eu quero, aqui e agora, é sentir que estou a comer, em Portugal, coisas com superior qualidade, com produtos que sei serem nossos, tributários da “memória” culinária portuguesa, tratada esta, embora de forma sofisticada - com espumas, reduções ou outras artes - por quem profundamente respeita a nossa história gastronómica.

É por todo este conjunto cumulativo de razões que ontem, ao ver anunciado que Rui Paula, um chefe cozinheiro com uma imensa genuinidade portuguesa - que conheço desde o Cepa Torta ao DOC, do DOP a Vidago, do Tivoli à Casa de Chá da Boa Nova - obteve, pelo seu dedicado, determinado e competente trabalho neste seu último espaço, a sua segunda estrela Michelin. O meu amigo José Quitério, às vezes, tem de concordar que os pneus nem sempre se enganam.

Um forte abraço, meu caro Rui Paula!

quarta-feira, novembro 20, 2019

O mal de Joacine


Ninguém suspeitaria, há uns meses, que a eleição de Joacine Katar Moreira para o parlamento português pudesse dar origem a uma controvérsia como aquela que entretanto se gerou em seu torno. Acho, aliás, que a questão da gaguez da deputada foi, neste contexto, um mero fator de diversão para algo mais essencial.

Joacine Katar Moreira é negra, feminista e, com frequência, tem deixado claro que pretende vir a utilizar aquela tribuna para abordar, numa perspetiva radical, algumas temáticas menos consensuais, tal como para fazer uma leitura, muito marcada pela sua experiência pessoal, sobre o fenómeno da exclusão rácica em Portugal, com as decorrências que daí advêm para a revisitação do colonialismo português e das suas sequelas contemporâneas. Recordo, a propósito, como o surgimento de uma bandeira da Guiné-Bissau, na noite da sua eleição, logo provocou uma patética histeria nacionalista e xenófoba, atitude contra a qual, aliás, me insurgi publicamente.

Mas, afinal, perguntar-se-á o leitor, a que propósito vem o título deste artigo? Qual é o “mal” de Joacine? Vou ser muito claro: temo que o radicalismo recorrente do discurso da deputada, a sistemática colagem do sensível tema racial a uma postura confrontacional e divisiva, que por muita gente, mesmo aquela que se considera moderada, pode vir a ser lida como estimuladora de um anti-portuguesismo no seio das comunidades imigradas de outras etnias, acabe por ser um adubo fácil para a doença que é o nacionalismo primário, cuja face política ela encontrará do outro lado do hemiciclo onde se senta. 

Ao olhar as redes sociais e alguma imprensa, noto que a postura de Joacine Katar Moreira deu azo à emergência de algum racismo alarve que vivia escondido em certas catacumbas da nossa sociedade, até aqui travado na sua expressão pública por um mínimo de vergonha, o que já era um considerável ganho civilizacional. Vejo, contudo, que alguns iluminados entendem que o “outing” desse primarismo miserável acaba, no fundo, por ser clarificador e separador das águas. A mim, que não me apetece viver num Portugal transformado num “ringue” de tensões sociais e de ódios, de “vendettas” históricas e de ajustes de contas intelectuais com o passado, isso parece-me péssimo. 

Joacine Katar Moreira, hoje deputada com toda a legitimidade, tem, é claro, o direito de pensar de forma diferente. Espero, com sinceridade, que, a prazo, não venha a arrepender-se por poder vir a ser a responsável por ter soltado por aí alguns perigosos demónios.

terça-feira, novembro 19, 2019

José Mário Branco


Não deviam faltar muitos anos para o 25 de abril. No programa “Página Um”, da Rádio Renascença, ouvi um dia José Manuel Nunes apresentar o primeiro trabalho editado por um compositor e cantor português, que não estava presente no estúdio e de quem eu nunca tinha ouvido falar. 

Tratava-se do primeiro disco de José Mário Branco. Foi então referido, com toda a naturalidade, que o autor não podia estar ali em estúdio, pelo facto de viver no estrangeiro. O verdadeiro motivo foi discretamente iludido: ele estava exilado em Paris.

Lembro-me, como se fosse hoje, da interessante peça instrumental “Gare de Austerlitz”, com que o disco abria: era um som ambiente, com ruídos de multidão e de comboios, que depois se iam enchendo progressivamente de música. Austerlitz era o nome da estação onde, em Paris, desembarcavam todos os portugueses que iam em busca de uma nova vida. Ou da liberdade.

Desde esse dia e até hoje, segui com algum cuidado o percurso de José Mário Branco, do trabalho que fez no exílio com Sérgio Godinho até às belas derivas que, como compositor, com Manuela de Freitas como letrista, empreendeu pela área do fado, de que Camané acabaria por ser um grande beneficiário. Pelo meio, nos anos 80, tivemos direito ao chocante “FMI”, um disco que me recordo de ter levado comigo para Angola e de ter ali o ouvido com amigos, em “alto berros”, que era como aquela peça de indignação radical merecia ser escutada.

Ao vivo, creio só ter visto José Mário Branco uma única vez, num espetáculo no CCB, já há muitos anos. Sempre o achei muito melhor compositor do que intérprete, embora ele soubesse tirar bom partido melódico daquela sua voz rouca e grave.

José Mário Branco morreu. Era de uma geração, a que também pertenço, que está agora de saída, embora com legítimo orgulho do legado que deixa.

Recordo-o aqui com uma canção divertida, de ritmo de marcha alegre, ancorada na geografia de Lisboa, que diz bastante mais do que aquilo que parece dizer: “ “Qual é a tua, ó meu?”. 

O clássico chunga “Tira a mão da popeline!”, que surge dito a meio da música, ficou ali consagrado para sempre.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Cliente da “segunda série”


Não me passa hoje pela cabeça (já me passou um dia, mas arrependi-me vivamente) almoçar ou jantar no Alfa Pendular, entre Lisboa e Porto ou vice-versa (agora, vou no vice-versa). A qualidade do produto trazido ao lugar não me agrada minimamente, e isto é apenas um piedoso “understatement”.

Nos tempos do velho Foguete, o comboio prateado que fazia este trajeto creio que quase no dobro do tempo, havia uma carruagem restaurante, com mesas próprias com pequenos candeeiros, onde se tomavam as refeições. 

Marcavam-se estas no início da viagem, havendo dois turnos de serviço. Quando as refeições estavam prontas para serem servidas, surgia pelas coxias um empregado que tocava uma pequena sineta, ao mesmo tempo que ia anunciando em voz bem alta: “Primeira série!”. Uma hora e tal mais tarde, lá surgia a “segunda série!”. E, a essas chamadas, os comensais que haviam reservado iam para a carruagem restaurante.

