segunda-feira, outubro 23, 2017

José Palla e Carmo


Há algumas pessoas que gostaria de ter encontrado ao longo da minha vida. Uma delas foi José Palla e Carmo, curiosamente pai de uma querida amiga, a Bárbara, a quem eu nunca disse isto. 

Palla e Carmo nasceu em 1923 e morreu em 1995. Era diretor bancário, especialista em literatura americana, crítico, tradutor e outras coisas mais no mundo das letras. Realizava-se através de uma escrita bem disposta, culta, quase surrealista. Dizem-me que era uma pessoa divertidíssima. Escrevia lindamente e (creio) tudo quanto publicou assinava como José Sesinando. Andei uma vida a pensar que era um pseudónimo, quando afinal, na realidade, são também verdadeiros nomes seus.

Há pouco, “cruzei-me”, num estante, com a sua “Obra Ântuma” (escusam de ir ao dicionário, é um neologismo que significa “antes de morrer”). E, por via desse ”encontro”, lembrei-me de uma história que ouvi contada, há semanas, por Vasco Vieira de Almeida, seu amigo e chefe no BPA.

Um dia, o banco recebia uma delegação americana, do grupo Rockfeller, que andava a selecionar instituições nas quais pretendia investir na Europa. Esse contacto era, assim, muito importante. Palla e Carmo era o diretor internacional, mas Vasco Vieira de Almeida, conhecendo a verve humorística do seu colaborador, achou dever avisá-lo de que ele deveria deixar-se de brincadeiras durante a reunião, tanto mais que os americanos só costumam achar piada às suas próprias graças.

O encontro corria bem. Palla e Carmo mantinha-se no combinado mutismo, até que um dos visitantes, mirando-o diretamente, perguntou: “Quantas pessoas trabalham no banco?”. Era um “estímulo” demasiado para Palla e Carmo, que logo respondeu, de forma curta, mas clara: “50% !”

(A imaginativa fotografia de JPC a ler um jornal é da autoria do seu irmão, o arquiteto Victor Palla)

domingo, outubro 22, 2017

Santana Lopes

O PSD está cada vez mais PPD/PSD. Tendo conseguido garantir-se já como a continuidade “soft” de Pedro Passos Coelho, cuja larga maioria dos apoiantes tem a seu lado, Santana Lopes parece estar já um bom passo à frente de Rui Rio, a quem é muito evidente faltarem nomes de “notáveis” em seu apoio.

O jornalismo é isto?

Ontem, no “Público”, João Miguel Tavares escrevia coisa espantosa: ”Acredito que o dever de quem escreve nos jornais é, em primeiro lugar, denunciar o que está mal. Mas pode - e deve - haver exceções”.

Não sabia. E gostava de saber se as pessoas, ligadas ao jornalismo, que acaso leem esta página concordam com esta asserção perentória que ajuda muito a explicar o caráter maioritariamente negativo do que surge na nossa comunicação social, a propósito do nosso dia-a-dia.

Para mim, como leitor, gostaria de ver uma comunicação social que, sem esconder e sabendo revelar com rigor o que vai mal por aí, desse igual destaque ao que vai bem, ao que melhora, transformando-se num instrumento da esperança no futuro.

sábado, outubro 21, 2017

Arménio Mendes e o Consulado em Santos


Nos últimos dois anos da minha estada como embaixador no Brasil, vi-me confrontado com a decisão de Lisboa de efetuar uma redução da rede consular portuguesa no país e, muito em particular, de diminuir drasticamente a presença de diplomatas à frente dos postos que viessem a ser mantidos. Não me interessa, aqui e agora, analisar as razões - algumas financeiras, outras de sujeição a lógicas corporativas - que estavam por detrás desta orientação, mas devo dizer que, no íntimo, sempre considerei a sua legitimidade e eficácia de efeitos mais do que duvidosa. 

Como principal responsável diplomático português no Brasil competia-me, no entanto, fazer aquilo que cabe a um servidor público: expressar, frontal mas discretamente, a minha opinião (e ela era oposta à do governo) mas, no final, cumprir, lealmente e da melhor forma possível, a decisão final que acabasse por ser tomada. Em matéria de opções sobre a rede consular, aliás, a minha experiência profissional viria a ser interessante nos anos seguintes: no Brasil, contrariei abertamente um governo socialista; mais tarde, em França, opus-me a um executivo PSD/CDS.

