Nos anos 60, em Vila Real, a récita do “1° de dezembro” reunia, no Teatro Avenida, os estudantes do Liceu e as suas famílias. Os alunos da Escola Comercial e Industrial, da Escola do Magistério Primário e do Colégio da Boavista não integravam então a “Academia”, por razões que o espírito do tempo explicava.
No liceu, havia então um estudante com grande talento teatral: José Viana.
Há muito que perdi de vista o Zé Viana, filho de um dentista que era nosso professor de ginástica, que sei que chegou a fazer incursões no teatro profissional e, se bem me lembro (mas posso estar a lembrar-me mal), trabalhava na TAP. Na vida lisboeta cruzámo-nos um par de vezes, já há muitos anos.
Numa dessas récitas, logo no início dos anos 60, o Zé Viana apresentou um monólogo que era, creio, da sua autoria. O texto era bem simples: “O branco e o preto”. Toda a arte estava na entoação dada àquelas palavras, que, quase por 10 minutos, ele conseguia ir transformando. É impossível explicar, sem suporte fonético, essa modulação inteligente, sublinhando cada vocábulo de forma diferente, “enchendo” um ou “esvaziando” outro, de forma interrogativa ou admirativa, em sonoridades imensamente criativas. Aquela “performance” ficou-me no ouvido para sempre. (Alguém, da Vila Real desse tempo, se lembra disto?)
Contudo, aquela prestação, se bem que original na forma, disse-me muito pouco em termos de conteúdo. Nessa noite, o meu pai, chegado a casa, comentou para a minha mãe: “Foi muito corajoso, o filho do Viana” (em Vila Real era-se “filho” de alguém até ter vida profissional própria; e mesmo assim...). Eu não percebi bem, mas aquilo ficou-me no ouvido.
Foi uns tempos mais tarde que somei dois-e-dois: pensando que aquela glosa teatral, em torno das palavras “preto” e “branco”, era feita numa época em que eclodira a primeira guerra colonial, em que as referências aos “turras” (fórmula popular para “terroristas”, como eram qualificados os guerrilheiros independentistas) estavam por todas as conversas, o atrevimento do Zé Viana era digno de imensa admiração. É que os tempos não iam fáceis para as relações entre pretos e brancos, nos dias da ida para Angola, “rapidamente e em força”.
Lembrei-me deste episódio, há minutos, no carro, ao ouvir, num noticiário, que o futebolista Bernardo Silva foi condenado por ter feito, no Twitter, uma graça tida como “racista” pelas autoridades do futebol britânico, não obstante o próprio “ofendido” ter já vindo a terreiro desmentir que se tivesse sentido alvo de qualquer “agressão” por parte daquele que é, de há muito, um seu grande amigo.
Fico espantado com a hipocrisia das vírgens do “politicamente correto”, que parece absolverem a sua consciência no escândalo façanhudo destas solenes retificações semânticas, arregalando os olhos quando, em lugar de falarmos em “afrodescendentes”, nos saem da boca, com a maior naturalidade e sem a menor intenção, as palavras pretos ou negros.
Esses puristas, contudo, parece não terem nenhuma preocupação em se interrogarem sobre se o verdadeiro e profundo racismo não estará, afinal, naquilo que parecem encarar como “natural”: que os negros continuem a ser, nas nossas sociedades desenvolvidas, as faixas de população económica e socialmente mais desfavorecidas. Isso, esse verdadeiro racismo das nossas sociedades, não parece preocupá-los nada.
A nós, também não nos preocupava que os estudantes que não eram do liceu não integrassem a Academia, lá por essa Vila Real dos anos 60...