Fui sempre um cliente da “segunda série”, porque esta permitia mantermo-nos à mesa por mais tempo, beber mais do que um café, nesses anos em que ainda tínhamos fígado para fechar a refeição com uma dose de aguardente velha (em balão aquecido, o que era feito, a nosso pedido, à falta de lamparina, com um pano embebido em água quente). Lembro-me também que, escolhendo a tal “segunda série”, só saíamos da mesa já por Vila Franca ou por Espinho, dependendo do sentido do comboio. E que belas conversas tive por aquelas mesas, de que agora não consegui arranjar uma imagem decente para ilustrar este post!

Como a comida vinha em travessas (na antiga tradição portuguesa de serviço à mesa), os empregados da Wagons-Lits serviam individualmente cada cliente. Ora a estabilidade do comboio era então muito periclitante, pelo que eles faziam uma cuidada coreografia para não provocarem “desastres” irrecuperáveis na roupa dos utentes. 

A “segunda série” tinha, aliás, um pormenor “técnico”, nas idas para o Porto. Havia um ponto do percurso para Norte, creio que ali pela Pampilhosa, onde um qualquer intrincado de linhas fazia o comboio abanar mais furiosamente. Víamos então os funcionários pararem o serviço e aguentarem-se no corredor, por uns instantes, com as travessas na mão, num equilíbrio hesitante, até que tudo acalmasse. Era um momento aguardado com sorrisos pelos “connaisseurs”. Sempre admirei aqueles hábeis “jongleurs” da restauração ferroviária, de que agora me lembrei, nestas horas com pouco aqui para fazer, neste Alfa sem alma nem wifi decente.

Tinham mais graça aquelas viagens antigas? Provavelmente não. Nós é que olhávamos com outros olhos aquele “cosmopolitismo” de trazer por casa, a versão lusa do “Expresso do Oriente” a que então tínhamos direito. Ah! E éramos mais novos...

Isto deve ser da idade!

Há cada vez mais coisas sobre as quais tenho dúvidas: sobre a atitude a tomar face à sem-abrigo que tentou matar o filho, sobre a autorização ou não do traje da desportista muçulmana, sobre se, afinal, o aeroporto deve ser ou não no Montijo, sobre se se deve proibir ou não a exploração de lítio, etc, etc.

Quando vejo tanta gente com tantas e tão profundas certezas sobre tudo e sobre todos, dou comigo a pensar: isto deve ser da idade...

Quem sabe, sabe!

Um Governo que (não) governa, uma oposição que não se opõe, e um país que anda ao sabor de conveniências, da resposta a interesses de curto prazo, eleitoralistas, sem a avaliação das consequências”.

Quem escreve isto hoje é o jornal online Eco. Podia ter sido o Observador. Ou outra folha similar.

Houve eleições, apenas há semanas. O país teve toda a liberdade para escolher - e escolheu. Quem ganhou, em total liberdade, teve a ingenuidade de pensar que tinha legitimidade política para governar, sob o escrutínio parlamentar que a Constituição prevê. 

Mas o Eco, cuja representatividade opinativa não sabemos onde nasce (esperando nós que não radique nos interesses económicos que o financiam), descarta, com a arrogância de uma “boutade”, essa decisão livre dos cidadãos, desqualifica de uma penada o sentido da sua escolha, apouca mesmo a ação da oposição da qual não gosta. 

Não sobra nada em Portugal? Sobra, nem tudo está perdido! Sobra a voz sábia e definitiva do Eco!

Os cidadãos votantes, para o Eco, são um bando de palermas, uns inconscientes. O Eco, que passou semanas a promover a Iniciativa Liberal, a quem o descuido do país só conferiu um deputado, é que sabe como melhor se defenderiam os interesses da pátria.

Afinal, tudo é tão simples, em política: para as coisas seguirem no melhor dos mundos, bastaria seguir o que dizem o Eco, o Observador e outras folhas. Afinal, para que é necessário esse gesto vão que é votar?

O sorriso matinal


“Bom dia, senhor Costa, são sete e meia”. Aquela voz feminina, que me despertou pelo telefone, à hora pedida, no Hotel Intercontinental, no Luxemburgo, em março de 1986, ficou-me para sempre na memória.

Naquela que era a minha primeira visita em trabalho por ali, bem no início da nossa aventura europeia, dei-me assim conta da sensação diferente que era estar como português no Luxemburgo.

A senhora, telefonista do hotel, terá pressentido, pelo meu nome, que estava a acordar um compatriota. E era muito confortável sentir aquela expressão de proximidade, no lugar do mundo onde a nossa comunidade é mais significativa, em relação à população total do país.

Desde então, nas muitas viagens que fiz ao Luxemburgo, “tropecei” com portugueses um pouco por todo o lado. Quantas vezes, em restaurantes, ouvi de empregados, depois de um “então o que é que vai ser?”, em voz baixa e cúmplice, “não peça o cerf“ ou “as moules hoje não estão muito boas”. E, pelos corredores do “Le Royal”, que, por anos, passou a ser o meu “albergue” no centro da cidade, era bem simpático trocar os bons-dias com as senhoras da limpeza que, entre si, falavam português pelos corredores.

Ontem à tarde, ao ver a bancada do Luxemburgo-Portugal pejada de bandeiras e cachecóis verdes e vermelhos, fiquei a pensar no prazer que os nossos compatriotas devem ter tido ao verem a nossa seleção ganhar, precisamente ali, o passaporte de acesso ao Europeu de futebol.

É que hoje, ao entrarem nos empregos e olharem os seus colegas de trabalho, tenho a certeza de que os portugueses do Luxemburgo afivelarão um sorriso matinal (e, vá lá!, compreensivelmente um pouco sobranceiro) muito especial...

Leituras



Um amigo mandou-me esta fotografia tirada numa estante do Parlamento Europeu. Que boas leituras eles têm por lá!

domingo, novembro 17, 2019

20 anos do euro


A convite do governador do Banco de Portugal, tive muito gosto, na passada sexta-feira, em ser o moderador de um interessante debate entre Wolfgang Munchäu, do Financial Times, Paul De Grauwe, da London School of Economics, e Carlos Moedas, comissário europeu cessante. Com essa conversa, culminou um dia dedicado a uma conferência comemorativa dos 20 anos do euro, com a presença de vários especialistas portugueses e estrangeiros.

No debate, suscitei a questão do estatuto do euro como instrumento de poder europeu. Foi interessante perceber, em alguns dos meus interlocutores, a ideia de que a moeda única, tendo sido um inegável sucesso, poderá, contudo, ter ficado aquém das mais optimistas expetativas suscitadas aquando do seu lançamento, em especial no tocante à partilha de “mercado” com o dólar, que permanece líder incontestado como moeda de referência.

Interessante foi ouvir, falando da assistência, o antigo presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, ser de opinião que um maior “êxito” do euro poderia ter criado pressões difíceis de comportar, numa eurozona sem poder político suficientemente forte. As atuais debilidades dessa eurozona, por incompletamento da União Bancária, foram referidas por alguns intervenientes, tal como, neste contexto, alguma falta de sintonia entre Paris e Berlim, circunstância que torna difíceis alguns avanços tidos por essenciais para o reforço do euro.