Uma das decisões mais controversas que havia sido sugerida por Lisboa era o encerramento, puro e simples, do Consulado português em Santos, onde, desde há muitas décadas, funcionava uma unidade chefiada por um funcionário diplomático. Com o argumento de que havia um Consulado-Geral em S. Paulo, a menos de uma centena de quilómetros, a orientação inicial de Lisboa ia no sentido de encerrar aquela unidade que, desde há muitas décadas, cobria a cidade de Santos e a Baixada Santista. Isso não só significava, na minha perspetiva, um desserviço prático à importante comunidade portuguesa local como representava uma falta de respeito devido à relevância histórica da presença oficial nacional junto de um setor da nossa diáspora onde existia um movimento associativo da maior importância e prestígio. Esses setores, bem como as autoridades locais, não deixaram de reagir publicamente da forma mais veemente - a meu ver com toda a razão (embora eu lha não pudesse dar, porque me competia representar a orientação de Lisboa, fosse ela a que fosse, errada ou certa).

Perante a determinação de acabar com a unidade consular em Santos chefiada por um funcionário do MNE, a minha proposta "de recuo", para minorar o impacto da medida, foi propor a criação de um Consulado Honorário em Santos, dependente do Consulado-geral em S. Paulo. Era, à partida, uma solução insatisfatória, mas era "the next best", porque permitiria a permanência de uma unidade física em Santos. Aceite por Lisboa, com visível relutância, a minha proposta, restava escolher a personalidade para o cargo.

Um cônsul honorário é alguém que não emerge do serviço público do Estado que vai representar. Tanto pode ser um seu nacional como alguém que tenha a nacionalidade do país onde vai atuar, ou ser mesmo de outra nacionalidade. Escolhem-se, em princípio, figuras cuja potencial disponibilidade pessoal se possa constituir numa ajuda para os cidadãos portugueses, residentes ou de passagem, pelo que vulgarmente se tentam encontrar personalidades com um bom entrosamento local, respeitadas pelas nossas comunidades e, simultaneamente, com prestígio (e até influência) na área geográfica onde vão atuar. Os cônsules honorários não têm todos as mesmas competências. Alguns são apenas figuras de representação, a outros são pedidas tarefas e diligências várias, pelo que lhes é fixado um quadro de competências mais alargado. Esse era o caso de Santos, onde ia ser encerrado um consulado de carreira e se pretendia criar um escritório que pudesse estar à altura das expetativas de continuidade da nossa comunidade.

As diligências para a seleção de um cônsul honorário são quase sempre muito complexas. Sendo embaixador em Brasília, a uma imensa distância física, eu não podia ter uma visão concreta da lista potencial de pessoas a contactar - pessoas a quem ia ser pedido trabalho delicado, a troco de uma remuneração mínima, com grandes responsabilidades. Fazer muitos telefonemas, a procurar ou sondar nomes, era o primeiro passo para o assunto “cair na rua”. Aceitar candidaturas auto-propostas foi sempre algo que rejeitei. Tinha assim de ser muito discreto (já tinha nomeado outros cônsules honorários e sabia da dificuldade da tarefa), embora, no final, eficaz. 

Numa conversa com um quadro superior da banca portuguesa em S. Paulo, João Teixeira de Abreu, pessoa da minha confiança, que sabia ter regulares contactos em Santos, cheguei ao nome de Arménio Mendes. Não para o indicar como futuro cônsul honorário (Arménio Mendes, que eu conhecia pessoalmente, era um homem profissionalmente muito ocupado, cuja previsível falta de disponibilidade o colocava “fora da lista”) mas para o utilizar como fonte fidedigna de conselho sobre um possível nome a propor a Lisboa. Tratava-se de um empresário prestigiado e de sucesso, uma figura altamente respeitada localmente, pela comunidade e pelas autoridades. Com ele falei, por diversas vezes, desenhando o perfil desejável, aventado sucessivos nomes que nele coubessem. 

Ao final de algumas semanas, mantinha-me insatisfeito. Por uma razão ou por outra, as pessoas que íamos alvitrando não correspondiam ao “modelo” desejado, por terem resistências em setores da comunidade, problemas pessoais ou falta da disponibilidade necessária. O tempo passava, a solução temporária que eu tinha gizado para o Consulado em Santos estava a esgotar-se e Lisboa devia já “esfregar as mãos” de contentamento: sem uma solução razoável por mim apresentada, Santos fecharia, tal como originalmente fora desejado.

