André Gonçalves Pereira, que ontem morreu, com 83 anos, foi, por algum tempo, Ministro dos Negócios Estrangeiros, num governo presidido por Francisco Pinto Balsemão. O país ficou sempre com a sensação de que não terá gostado muito dessa sua curta experiência política.
Para mim, que nunca o cruzara pessoalmente, ele foi, por muitos anos, apenas uma figura pública conhecida. Advogado de largo sucesso, jurista brilhante, catedrático de Direito, fora assistente de Marcelo Caetano, que o não convencera a entrar na política. Era também um “socialite”, com fotos frequentes nas revistas sociais dos anos 80/90, a sua famosa “casa redonda”, na Quinta do Lago, e um muito respeitável gosto pela beleza feminina. Com o seu manual, eu tinha aprendido o Direito Internacional Público de que necessitei para entrar na carreira diplomática.
Era esse o André Gonçalves Pereira que eu conhecia até que, numa noite, no início de 1995, dele recebi um telefonema. Acabara de ser nomeado, pelo governo de Cavaco Silva, representante de Portugal no “grupo de reflexão” europeu que ia rever o Tratado de Maastricht. Contactava-me, por indicação do ministro dos Negócios Estrangeiros, Durão Barroso, para eu lhe “fornecer toda a informação disponível” sobre o processo de revisão daquele tratado, que se ia iniciar em breve. Eu era então subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, tendo esse assunto a meu cargo. “O ministro disse-me que você pode dar-me a papelada que há lá pelo ministério sobre o assunto”.
Com a delicadeza possível, expliquei-lhe que, dependendo eu do secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Vitor Martins, e não obstante as indicações que ele recebera diretamente do ministro, só lhe poderia facultar qualquer documentação reservada com prévia autorização daquele. “Claro que sim! Ele deve estar ao corrente. Fale com ele.”
Falei com Vitor Martins ... que não estava ao corrente! O seu ministro tinha nomeado alguém para ir opinar lá fora, em nome de Portugal, sobre a revisão do tratado europeu que estava em vigor, sem antes ter avisado o seu secretário de Estado - que era, como se sabe, um qualificado membro do governo e um respeitado especialista na matéria europeia.
Mas tudo acabou por se resolver. Criámos um “modus operandi” em que eu facultava a André Gonçalves Pereira as informações que o secretário de Estado entendia deverem “sair” dos nossos trabalhos internos. Nunca houve quaisquer problemas.
Gonçalves Pereira convidou-me um dia para almoçar no Ritz e, no final, fez-me uma proposta: “No “grupo de reflexão”, cada país tem um titular e um alternante. Gostava que fosse você a ocupar esse lugar de meu substituto. Teria muito gosto em que aceitasse. Depois desta conversa, concluí que nos daríamos muito bem a trabalhar em conjunto”. Fiquei surpreendido, confesso. Aceitei, mas perguntei-lhe se tinha “luz verde” de Durão Barroso para me formular o convite. Então, a surpresa foi dele: “Não, mas nem me passa pela cabeça que ele não aceite o seu nome, foi ele quem me disse para falar consigo”. Eu (cá por coisas...) insisti que ele devia verificar com o ministro. Saímos do almoço a tratar-nos por Francisco e André.
Nessa mesma noite, telefonou-me, furibundo. Eu tinha razão: Barroso levantara dificuldades a que eu fosse indicado para o “grupo de reflexão”, como seu substituto. Aparentemente, o meu nome não seria do agrado do gabinete do primeiro-ministro, Cavaco Silva. Gonçalves Pereira fora, então, inflexível: “Ou conto com o Seixas da Costa ou o governo muda de representante no grupo. Eu não fico, se o nome dele não for aceite”. Ora a indigitação de Gonçalves Pereira já saíra em toda a imprensa. Um seu abandono teria um impacto político.
O governo recuou e eu fui nomeado. A partir daí e até novembro, acompanhei André Gonçalves Pereira a todas as reuniões do “grupo de reflexão”, o chamado “grupo Westendorp” (nome do então secretário de Estado espanhol do Assuntos Europeus, que presidia ao grupo), substituindo-o mesmo em dois desses encontros. No essencial, eu preparava os “talking points” na base dos quais ele fazia as suas intervenções.