Falou-se bastante da China, da pluralidade de perspetivas dentro da UE sobre o relacionamento com Beijing, dos EUA e das suas dissonâncias com as posições europeias, do pós-Brexit e das dúvidas sobre se a atitude comum europeia na atitude face a Londres tem condições para de se manter, no processo negocial que irá estruturar o futuro relacionamento.

Muito mais foi discutido, nesta hora e meia de debate, que incluiu perguntas da assistência, e que encerrou esta excelente iniciativa do Banco de Portugal.

Alf pendular


Viajei hoje no Alfa Pendular, a caminho do Porto, e vejam com quem me cruzei na carruagem! Parece que entrou no Entroncamento!

II Encontro de Cascais



Foi uma bela jornada aquela que, este fim de semana, tivemos no II Encontro de Cascais, organizado pelo jornal “Expresso” e pela Câmara de Cascais. 

Democracia, sustentabilidade, saúde e educação estiveram este ano em análise, com cada tema a ser introduzido por dois especialistas, a que se seguiu um alargado e animado debate. 

Ao jantar, o “plat de résistance” foi uma intervenção, bem substantiva, feita pelo presidente da República.

sábado, novembro 16, 2019

Gente de direita

Um grupo de algumas dezenas de pessoas, que, politicamente, se assumem de direita, acaba de publicar uma coletânea de textos.

Nesse grupo, que vai de uma direita radical, com velhas simpatias pela ditadura, a pessoas com um perfil reconhecidamente democrático, encontro mesmo alguns amigos pessoais e figuras por quem tenho consideração e estima. Por outros, não.

Não adquiri ainda o livro e não deixarei de o ler, no meu eterno gosto masoquista de me “ilustrar” com aquilo com que sei ir divergir em absoluto.

Com sinceridade, acho que é bastante saudável assistir a este “outing” descomplexado da direita portuguesa, que, pelo menos desta vez, optou por não se esconder atrás do eufemismo tíbio do “centro-direita”.

Pena é, no entanto, que esta direita encadernada não se tenha ainda conseguido libertar do fantasma da esquerda, essa sua eterna e traumática ”bête noire”, que acaba mesmo por figurar, em linguagem acrimoniosamente agressiva, na citação do prefácio que surge na capa do livro. 

Coisa que, estou seguro, nunca aconteceria num livro escrito por pessoas de esquerda, a quem dificilmente passaria pela cabeça falarem da direita na capa de um seu livro. Quem acaso tiver um exemplo contrário, faça favor de o mostrar.

Aqui fica essa citação: “Essa é precisamente a riqueza da direita, onde a liberdade e a ousadia sempre prevaleceram sobre a procura de ortodoxias e a arregimentação sectária que vigoraram à esquerda”.

A direita portuguesa mostra, assim, que ainda não consegue afirmar uma identidade por si própria, necessitando de fazer o contraponto com a esquerda para sublinhar a sua matriz. É pena! Mas não há que perder a esperança: com o tempo, talvez lá chegue... 

Também foi para dar direito de cidade a uma direita democrática, desde que tenha a coragem de exorcizar sem ambiguidades a ditadura que, em Portugal, lhe manchou o nome, que se fez o 25 de abril...

Da água


Ao ouvir hoje, num debate, Catarina Albuquerque, uma especialista portuguesa que se tem destacado mundo multilateral que se ocupa da questão vital da água, falar-nos, com o seu convincente entusiasmo, da tragédia - porque é de uma tragédia que se trata - que envolve a gestão global desse recurso escasso, lembrei-me de um episódio passado comigo há cerca de 15 anos. 

Foi numa travessia do Usebequistão, na Ásia Central, numa carrinha da OSCE. O calor exterior, nessa viagem pelas montanhas, era imenso e nós ali íamos, bem instalados, muito confortáveis, numa espécie de “oásis” em movimento.

Era uma estrada de montanha, sem localidades visíveis, com uns casebres à distância, de quando em quando. Em um ou dois locais do percurso, reparei que havia umas crianças que nos estendiam garrafas de água, que traziam na mão. Por curiosidade, perguntei à funcionária local da organização, que nos acompanhava, se elas estavam a vender água. 

A jovem, funcionária local da OSCE, riu-se: “Não. Eles estão a pedir água a quem passa. São mandadas pelos pais, das casas lá em baixo, para pedirem um pouco de água para beberem, em especial nesta altura de grande calor”.

Fiquei siderado com a revelação. As pessoas que me acompanhavam, quatro embaixadores junto da OSCE em Viena, ficaram incomodados pela firme recusa do motorista e da guia de voltarmos atrás, para darmos aos miúdos algumas garrafas das muitas que, bem geladas, nos abasteciam a carrinha. Isso atrasaria o nosso programa, disseram-nos. Verdade seja que não íamos resolver nada de essencial, apenas apaziguar a nossa consciência. Mas sempre seria melhor do que não fazer nada.

Não existe ainda entre nós uma consciência da importância política do tema da água, que é central nas questões de sustentabilidade com que o mundo se confronta. E que isto é já, nos dias de hoje, um problema já com um potencial de conflito muito sério em certas regiões do mundo.

sexta-feira, novembro 15, 2019

Da gravidade


Cruzei-me ontem com ele, na FNAC do Chiado. Falámos uns instantes. Está bastante mais velho (estamos todos) mas, essencialmente, está muito mais “grave”. Era, no passado, um companheirão, um pacholas, sempre com uma graça na ponta da língua, um sorriso aberto à vida e aos amigos que encontrava. Ontem, quando o vi à distância, quase o não reconheci, pareceu-me outro: sério, “cara de caso”, ar patibular, como se lhe tivesse morrido alguém. Na conversa breve, abriu-se um pouco, mas foi sorriso de pouca dura. Logo depois da despedida, lá o vi, de novo, façanhudo. Parecia “importante”! E foi-se, com o mesmo ar de quem ia “contra o vento”. Será isto natural?

Será a idade que torna as pessoas mais fechadas de cara? Há uns anos, comentei isto com uma amiga, em Vila Real, ambos sentados na esplanada da Gomes, vendo passar pessoas da terra, quase todos com esse fácies cerrado, com uma espécie de “gravitas” adotada como estilo. Ela dizia-me: “Os homens de Vila Real, para “crescerem” no seu estatuto perante os outros, parece que têm necessidade de ter “ar de maus”, para serem levados a sério. Repara que quando eles abrem o guarda-vento para entrarem na Gomes, enfrentando aquela plateia de olhares que sobre eles converge, é um pouco o estatuto que pretendem afirmar que transparece do modo como afivelam o rosto”.

Estivesse por ali o Steinbroken, o diplomata finlandês de “Os Maias”, do Eça, e diria, aplicando a um desses “cromos” de Vila Real o que dizia sobre os eventos do mundo: “C’est grave, excessivement grave!” E acrescentaria, como toda a razão: “Et pourtant, où va-t-il?” E na realidade, o mais longe que esse tipo de homem vai, lá por Vila Real, é ao Cabo da Bila (com “b”, claro)...