Numa nova conversa com João Teixeira de Abreu pedi-lhe uma derradeira diligência: que abordasse o próprio Arménio Mendes, no sentido de aferir da sua disponibilidade para aceitar o cargo. Eu far-lhe-ia o convite, se ele verificasse o mínimo de abertura para a respetiva aceitação. Assim se fez. Arménio Mendes ficou surpreendido, começou por resistir imenso à ideia mas, depois de várias insistências e apelos meus, e colocando condições mínimas da sua parte, acabou por aceitar a tarefa que eu lhe propunha.

Foi uma solução que se revelou mais do que excelente. De um Consulado que estava a funcionar com regulares queixas, Arménio Mendes, com o espírito empreendedor de quem sabia o que fazia, estruturou, em grande parte a expensas suas, uma unidade consular modelar, que passou a satisfazer bem melhor a nossa comunidade santista, tornando-se mesmo num exemplo para a rede consular portuguesa no Brasil. Saí do país muito satisfeito com a solução encontrada e, à distância e com grande agrado, fui acompanhando o seu crescente sucesso.

Há dias, essa dedicada figura do jornalismo português no Brasil que é Odair Sene deu-me conta da doença grave que rondava os dias de Arménio Mendes. Pedi-lhe que fosse portador do meu solidário abraço para ele. Há dias, com grande pena minha, através do nosso amigo comum João Teixeira de Abreu, recebi a notícia do seu falecimento. Com as condolências à sua Família, seguem aqui também os meus votos de que seja possível encontrar para Santos um cônsul honorário à altura daquele que agora desaparece.

sexta-feira, outubro 20, 2017

Olhar para o lado


Vou ser sincero. Habituei-me desde sempre a uma Espanha unida, não porque tenha um gosto particular pelo atual formato do nosso único vizinho terrestre, mas porque fui profissionalmente “treinado” para lidar com “nuestros hermanos” nesse modelo. 

Na vida diplomática, rotinamo-nos a viver com as circunstâncias. Na vida dos povos há sempre um “comodismo” que limita a vontade de se verem confrontados com o novo. Em política externa, isso é visivelmente assim.

A Espanha una é um parceiro que a História nos forçou a conhecer razoavelmente bem. Passado o tempo das desconfianças identitárias, disfarçadas no olhar de viés das alianças de oportunidade, em tempos de exceção autoritária, a entrada comum para a Europa política, num registo democrático, limitou fortemente o risco das crises, encaixadas que estas foram no normativo integrador, impulsionado pelo exterior. 

A Espanha, contudo, continua a não ser um interlocutor fácil, sempre que entende que estão em causa interesses próprios que reputa como essenciais. Da gestão dos rios comuns a Almaraz, dos limites marítimos de pesca à definição geopolítica e económica das águas atlânticas, do protecionismo por via de expedientes administrativos ao egoísmo na gestão das redes de energia, Madrid tem mostrado que pode, de um momento para o outro, transformar a normalidade num problema.

O interesse comum é, como resulta óbvio, tentar atenuar todas as tensões conjunturais que possam emergir. Nesse esforço, contudo, Portugal revela-se, em regra, bastante mais empenhado do que o seu vizinho, talvez porque este se sente confortado pela maior força relativa. Tentamos não magnificar os dissídios e procuramos quase sempre (mas nem sempre) controlar a expressão mediática dos confrontos. Não nos assustam os conflitos, até porque, no quadro internacional sereno em que nos movemos, sabemos que os podemos ganhar, desde que a razão claramente nos assista. Mas procuramos, sabiamente, evitá-los, porque entendemos que a sua cumulação pode acarretar desagradáveis sinergias negativas. Não é essa, frequentemente, a postura de Madrid. Não é um drama, mas pode converter-se num incómodo conjuntural. 

A nossa relação bilateral com a Espanha é hoje, contudo, francamente saudável e, felizmente, não depende de qualquer sintonia ou cumplicidade político-ideológica entre os dois lados da fronteira. O espaço para entendimentos ultrapassa assim, em muito, a margem provável para a emergência de dissídios.