No início, o André seguia muito aquilo que eu lhe recomendava. Depois, começou a “navegar por si próprio”, afastando-se, muitas vezes, da orientação que era a doutrina base do MNE. Esse era o seu privilégio, como personalidade que, não sendo um simples funcionário, não tinha por isso uma disciplina institucional perante o governo, junto do qual tinha garantido um estatuto de total independência. Compatibilizar a subordinação às orientações de Vitor Martins, mas respeitando simultaneamente as posições de Gonçalves Pereira, não foi um equilíbrio fácil para mim, confesso. Mas levei “a carta a Garcia”.
André Gonçalves Pereira era um convicto europeísta. Muito mais do que, à época, eu era. E ia muito mais longe do que aquilo que o MNE queria que Portugal fosse, em termos de partilha europeia de soberania. Quanto eu lhe aconselhava prudência e o advertia para não assumir determinados riscos, respondia-me, galhofeiro: “Ó Francisco! Eu é que sou de direita, mas você, em matéria europeia, é que é o reacionário!”.
Divertimo-nos muito e ficámos amigos. Viajámos bastante por essa Europa, ele sempre com gostos requintados, em matéria de hotéis e restaurantes, vícios que eu aproveitava com o maior deleite. Dizia-me: “Eu, em Madrid, só fico no Ritz. E, em Paris, no George V. E a você nem lhe passe pela cabeça ir dormir a outro sítio!”. Nem sei bem como foram pagas essas belas bizarrias, já que a sua generosidade pessoal cobria os convites que me fazia para os almoços e jantares - do restaurante do Jockey Club, em Madrid, ao La Truffe Noire ou ao Comme Chez Soi em Bruxelas, ao Pierre Gagnaire ou ao Grand Véfour, em Paris, e outros locais requintados, de Londres a Amesterdão (“trabalha-se o dia na Haia, mas à noite vamos ficar no “L’Europe”, em Amesterdão”, ensinava-me), de Roma a Toledo, de Atenas a Messina e outros poisos.
O André era um epicurista de altíssimo refinamento, dos melhores charutos aos melhores vinhos, da mais sofisticada comodidade aos prazeres requintados levados ao extremo, com a naturalidade de quem sempre viveu assim, sem snobeira e sempre com muito bom gosto. Acho que, nesses meses, gastou bem mais do dobro daquilo que lhe pagavam para cumprir aquela tarefa, que ele fazia com competência e rigorosa dedicação à leitura que tinha do interesse nacional. Discutimos muito, aprendi bastante com ele, nem sempre concordando. E, repito, ficámos, para sempre, amigos.
Um dia, nesse ano de 1995, vieram as eleições legislativas. O PS ganhou, o PSD perdeu, Durão Barroso deixou de ser ministro e eu fui convidado para secretário de Estado dos Assuntos Europeus. No dia da posse, telefonei a André Gonçalves Pereira, depois de ter combinado isso com Jaime Gama e António Guterres, a convidá-lo a continuar, com o novo governo, como representante português no “grupo de reflexão”. Para o meu lugar, como seu “número dois”, indiquei Miguel Almeida e Sousa, que hoje é embaixador em Dublin. Meses depois, o grupo terminaria, esgotado o seu mandato e propósito.
Passei a ver menos André Gonçalves Pereira, que, contudo, tive o gosto de ter comigo no lançamento de dois livros que publiquei. Às vezes, encontrávamo-nos casualmente em lugares públicos, dávamos abraços, ele sempre com aquela gargalhada rouca que era a sua.
A partir de 2013, integrei, a convite de Artur Santos Silva, a comissão, presidida por André Gonçalves Pereira, que a Fundação Calouste Gulbenkian criou para orientação do trabalho da sua delegação em Paris. O André, por razões pessoais, deixou essa comissão tempos depois e eu vim a suceder-lhe na presidência.
Tenho imensa pena pelo desaparecimento de André Gonçalves Pereira. Recordo-o como um homem com forte personalidade, grande sentido de Estado, um jurista de primeira água, alguém que sempre procurou prestigiar o nome de Portugal.
Pessoalmente, devo-lhe um singular gesto de confiança pessoal, ao conferir-me responsabilidades que contribuiram para mudar a minha vida.