Testei isto com outra pessoa e a explicação foi outra: “É quase sempre apenas timidez. O “carão” é uma simples defesa. O estatuto de “homem na cidade” (como o disco de Carlos do Carmo), em especial na província e ainda mais nas pequenas localidades, implica uma coreografia própria no esgar. Um ar de brincalhão, mesmo um leve sorriso, fragilizá-lo-ia, abriria caminho a não ser tomado a sério, daria ideias aos outros para o abordarem com comentários leves e jocosos, lidos como excesso ou exploração de confiança”.

Um velho embaixador que em tempos conheci, e que era obsessivamente preocupado com a exegese dos sinais que regulam os registos de comportamento mútuo, tinha uma tese bizarra (e, para mim, ridícula): temos de estar sempre “acima” do nosso interlocutor. Porquê? Porque as relações sociais são, por regra, desequilibradas. Assim, ele passava o tempo a usar uma expressão anglo-saxónica que traduzia essa sua ideia: “if you are not one point up, you are one point down”. A cara de mauzão fará parte desse estilo?

As coisas com que algumas pessoas se preocupam!

O destino das Américas

Se há coisa que a História cada vez mais nos ensina é que temos ser muito prudentes ao ler os seus sinais. Prudentes e modestos, em especial na tentativa de dela tirar ilações para o futuro.

Há uma dezena de anos, muitos de nós olhávamos para a América Latina como uma geografia política que seguia um curso relativamente linear, embora diverso dentro de si e com alguns identificáveis riscos de percurso. 

Sabíamos e sabemos que os Estados Unidos nunca prescindiram de ter um “droit de regard” sobre um sub-continente que consideraram, na aplicação da (sua) “doutrina Monroe”, como uma zona de legítima influência direta, parte do seu perímetro de segurança próxima. O fator cubano, inserido no contexto da Guerra Fria, deu-lhes um alibi fácil para poderem continuar a apoiar e a gerar, na região, alguns títeres autoritários e, em caso de evidente desvio dos seus interesses, intervirem e recolocarem as coisas nos eixos favoráveis ao “mundo livre”, mesmo que para tal fosse necessário reforçar alguns ditadores. A “liberdade” do seu mundo, de que os EUA sempre se arrogam como lídimos intérpretes, vale sempre o condicionamento da liberdade de outros. A frase de Roosevelt para qualificar um dos ditadores que interessavam a Washington ficou na História da “realpolitik” mais cínica: “He is a son-of-a-bitch, but he is our son-of-a-bitch”.

O mundo ocidental, em geral, viveu sempre confortável com a ideia de que a América era, em princípio, um “assunto” dos americanos (do Norte). Com o fim da Guerra Fria, embora com a política interna dos EUA a determinar a continuação da quarentena a Cuba, os americanos descortinaram um novo alibi para manterem a sua intervenção na região: a luta contra o tráfico de droga. Era um problema real, que rapidamente se converteu num pretexto para facilitar intervenção nos assuntos internos de alguns parceiros, com a América Central como alvo mais óbvio.

Mas, um pouco por todo o sub-continente, o tempo das ditaduras militares, que a polarização Leste-Oeste adubara, parecia estar a ser sucedido por regimes cada vez mais democráticos, embora alguns com alguma dose de autoritarismo, muitos ainda com processos de guerrilha militarizada cujo efeito a comunidade internacional procurava atenuar por mediações pacificadoras. A Europa, agora com uma ambição política a orientar-lhe uma atitude externa comum, começou a tentar mostrar-se relevante no diálogo com os países latino-americanos e com as suas novas estruturas intergovernamentais. Era um proselitismo democrático que, de certo modo, cobria um interesse de presença económica, ajudando esses Estados a sair do exclusivismo da relação intra-americana, a que atores de outras geografias (China, Turquia, etc.) igualmente ajudavam.

Os modelos tendencialmente democráticos que iam surgindo um pouco por toda a América Latina, alguns marcados por artificialismo institucional, que só a esperança podia fazer crer que teriam sustentabilidade temporal, não parecia, contudo, conseguir atacar uma realidade que, em lugar de se atenuar, se ia mesmo agravando: as clivagens sociais e económicas, em parte disfarçadas por surtos conjunturais de crescimento que absorviam alguns dos seus efeitos, nomeadamente de natureza política. Noutros contextos, como aconteceu nos modelos “bolivarianos”, essa abertura cedo teve derivas de populismo, às vezes com o sublinhar dos direitos das comunidades indígenas como pretexto de base.

Uma coisa ficou – e está a tornar-se – muito evidente. Talvez com exceção da Colômbia e da Costa Rica, em quase nenhum dos restantes casos, embora diferentes entre si, se nota estar a sedimentar-se um espírito de reconciliação nacional que nos permita afirmar, com alguma certeza, que a legitimidade das instituições será capaz de sustentar as tensões sociais internas existentes, preservando esses Estados de convulsões potencialmente perigosas. Os exemplos recentes do Chile e do Brasil, que há meia dúzia de anos pareciam encaminhados num rumo de estabilidade e progresso, mostram-nos a inesperada debilidade de alguns modeloS e, regressando ao que disse no início do texto, a necessidade de sermos modestos na certeza das nossas análises.

quinta-feira, novembro 14, 2019

Cilindrada diplomática


Era um homem simpático, já idoso, o motorista local daquela nossa embaixada, bem fora da Europa. Esforçava-se por falar português, mas com escasso sucesso. Dizia o básico.

Um dia, o novo embaixador, para alimentar conversa durante uma viagem, perguntou-lhe com quantos dos seus antecessores ele tinha trabalhado. Tinham sido vários e o motorista lembrava-se bem do nome de todos.

Por uma qualquer razão, veio à baila o automóvel pessoal do primeiro daqueles embaixadores: “Ah! Carro muito bom! Cadillac! Graaaande!”. Esse Cadillac tinha impressionado fortemente o homem.

Mas não se ficou por aí. Sem ser perguntado, resolveu continuar: “Depois, vem embaixador “Silva”. Lincoln! Carro graaaande!”. E prosseguiu: “E embaixador “Santos”. Mercedes! Graaaande!”. Os automóveis de grande porte dos seus embaixadores tinham-no marcado.

E o homem parou as evocações automobilísticas, sem, curiosamente, mencionar a viatura do imediato antecessor do seu atual chefe. Este, intrigado, perguntou: “E o Embaixador “Pinto”? Que carro tinha?“.

Nova pausa do motorista que, com uma entoação de voz bem menos entusiástica, finalmente disse: “Embaixador “Pinto”. Mercedes!” Fez um silêncio de alguns segundos e acrescentou: “... mas ‘piquinino’!”. E riu!

O embaixador, no banco de trás, estava divertido com aquele elenco de colegas e automóveis. E decidiu espicaçá-lo, lembrando-se do seu próprio carro: “E agora?”. O homem, lá à frente, tinha embatucado. Mas ele insistiu: “E agora? Diga lá!”

