Ontem, soube que o meu velho amigo Coroliano Gonçalves Clemente está com problemas graves de saúde. O Coroliano, filho do senhor Clemente, polícia, era um dos meus companheiros de aventuras, nos últimos anos do liceu em Vila Real.
Lembro-me de ele ser um garboso graduado da Mocidade Portuguesa, ramo de atividade pelo qual nunca fui tentado a enveredar. Estou a vê-lo, mangas da camisa verde arregaçadas, sobre as calças castanhas, botas de Vanguardista, com os galões de Comandande de Bandeira (categoria abaixo de Comandante de Falange e acima de Comandante de Castelo - algumas das hierarquias dessa associação onde eu nem sequer tive interesse de chegar a Chefe de Quina).
O Coroliano era um pouco mais velho do que eu e, contrariamente a mim, fez vida por Vila Real. Alto, sempre um pouco curvado, fomo-nos cruzando e dando abraços de reencontro, ao longo dos anos, nas minhas visitas à cidade, onde ele era bancário, ali ao lado da Sé. Mas já há muito que o não vejo.
Por essa primeira metade dos anos 60, nas aulas de “Canto Coral”, o Coroliano, o Edmundo, o Chico Abel e eu criámos um “núcleo” que se colocava estrategicamente no topo do auditório e que se dedicava a desenvolver um processo de desestabilização das aulas. O professor era uma figura pequena, de seu nome Mário Neves, a quem dávamos, sei lá bem porquê, o nome de Quelhas. Lembro-me de que o Quelhas, uma figura pequena e lingrinhas, tinha uma Isetta, um patusco e minúsculo carro, cuja porta de abria pela frente. Por qualquer razão, o Quelhas, visivelmente, detestava-me, talvez porque eu teimasse em desinquietar as aulas e em rir à sua passagem. Fui expulso duas vezes das aulas do Quelhas.
Um dia, esse nosso “núcleo” aproveitou uma pausa na aula e testou uma breve canção que eu tinha aprendido com um amigo da família, e que há dias ensaiávamos nos intervalos. Na altura eram muito vulgares, na televisão, os grupos, em especial americanos, que cantavam “a capela”, sem música. Acho que nos inspirámos neles. A curta letra da “canção” que eu trouxera não era notável: “O circo desceu à cidade / numa tarde de imenso calor / trazia focas e ursos / e até um grande domador”. Depois, separadas as palavras com ênfase, dizia-se: “Mas / a principal atração / era o rapaz do trapézio voador / que num salto de grande emoção / se estatelava com grande fragor”. O Coroliano tinha-se especializado, entre o “grande emoção” e o “se estatelava”, a produzir na madeira da bancada em frente dos nossos assentos, um “solo” de imitação de bateria, para criar “suspense”. O Quelhas, tomado de surpresa pela ousadia, tinha deixado prosseguir a cantoria mas irritou-se com o “solo” do Coroliano, que levou à conta de gozação. E pô-lo “na rua”.
Foi o bom e o bonito! O pai do Coroliano, embora já aposentado da polícia, mantinha toda a “doçura” inerente à profissão e sabia-se que, logo que soubesse da expulsão do filho, ia ter uma reação irada. Foi necessário uma “delegação de meninas” ir implorar ao Quelhas que “limpasse” a falta ao Coroliano, caso contrário o senhor Clemente dar-lhe-ia “um enxerto de criar bicho” (espero que as novas gerações entendam isto). A diligência teve sucesso, o Quelhas recuou e, pasme-se, autorizou mesmo a que, na aula seguinte, repetíssemos a “performance”, que recolheu fortes aplausos. Mas o historial do “quarteto” esgotou-se, para sempre, nesse minuto de glória.
O Coroliano, nesse dia legitimado pelo Quelhas, fez o seu “solo” manual na madeira com um garbo nunca visto. Não sei se ele ainda se lembra desse momento da nossa fátua glória, mas anoto-o aqui com um abraço de forte amizade, agora que a vida parece que lhe está a pregar uma partida, desta vez sem qualquer graça.