E o futuro? E se a Espanha entrar em ebulição? E se o centralismo, potenciado pelo nacionalismo que sopra de Castela, não resistir à tentação de partir para o embate com o secessionismo e enveredar por uma aventura interpretada como uma “ocupação” pelo orgulho catalão? E se as ruas de Barcelona se converterem à agitação, em moldes que redundem em cenas de violência, da qual saiam vítimas que, como bem se sabe, podem ser “a faúlha que incendeia a pradaria”, como alguém disse um dia?

Não há muito que, por ora, possamos fazer. De uma coisa estou certo: no atual estado de coisas, devemo-nos manter fiéis ao diálogo exclusivo com Madrid. Se e quando alguma coisa vier a ser feita do exterior, intervindo na questão interna espanhola, só deveremos apoiá-la desde que tal não seja desconfortável para as autoridades centrais espanholas. Qualquer sinal de estímulo da nossa parte a uma “balcanização” da Espanha, além de nos colocar perante a natural reação indignada do seu governo, representaria um salto irresponsável no “escuro” político. Bem basta se isso vier, de facto, a acontecer. Nesse caso, lá teremos de abandonar a nossa “preguiça” estratégica e descobrir soluções para os novos problemas. Estar a antecipá-los seria convocar fantasmas antes do Halloween, e este é só para a semana.

Um futuro diferente


Foi há pouco mais de um mês, no empedrado de Andorra-a-Velha, que o presidente da República desabafou para os jornalistas: “Quando viro à direita, em Portugal, a direita não nota”. Era uma óbvia mensagem, que alguns entenderam algo precipitada, para tentar responder à orfandade que se sabia atravessar uma parte do país político, desiludida com aquilo que lhe parecia ser um conúbio entre Marcelo Rebelo de Sousa e o governo de António Costa. 

Ao longo de mais de um ano, esse setor político viveu num desespero quase patético. Das ironias iniciais que se ouviam ou liam contra o presidente que lhe não tinha ficado a dever quase nada na eleição de janeiro de 2016, a direita portuguesa tinha já entretanto desembestado contra Marcelo Rebelo de Sousa. Esse barómetro do radicalismo conservador que é a “opinião” de um jornal informático, somado a certos opinadores e a espaços conhecidos nas redes sociais, reclamava diariamente pela simpatia que o chefe de Estado parecia destilar em favor do governo. Alguns já nem estranhavam: “É o Marcelo, pronto, que se há-de fazer!” Houve mesmo quem dissesse que o avanço de Santana Lopes se tinha destinado a colocá-lo como alternativa potencial a um presidente que, não obstante a sua esmagadora popularidade, se tinha deslocado demasiado da sua base natural de apoio.

O discurso de Oliveira do Hospital tudo mudou. Críticos ácidos do presidente sentiram-se subitamente confortados com a severidade inequívoca de Marcelo para com o governo, com a distância marcada face a António Costa, com a afirmação de uma “magistratura de interferência”, que acentua claramente uma das leituras do nosso semi-presidencialismo.

Ao dizer o que disse, em palavras escritas para serem lidas ao microscópio, Marcelo Rebelo de Sousa sabia duas coisas: que estava em básica sintonia com o sentimento maioritário prevalecente no país e que, a partir daquele momento, algo iria mudar na sua relação com o governo. Ao ter encostado António Costa “às cordas” políticas, obrigando-o abertamente a uma remodelação e sujeitando-o a um indiscutível “ralhete” público, o presidente tinha plena consciência de que estava aberta uma ferida na “lua-de-mel” que vivia com a maioria, por muito que esta agora possa ser tentada a assobiar para o ar.

A direita parece hoje reconciliada com Marcelo, fazendo figas para que o discurso de Oliveira do Hospital seja o início de uma viragem drástica no relacionamento entre Belém e S. Bento. Julgando conhecer as personagens principais no terreno, quero crer que nem o presidente, a partir de agora, vai ser tentado a forçar excessivamente a mão ao primeiro-ministro, nem este vai ceder à tentação de exteriorizar qualquer acrimónia institucional. Mas uma certeza tenho: nada será igual daqui para a frente, embora ninguém saiba o que, de facto, o futuro nos vai trazer de diferente. 

(Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”)

quinta-feira, outubro 19, 2017

Uma noite à Bertelo


Foi em 9 de março de 1966 (confirmei agora na net). O Benfica recebia, no velho estádio da Luz, o Manchester United, para a Taça dos Campeões Europeus. (Como ontem aconteceu, desta vez para a Champions). Nessa fatídica noite, o Benfica perdeu por 5-1. 

(Curiosamente, poucos meses depois, uma seleção nacional com a sua linha avançada do Benfica (José Augusto, Eusébio, Torres, Coluna e Simões) iria garantir o 3° lugar no Campeonato do Mundo... mas que foi ganho pelos ingleses.)

Voltemos à tal noite de 1966, na Luz. De Vila Real, havia-se deslocado a Lisboa um grupo de fanáticos "lampiões". Decidiram trazer com eles, oferecendo-lhe o bilhete, o António "Bertelo", figura típica da cidade, carregador de peixe e tarefeiro para tudo quanto viesse à rede, benfiquista à 5a potência, desvairado com a sua equipa de sempre, como toda a cidade bem sabia. 

Desde o início do jogo, as coisas correram mal ao Benfica. A tribo de Vila Real foi então surpreendida com o facto do Bertelo parecer entusiasmado com os primeiros avanços do Manchester United, incitando a equipa com berros da bancada. E logo, de um deles, saltou um "cachaço" para a cabeça do Bertelo, da parte de um furioso vila-realense que não estava a perceber aquela traição, em forma de aplauso ao "inimigo".

A explicação ficou para sempre no anedotário da "Bila". O Bertelo via bastante mal. O Benfica, nessa noite, como era então hábito quando as equipas visitantes tinham um equipamento da mesma cor do do anfitrião (e, nesse tempo, as camisolas não variavam, de jogo para jogo, como hoje acontece, para potenciar o "merchandising"), jogava com um equipamento branco. Os "Red Devils" mantinham-se assim de vermelho (na imprensa escrevia-se "encarnado", porque a censura não deixava "passar" a palavra, temente de conotações políticas). Ora, para o Bertelo, os vermelhos sempre tinham sido os do Benfica e, por isso, durante algum tempo, entusiasmou-se com os que assim equipavam. Até que o tal "cachaço" o fez entrar na ordem e, seguramente, na tristeza pela "abada" histórica que ficou para os anais da Luz. Ontem, mesmo perdendo em casa, o Benfica "melhorou", desde essa noite do Bertelo...

quarta-feira, outubro 18, 2017

No adeus


Constança Urbano de Sousa era, de há muito, a mais previsível remodelação que o primeiro-ministro teimava em não fazer. Porque as mudanças de governantes são lidas, em regra, como a constatação implícita de que algo falhou, os chefes dos governos adiam-nas até ao limite do suportável. E, claro, evitam sempre fazê-las sob pressão. Até ao dia em que isso também ocorre, como foi o caso.

A agora ex-ministra pode não ser a pessoa mais dotada para o exercício de um cargo político - e, sinceramente, acho que isso nada tem em si de negativo para ninguém, exceto se tiver de exercer... um cargo político! O seu discurso, recheado de óbvia sinceridade, ficou, por vezes, ao lado daquilo que parecia ser o mais adequado dizer. O seu ar permanentemente sofrido transmitia uma imagem angustiada e quase anti-política, num mundo em que a passagem de um mensagem de confiança se torna absolutamente essencial - em especial numa área governativa que lida com a gestão de temores públicos.

Nunca falei com Constância Urbano de Sousa. Mas, pelo que dela sei através de quem a conhece bem, e também por ter observado a forma como exerceu o cargo, tenho-a por uma pessoa extremamente dedicada à causa pública e intelectualmente muito capaz. Falhou na missão de que António Costa a encarregou? Talvez, mas, para além das culpas próprias, acho que ela foi também o bode expiatório mais óbvio de tudo quanto correu mal - das insuficiências funcionais aos picos climáticos, da falta de planeamento florestal ao insuportável impacto das mortes ocorridas. 

Sinto agora a obrigação de dizer isto, porque é isto que penso, por muito impopular que isto agora possa ser.

Ajuda

Se Pedro Passos Coelho pensou que abandonar o sótão político onde o país o via confinado ia ser uma ajuda à oposição no combate contra o governo, julgo que se engana redondamente. (Aliás, vai ser muito interessante observar se os putativos candidatos à sua sucessão seguem o seu discurso). Creio também que a lider conjuntural da oposição não lhe vai agradecer muito esta inusitada aparição.

terça-feira, outubro 17, 2017

E agora, António?