O velho motorista percebeu que não podia escapar e, sem se voltar para trás, em voz mais baixa, saída de entre os dentes bem brancos, a contrastar com a sua cara, usando um tom “declinante” que não iludia o que lhe ia na alma, lá comentou, imagina-se que com algum sorriso: “Agora? Agora é só Toyotta, embaixador...”

quarta-feira, novembro 13, 2019

A preto e branco


Nos anos 60, em Vila Real, a récita do “1° de dezembro” reunia, no Teatro Avenida, os estudantes do Liceu e as suas famílias. Os alunos da Escola Comercial e Industrial, da Escola do Magistério Primário e do Colégio da Boavista não integravam então a “Academia”, por razões que o espírito do tempo explicava.

No liceu, havia então um estudante com grande talento teatral: José Viana.

Há muito que perdi de vista o Zé Viana, filho de um dentista que era nosso professor de ginástica, que sei que chegou a fazer incursões no teatro profissional e, se bem me lembro (mas posso estar a lembrar-me mal), trabalhava na TAP. Na vida lisboeta cruzámo-nos um par de vezes, já há muitos anos.

Numa dessas récitas, logo no início dos anos 60, o Zé Viana apresentou um monólogo que era, creio, da sua autoria. O texto era bem simples: “O branco e o preto”. Toda a arte estava na entoação dada àquelas palavras, que, quase por 10 minutos, ele conseguia ir transformando. É impossível explicar, sem suporte fonético, essa modulação inteligente, sublinhando cada vocábulo de forma diferente, “enchendo” um ou “esvaziando” outro, de forma interrogativa ou admirativa, em sonoridades imensamente criativas. Aquela “performance” ficou-me no ouvido para sempre. (Alguém, da Vila Real desse tempo, se lembra disto?)

Contudo, aquela prestação, se bem que original na forma, disse-me muito pouco em termos de conteúdo. Nessa noite, o meu pai, chegado a casa, comentou para a minha mãe: “Foi muito corajoso, o filho do Viana” (em Vila Real era-se “filho” de alguém até ter vida profissional própria; e mesmo assim...). Eu não percebi bem, mas aquilo ficou-me no ouvido.

Foi uns tempos mais tarde que somei dois-e-dois: pensando que aquela glosa teatral, em torno das palavras “preto” e “branco”, era feita numa época em que eclodira a primeira guerra colonial, em que as referências aos “turras” (fórmula popular para “terroristas”, como eram qualificados os guerrilheiros independentistas) estavam por todas as conversas, o atrevimento do Zé Viana era digno de imensa admiração. É que os tempos não iam fáceis para as relações entre pretos e brancos, nos dias da ida para Angola, “rapidamente e em força”.

Lembrei-me deste episódio, há minutos, no carro, ao ouvir, num noticiário, que o futebolista Bernardo Silva foi condenado por ter feito, no Twitter, uma graça tida como “racista” pelas autoridades do futebol britânico, não obstante o próprio “ofendido” ter já vindo a terreiro desmentir que se tivesse sentido alvo de qualquer “agressão” por parte daquele que é, de há muito, um seu grande amigo.

Fico espantado com a hipocrisia das vírgens do “politicamente correto”, que parece absolverem a sua consciência no escândalo façanhudo destas solenes retificações semânticas, arregalando os olhos quando, em lugar de falarmos em “afrodescendentes”, nos saem da boca, com a maior naturalidade e sem a menor intenção, as palavras pretos ou negros. 

Esses puristas, contudo, parece não terem nenhuma preocupação em se interrogarem sobre se o verdadeiro e profundo racismo não estará, afinal, naquilo que parecem encarar como “natural”: que os negros continuem a ser, nas nossas sociedades desenvolvidas, as faixas de população económica e socialmente mais desfavorecidas. Isso, esse verdadeiro racismo das nossas sociedades, não parece preocupá-los nada.

A nós, também não nos preocupava que os estudantes que não eram do liceu não integrassem a Academia, lá por essa Vila Real dos anos 60...

As “Duas Espanhas”

 
O projeto de solução política anunciado em Espanha nada tem a ver com o que Portugal inaugurou em 2015: a Geringonça não foi uma coligação. O PS esteve sozinho no poder, tendo acedido a algumas propostas programáticas da “esquerda da esquerda”, motivada esta pelo interesse em evitar o regresso da direita e por frutos eleitorais que acabou por não vir a obter. Essas medidas, em geral não radicais, acabaram não só por satisfazer a ala esquerda dos próprios socialistas como foram colocadas a seu crédito pelo eleitorado nas últimas eleições. António Costa teve também o cuidado de “blindar” aspetos essenciais do programa do PS – desde logo, o cumprimento das regras orçamentais europeias e a preservação, integral e sem reticências, de um conjunto importante de outros compromissos externos do país. Não é nada disto que se prevê para Espanha.

Contudo, estou convicto de que o acordo que agora se anuncia em Espanha não teria sido possível sem que, em Portugal, se tivesse passado o que se passou.

Ao procurar trazer o partido de Iglesias para o poder executivo, num país que, na atual democracia, nunca foi governado em coligação, Pedro Sánchez sabe que corre uma imensidão de riscos, muito agravados pela circunstância de necessitar de fazer compromissos orçamentais e outros com alguns deputados das autonomias, cujo impacto é difícil prever. 

Os riscos desta opção são essencialmente internos, tendo a ver com a matriz identitária e a imagem de Estado do PSOE, bem como com a reação dos agentes económicos. Mas também externos, com um franzir do sobrolho da Europa que o governo espanhol não pode hostilizar. É neste último terreno que Sánchez se procurará louvar, com toda a certeza, no precedente português. E irá também dizer aos parceiros europeus que tudo tentou para evitar ter de recorrer a esta solução, mas que ela é a única que permite garantir um mínimo de governabilidade à Espanha e, de caminho, de travar o crescimento da extrema-direita. 

Esse é o maior risco: criar um governo quase de “frente popular” agravará a clivagem esquerda-direita, fazendo ressurgir as velhas e tristes “Duas Espanhas”, de que o Vox poderá afinal vir a ser o grande beneficiário. Se Sánchez vier a seguir uma agenda política que seja vista como muito marcada pelo radicalismo do Unidas Podemos e do Más País, confortando simultaneamente reivindicações autonómicas interpretadas como podendo erodir a unidade nacional, o novo governo pode vir a ter uma vida difícil, sempre com a Catalunha no cenário de fundo.

terça-feira, novembro 12, 2019

O chefe


O Miranda (chamemos-lhe assim) era um "velho primeiro-secretário". Na carreira diplomática, este conceito "de corredor", por esses anos 70, abrangia quantos se eternizavam na categoria que antecedia a ascensão a conselheiro. O concurso público para ser conselheiro de embaixada era complexo, o que criara uma multidão de "velhos primeiros-secretários".

O nosso Miranda tinha vindo da América Latina, por onde andara em mais do que um posto e agora fora parar à nossa Repartição.

A Repartição tinha um chefe e, abaixo dele, não havia qualquer hierarquia formal, exceto a antiguidade. E nesta, por razão óbvia, o Miranda imperava sobre nós, funcionários que nunca tinham sido colocados no estrangeiro. Por isso, partindo o chefe de férias, o Miranda assumia a direção da Repartição. E assim aconteceu, num certo dia.

Na manhã seguinte, ao chegar à minha secretária, dou de caras com uma pilha de documentos "para dar andamento", muito superior à média habitual. Fui ver e dei-me conta que parte substancial da papelada era do pelouro do Miranda. Procurei-o na sua sala, que partilhava com uma leitora regular destes textos, mas não estava. Lembrei-me então de ir ao gabinete do chefe da Repartição.

E lá estava o Miranda, com os pés sobre a mesa, regalado a ler o "Diário de Notícias" a que função dava direito. Perguntei-lhe por que diabo tinha canalizado todos os papéis do seu pelouro para mim. A sua resposta, marcada pela chocada surpresa, foi cristalina: "Ó homem! Eu agora estou a chefiar!"

segunda-feira, novembro 11, 2019

Humor brasileiro


Até na imprensa brasileira a “novela” do Brexit é motivo de chacota. Veja-se esta página da “Folha de São Paulo” de 1 de novembro.

A era Morales


Foi agora conhecida uma nota de desagrado do recém-libertado Lula face ao golpe palaciano que, “manu militari”, afastou Evo Morales do poder, na Bolívia. Não é de estranhar, atento o facto de, cada vez mais, voltar a haver “duas Américas Latinas” e o maniqueísmo crescente da região tender a forçar a opção por uma delas. Recordaria que foi também por virtude desta deriva favorável ao mundo “bolivariano” que o PT brasileiro nunca conseguiu ser minimamente crítico da Venezuela de Nicolas Maduro, com o peso que isso acabou por ter no ambiente que ajudou a eleger Bolsonaro.

Quando fui embaixador no Brasil, e não obstante o “namoro” que o Brasil então fazia à generalidade dos países da América do Sul (exceção feita à Colômbia e, em parte, ao Chile), para reforço da sua influência na Unasul, as relações com a Bolívia de Morales chegaram a atravessar um momento particularmente difícil. As atividades da Petrobras no país sofreram forte pressão e houve mesmo um momento de alguma tensão entre Lula e Morales. 

Uma noite, numa conversa a anteceder um jantar na nossa embaixada, vi Lula exasperado com a atitude do governo boliviano, que por esses dias tinha feito algum agravo ao Brasil. Depois, com o tempo e alguma inteligente transigência da diplomacia do Brasil, que sabia distinguir o que era acessório daquilo que era essencial, as coisas compuseram-se. Mas o relacionamento entre La Paz e Brasília foi sempre uma gestão complexa.

Lula tinha, no seu gabinete, um “expert” para as questões latino-americanas, Marco Aurélio Garcia, uma figura que morreu há dois anos e com quem eu tinha construído uma boa relação pessoal. Repito agora um episódio que já por aqui contei. 

Um dia, Marco Aurélio foi à Bolívia encontrar-se com o recém-nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros de Morales. Pouco após o seu regresso, coincidiu ter ido almoçar comigo à residência e, naturalmente, tentei “confessá-lo” sobre as suas impressões da visita. Contou-me então a conversa "surreal" que havia tido, em La Paz, com o chefe da diplomacia do país, que já tinha entretanto feito umas declarações públicas um tanto bizarras, numa linguagem cheia de metáforas e de difícil descriptagem, que a imprensa brasileira reportara de forma divertida. 

Marco Aurélio descreveu-mo como uma figura estranha, com um mantra "filosófico" de quem "tinha os pés bem assentes no ar", num discurso errático e alegórico, quase incompreensível. E comentava, no meio de gargalhadas: "Você conhece-me, Francisco! Imagina que, quando quero, sou capaz de rivalizar em efabulações e imagens ligadas ao universo onírico, mas o homem batia-nos a todos! Saí de lá sem perceber quase nada e com medo de me ter enganado naquilo em que julguei tê-lo percebido..."

Era também assim a Bolívia de Morales.

domingo, novembro 10, 2019

De vitória em vitória...


É ridícula a “alegria” de Pedro Sanchez. Quis eleições para ter uma maioria absoluta, perdeu deputados e ficou mais longe dela. Teve menos um milhão de votos! O principal rival do PSOE, o PP, recuperou mais de 30% face às ultimas eleições. A extrema-direita mais que duplicou. Bela “vitória”!

“Pronunciamiento”


Na América Latina, estão a acontecer tantas coisas nos últimos tempos que, de facto, já “fazia falta” um pronunciamento (para quem não saiba ou não se lembre é uma espécie de “ou fazes o que dizemos ou fazemos um golpe de Estado”) à antiga, como agora aconteceu na Bolívia.

Uma Espanha nórdica?


Na Noruega, as eleições só podem ter lugar de quatro em quatro anos. Não existe, constitucionalmente, a possibilidade do parlamento poder alguma vez ser dissolvido, com a sequente realização de eleições antecipadas. No dia seguinte a uma eleição, os partidos noruegueses têm de conseguir formar um governo, ainda que em coligação ou mesmo minoritário. E se não conseguirem? Esse cenário não se coloca: para um partido que, um dia, obstaculizasse uma solução de governo, gerando uma crise constitucional, haveria consequências políticas graves. Por isso, com maiorias absolutas ou relativas, os executivos noruegueses formam-se e governam sempre por quatro anos, desde que por lá há democracia.

Lembrei-me disto ao ver, há minutos, as primeiras estimativas sobre os resultados das eleições de hoje em Espanha. A cada dia, com a atual fragmentação partidária, a hipótese de voltar a haver por ali maiorias absolutas se afasta mais. E como não é possível continuar a realizar eleições legislativas sucessivas, até pelo cansaço cívico que isso já está a provocar no eleitorado, os partidos espanhóis vão ser obrigados a procurar encontrar soluções do governo, com base no resultado das urnas, seja ele qual for. E se isso não fôr viável? Nesse caso, será o próprio modelo constitucional - e, porventura, democrático - que estará em causa.

Sophia


Porque

Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos calados
Onde germina calada podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não.

sábado, novembro 09, 2019

Há três anos


Faz hoje precisamente três anos, estava em Berlim, onde tinha sido convidado para debater a Europa com interlocutores alemães. Numa conversa, alguém lembrou, quase por acaso, que, nesse dia, passavam 27 anos desde que o muro caíra. Escrevi “quase por acaso” porque, por esses dias, as atenções estavam concentradas noutro acontecimento, ocorrido horas antes: a eleição de Donald Trump. Nesse cenário, a recordação da queda do muro não mobilizou ninguém.