“Toda a vida é feita de mudança”, escrevia Camões. Em poucos meses, do Portugal otimista - do Europeu à Eurovisão, dos sorrisos das agências de “rating” ao namoro Belém-S. Bento, do deslumbre dos turistas ao colorido orgulho nacional, enfim, do país das maravilhas abençoado até pelo papa - caiu-se na depressão, por culpa da tragédia dos fogos e dos mortos que eles trouxeram. A tragicomédia de Tancos também ajudou ao fim da festa. E a fácil ciclotimia emocional lusitana confirmou-se, uma vez mais. 

Há que convir que o governo não tem conseguido gizar um discurso totalmente convincente, pelo que uma parte do país, mesmo dentre aqueles que o apoiam, passou a colá-lo à insegurança que hoje visivelmente muitos sentem. Alguns já pensam que o executivo “is in office, but not in charge”, para usar a clássica dualidade anglo-saxónica. Governar é também saber transmitir confiança, e esta está hoje visivelmente em carência. 

As pessoas até sabem que o estado da floresta é o que é, que a inconsciência e o crime espreitam por aí, que a meteorologia tem sido excecionalmente adversa, que os meios disponíveis seriam sempre finitos e insuficientes se acaso as condições ultrapassassem, como ultrapassaram, o razoável e o expectável, que quem chefia as operações fez seguramente todo o melhor que sabia, fosse o que fosse esse melhor - sabem tudo isso, mas não conseguem aceitar o que lhes sucedeu. A racionalidade é um bem escasso, por estes tempos, com tantas tragédias em cenário de fundo.

Saído de uma vitória eleitoral sólida, há meia-dúzia de dias, António Costa vê-se assim, da noite para a manhã, objeto de um clamor nacional, fruto de um imenso desespero, convertido em desesperança. O presidente da República, sintonizado com a óbvia emoção das pessoas, entrega agora ao parlamento a resposta sobre a sustentabilidade da solução política que gere o país. E sublinha isso com rara ênfase. Coloca-se numa posição de atentismo, o que é um claro recuo face ao modo como vinha a relacionar-se até aqui com o executivo. Porém, ele também sabe que não tem, por ora, condições para proceder a um teste eleitoral relegitimador, tanto mais que o principal partido da oposição vive uma indefinição interna. 

Escrevi “por ora”: é ao governo, é a António Costa que compete criar condições para que Marcelo Rebelo de Sousa não venha a ter essa tentação. Cada dia que passe sem que o país mude da perceção em que parece ter caído torna as coisas mais difíceis, tudo agravado por uma comunicação social crescentemente hostil, com uma oposição sem sombra de vontade de compromisso, com um apoio político-partidário ao governo ainda atravessado por várias tensões. É, porém, nestes momentos complexos que os verdadeiros líderes se testam. António Costa tem aqui o seu grande exame. Por mim, continuo plenamente confiante em que será aprovado. Alguns acharão que se trata apenas de “wishful thinking”. Logo veremos.

segunda-feira, outubro 16, 2017

Incêndios


Atravessei ontem parte do país, nas piores horas dos fogos. Cruzei-me, ao longo de autoestradas e de estradas secundárias que por vezes fui forçado a seguir em alternativa, com dezenas de fogos, que se sucediam num ritmo incrível e quase surreal. Senti o clima sem pinga de humidade, o vento forte que fazia aproximar as chamas da estrada, mudando de sentido de quando em quando.

O ordenamento das matas é o que é, os meios de combate disponíveis são finitos, a conjuntura climatérica que vivemos é de uma reconhecida excecionalidade. Nenhum país do mundo está preparado para ocorrências destas dimensões. Como se vê, aqui ao lado, em Espanha.

Percebo a tentação para fulanizar politicamente as culpas, mas entendo que se trata de um ato de despero sem sentido tentar encontrar culpados fáceis naquilo que a natureza nos impõe, por estes dias, como quase inevitável.

O futuro na Unesco

No seio das várias atitudes controversas que Donald Trump tem vindo a tomar na ordem internacional, o anúncio da saída dos EUA da Unesco deve ser visto como significativo, mas, no entanto, como um episódio menor. A circunstância de Israel ter acompanhado a atitude americana revelou a racionalidade subjacente: foi uma resposta a decisões recentes que, no âmbito da organização, foram tomadas num sentido que as autoridades israelitas interpretam como hostis aos seus interesses.