Um pouco por toda a Europa, a vitória de Trump, se bem que já pressentida por alguns, tinha provocado um choque político. Porém, fiquei com a sensação de que o discurso equívoco do novo presidente americano face à Rússia, as suas críticas à Nato e, muito em particular, o início de uma atitude de direta hostilidade à União Europeia e ao mundo multilateral estavam a provocar um trauma muito especial nos alemães. Todos quantos, de Portugal, tínhamos ido nessa missão a Berlim pudémos constatar a grande intranquilidade que transparecia dos nossos interlocutores.

Trump não falava então do muro de Berlim, mas já suscitava a questão de um outro muro, desta vez com o México.

Há uma coisa em que temos de ser justos: Trump não pode ser acusado de ter desiludido a forte expetativa negativa que criou.

Os “amigos” de Marcelo

Descobri, há pouco, este texto de julho de 2016, há mais de três anos. Como ele está atual!

“Encontro-os (mais "as", curiosamente) todos os dias (e noites). São as gentes da direita desencantadas com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Emitem ironias, encolhem os ombros, estão "cansados" com a agitação que vai por Belém. Detestam-lhe as "selfies", os beijinhos, a ubiquidade, a palavra a toda a hora. Verdadeiramente, nunca foram "marcelistas": votaram nele porque não havia mais ninguém "do nosso lado". São órfãos de um estilo que já lá vai e que identificavam com a "pose de Estado". Do que eles verdadeiramente gostavam era de um presidente que, passados os seis meses da praxe, tivesse dissolvido o parlamento e colocasse de volta quem lá estava. Marcelo não lhes fez a vontade. Todos sabiam que ele era imprevisível, mas não pensavam que fosse tão longe. Pressentem que está tentado a dar uma oportunidade à "geringonça", para esta levar até ao limite as suas hipóteses de sobrevivência, por forma a que nunca possa ser apontado como institucionalmente culpado pelas crises em que ela possa vir a tropeçar. Se o governo cair, ninguém poderá dizer que foi por culpa de Marcelo. Já o viram ao lado da Costa em momentos complicados para o executivo, com sinais de solidariedade interinstitucional que ninguém esperaria possível. Aquelas cenas de "lua-de-mel" em Paris e por ocasião do futebol colocaram a gente da direita furiosa. "É isto! Que se há-de fazer? É o Marcelo, filha!", ouve-se a gente não conformada nos "dîner en ville". Para esta nossa (salvo seja!) direita, este não é "o seu presidente". Mas não têm outro, que maçada!”

sexta-feira, novembro 08, 2019

Lula


Creio ser uma evidência que a saída de Lula da prisão abre um tempo novo na vida política brasileira, independentemente da opinião que cada um possa ter sobre a sua culpabilidade e os processos judiciais que o envolvem. 

Lula nas ruas vai poder polarizar, à sua volta, muito do crescente sentimento anti-Bolsonaro. Mas é importante não esquecer que há quem não goste do atual presidente e, simultaneamente, se não reveja nem em Lula nem, especialmente, no PT. 

Só podemos esperar que Lula, solto, tenha a sabedoria para atuar de uma forma que não dê razões a que possa ser acusado de potenciar a tensa situação que se vive no país. Olhando o seu passado e a sua experiência política, quero crer que é mais plausível que isso venha a acontecer do que confiar em que os que se lhe opõem possam vir a ter essa mesma sensatez.

Independentemente do caso específico de Lula, é para mim muito óbvio que a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro de aguardar pelo trânsito em julgado das sentenças, antes de prender os acusados, reconcilia o Brasil com as práticas mais comuns no mundo.

Pena foi que, no passado, o entendimento da justiça brasileira não tivesse sido o mesmo, o que credibiliza a teoria de que Lula foi preso para não poder ser candidato contra Bolsonaro.

Jornalismo de emboscada

Há não muitos anos, fui a uma estação de televisão falar de um determinado assunto de política internacional. Antes de entrar no estúdio, aproximou-se de mim uma jovem que me perguntou se, no final do programa, podia gravar comigo uma pergunta e uma resposta. Dando por adquirido que o tema seria o mesmo, talvez para uma peça de noticiário, anuí.

No final, lá estava ela, de microfone em punho, com um “cameraman” ao lado. O ambiente tinha a redação da cadeia em fundo, para dar ar um ar de informalidade e de “agilidade” informativa. 

Subitamente, sem qualquer pré-aviso, fez-me uma pergunta, em tom provocatório, envolvendo-me numa daquelas intrigas que apaixonam os maluquinhos das teorias da conspiração que, com ar sempre grave e sentencioso, por aí vivem da cultura da indignação das redes sociais e que facilmente encontram quem lhes explore as insídias, numa comunicação social sedenta de escândalo.

Contive-me de dizer à senhora, “injustamente acusada de ser jornalista”, como dela diria Batista-Bastos, o que pensava da sua tentativa de “golpe” filibusteiro. Limitei-me a virar-lhe as costas, tendo pena que, dias depois, não tivesse tido a coragem de pôr essa imagem no programa em que reportou as canalhices.

Lembrei-me desta atitude quando, há dias, vi uma pessoa, que havia sido convidada para ir a uma televisão falar de um determinado assunto, ser quase “assaltada” por perguntas que nada tinham a ver com esse tema específico. A cara dela denunciava o incómodo e a surpresa, por ter sido apanhada num “truque” baixo. Louvei-lhe a contenção.

O jornalismo tem regras claras, mas quem teria obrigação de as lembrar e fazer respeitar seriam os próprios jornalistas. Mas o “corporativismo”, já se sabe, não morreu com o Estado Novo.

Östalgie


Há dias, dei conta de que ainda se publica o “Neues Deutschland”, que foi o mais importante jornal da antiga República Democrática Alemã, lido ainda hoje por quantos nunca se reconciliaram com os efeitos da reunificação. Aquele diário, recorde-se, tem como coroa de “glória” jornalística ter feito uma edição, no dia seguinte à “queda” do muro, sem a menor referência ao assunto!

Lembrei-me então do conceito de “östalgie”, uma “trouvaille” vocabular para simbolizar o sentimento de nostalgia que atravessa alguns setores, saudosos dos tempos da Alemanha de Leste. E que, ao que parece, não são tão poucos como isso. O filme “Adeus, Lenine!”, que vivamente recomendo, é um magnífico exemplo desse sentimento. Também não é segredo para ninguém que um dos suportes do poder de Vladimir Putin é a “saudade” da União Soviética.

Em Vila Real, em casa do meu avô materno, existiu por muito tempo aquilo a que chamávamos a “garrafa do muro”. A divisão forçada de Berlim, em 1961, tinha sido muito marcante, um pouco por todo o mundo, e seguramente também na minha família. Desde essa altura, havia por lá uma garrafa de vinho alemão, oferta de um familiar, que, ao que sempre ouvi, apenas seria aberta quando o muro de Berlim desaparecesse. Verdade seja que, à época, nunca se suspeitou que ele viesse a durar cerca de quatro décadas.

O meu avô morreu poucos anos depois, o muro continuou de pé e a garrafa andou, desde então, em bolandas, tendo ido finalmente parar a casa dos meus pais. Tenho perfeita noção de que, em 1979, quando atravessei pela primeira vez o “checkpoint Charlie”, para ir a Berlim Leste, me lembrei daquela garrafa de rótulo amarelado.

O muro caiu, faz agora 30 anos. Tenho bem viva uma conversa telefónica com o meu pai, naquele mesmo dia. Não me pareceu excessivamente feliz com a unificação alemã, não porque tivesse a menor simpatia pelo regime comunista de Leste, mas porque, como “aliadófilo” ferrenho que havia sido e eterno desconfiado da bondade do poder que a Alemanha continuava a ser, ecoava, por vezes, o dito atribuído a François Mauriac: “Gosto tanto da Alemanha que até prefiro ter duas…”

Tenho a certeza de que, brincadeira à parte, lá no fundo, ele se congratulava com o fim da Guerra Fria e a futura reconciliação germânica, embora, nos seus últimos anos, o visse sem a menor simpatia pela senhora Merkel. Se ele pudesse adivinhar que, nos dias de hoje, o filho já começa a ter saudades dela…

No Natal desse ano de 1989, fomos à procura da garrafa. Era, afinal, um riesling, um vinho branco alemão facilmente perecível, que só o otimismo histórico do meu avô havia considerado poder manter-se degustável. Estava, como era óbvio, uma imbebível zurrapa.

Dou-me frequentemente conta de que, tal como acontecerá na “östalgie”, tendemos a guardar na memória apenas o melhor do passado. Há talvez uma boa razão para isso: é que, no passado, a quase todos nós, o futuro que aí vinha parecia ir ser bem melhor.

quinta-feira, novembro 07, 2019

O meu trauma ferroviário


Ontem, no final chuvoso e já frio da tarde do Porto, ao aguardar em Campanhã o comboio que me havia de trazer de volta a Lisboa, surgiu-me à memória o tempo da infância em que as estações de caminho de ferro constituiam, para mim, um fator de ansiedade e alguma angústia.

As viagens em família faziam-se a partir de Vila Real, onde vivíamos. Íamos ao Porto, frequentemente a Viana do Castelo e, apenas raramente, a Lisboa. Os meus pais, durante anos, não tinham automóvel, pelo que se viajava quase sempre de comboio: de Vila Real à Régua, na velha linha do Corgo, dali até ao Porto, de onde se derivava para os restantes destinos. Ao todo, na vida, o meu Portugal ferroviário, salvo duas idas no Sud a caminho de Paris, um salto, numa tarde, a Cascais e umas viagens na linha de Sintra, esgota-se praticamente aí.

O meu pai era funcionário público, nesse tempo dos anos 50 em que a profissão não admitia o menor laxismo ou “balda”. Viajávamos nos fins de semana ou “queimando” um dia das férias do meu pai, que as contava ciosamente, para poder estar o máximo possível de tempo possível com a minha velha avó, que vivia em Viana. 

Era muita a gente que também viajava nesses dias. O meu pai fazia questão de nos comprar “primeira classe”, mas, mesmo assim, as carruagens iam quase sempre apinhadas e os lugares sentados escasseavam. 

Conseguir a proeza de não perder a ligação dos diversos comboios devia complicado, nesses períodos confusos e de enchentes de Natal, Páscoa ou “férias grandes”. Às vezes, ficava-se bastante tempo nas estações da Régua ou do Porto, num mundo de barulho e apitos, com o fumo e o vapor das máquinas a encher o ambiente, sem lugares nas salas de espera, sentados nas malas que eram então de uma útil dureza, a ver passar gente em correrias. 

Esse ambiente agitado e de pressa contida, sempre com o cuidado com as bagagens, tinha duas faces contrastantes: por um lado, o sentido, quase cosmopolita, do “glamour” de uma viagem (particularmente para quem, como eu, vinha de Vila Real); por outro, a noção, algo inquietante, de que não se conhecia ninguém à nossa volta, o receio face ao que era estranho. 

Absorvido pela tensão que me rodeava, fazia minhas o que achava serem as preocupações maiores do meu pai, que via a mirar constantemente o relógio e uns horários artesanais em papel quadriculado, que sempre elaborava de véspera, e que trazia cuidadosamente dactilografados (partidas a vermelho, chegadas a azul, lembro bem), tentando perceber se o acesso à linha do Minho se faria na estação de origem ou se já só íamos a tempo de “apanhar a ligação em Ermesinde”. 

Por muito tempo, posso hoje confessar, a própria palavra Ermesinde fazia soar em mim uma ideia de correria, de risco de perder um comboio, da angústia de poder ficar em terra. Há meia dúzia de anos anos, acreditem, parei uma tarde o carro em frente à estação de Ermesinde e passeei-me por ali com calma, como que a tentar esconjurar esses demónios de infância.

De outra vez, fiz exatamente o mesmo na estação do Tamel. Onde é o Tamel? É uma estação recôndita, perto de Barcelos, na linha do Minho, que tem, logo ao lado, um túnel. Ora eu, desde miúdo, odeio túneis ferroviários. Nada causava maior temor à criança que eu era do que entrar naqueles buracos negros, numa época em que o fumo das máquinas a carvão se entranhava no ar que se respirava nas carruagens, onde, durante a travessia, só sobrevivia uma escassíssima luz lúgubre, que me deixava em imenso sobressalto. 

Mas porquê o Tamel, em particular? Porque um dia, era eu um pirralho já não sei com que idade, o comboio em que íamos para Viana estacou, sabe-se lá porquê, no meio do túnel do Tamel. E por ali ficou uns minutos que me terão parecido horas, com a minha mãe a colocar-me um lenço para eu poder respirar melhor. Várias vezes ouvi os meus pais evocarem esse episódio, com uma estranha naturalidade, sem, pelos vistos, terem medido o efeito que em mim isso provocou. 

Os comboios nunca me sossegaram! Nem os TGV europeus nem os Amtrak americanos me fizeram reconciliar com aquelas memórias algo traumáticas de infância - embora o leitor já deva ter notado que anda por aqui, por este texto, muito exagero de estilo, para dar alguma cor à banalidade da vida. Mas uma estação de caminho de ferro continua a ser, para mim, o início de uma viagem algo angustiada, que não deixa de ser irónica para comigo mesmo, àquele meu passado. Não há nada a fazer! Ou melhor, há: é ir de automóvel!

quarta-feira, novembro 06, 2019

Tertúlia dos Carrancas


Fizemos hoje, no Porto, mais uma sessão da “Tertúlia dos Carrancas”, reunida no Museu Soares dos Reis, desta vez dedicada à Imagem de Portugal.

Quatro outros exercícios foram já feitos, nos últimos anos, tendo dado origem a publicações que servem de orientação a políticas públicas, sempre sob a orientação do professor Valente de Oliveira.

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...