A Unesco é uma agência da constelação das Nações Unidas dedicada à educação, à ciência e à cultura. Ela é mais visível, contudo, na leitura das opiniões públicas, pela classificação dos Patrimónios, de natureza material e imaterial, disputadas pelos vários países, como fatores de prestígio, com consequências económicas não despiciendas. Não obstante os seus objetivos poderem indiciar alguma neutralidade temática, tornou-se evidente, ao longo do seu historial, que a Unesco se foi transformando num palco secundário dos grandes afrontamentos políticos à escala global. Por um tempo, a Guerra Fria e as questões do então chamado Terceiro Mundo marcaram os dias da Unesco. Em crescendo, o diferendo israelo-palestiniano transportou para aí toda a sua acrimónia. 

A partir de certa altura, o mundo ocidental revelou um certo incómodo com o curso tomado pela organização, vista como um instrumento para agendas adversas aos seus objetivos. Os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo, haviam já assumido, no passado, gestos de afastamento da Unesco, com consequências graves nas respetivas contribuições financeiras. Outros Estados não deixaram de mostrar sintomas de idêntico desagrado, apenas minorados pelo imperativo de terem de manter um relacionamento minimamente eficaz, no plano diplomático, com zonas do mundo que usavam a organização para dar relevo às suas especificidades culturais ou de relativismo civilizacional, como era o caso do mundo islâmico. Algum regular viés doutrinário em certas decisões geradas no seu seio, embora de forma indiscutivelmente democrática, contribuíram para que a Unesco sempre mantivesse a si associado um registo polémico, bem patente nos momentos de mudança dos respetivos diretores-gerais. 

Convém, no entanto, ser justo: dentro da Unesco, continuou sempre a a ser desenvolvido, em muitas e importantes áreas, um trabalho reconhecidamente notável, da maior importância no plano científico e cultural, que garantiu à organização um lugar interessante, respeitado e prestigiado no universo multilateral. 

A recente decisão da administração Trump de abandonar a Unesco insere-se naquilo que é manifestamente o multilateralismo "à la carte" que Washington assumiu como doutrina: utilizar o mundo das organizações internacionais quando ele convém à sua agenda nacional e atuar, nas áreas multilaterais onde os seus interesses não são servidos, de uma forma hostil e até agressiva. Acho, aliás, que estamos apenas no início desta coreografia política da equipa de Trump.

Como sairá a Unesco desta crise? É evidente que os tempos futuros não vão ser fáceis para a organização, mas a verdade é que a atitude americana que vinha do passado também já tinha conduzido a Unesco a restrições muito fortes em vários dos seus programas. Os próximos anos serão complexos, mas talvez o facto da nova diretora-geral, há dias eleita, ser francesa possa trazer a Europa para um papel mais importante na Unesco. E isso faria toda a diferença.

Nós e a Unesco

O nosso país tem um historial interessante na Unesco e um registo de relação muito frutuosa com a organização. Muito embora tivéssemos o trauma de uma candidatura frustrada, em 1987, à sua liderança, com Victor Sá Machado, figuras houve – como Ernesto Melo Antunes, Maria de Lourdes Pintasilgo ou José Augusto Seabra – que aí granjearam forte prestígio. Também Mário Ruivo e José Mariano Gago são nomes portugueses que, ainda nos dias de hoje, são mencionados com grande respeito pelos corredores da organização, pelas contribuições de altíssima valia que lhes são reconhecidas, respetivamente nas questões da política dos Oceanos e nas áreas da Ciência.

Em tempos mais recentes, Portugal obteve na Unesco vitórias importantes, quer em eleições para as suas estruturas, quer no sucesso de candidaturas ao estatuto de Património material e imaterial. Além disso, passa muito pela Unesco o esforço que o nosso país, em articulação com os restantes Estados que falam português, desenvolvem para a consagração global da sua língua comum, suporte das diversas culturas que nela se expressam.

Foi à revelia destes interesses que a Unesco foi surpreendida, em 2012, com a retirada do embaixador representante permanente que, desde sempre, Portugal mantivera junto da organização, passando a entregar essa função, em acumulação, ao representante diplomático em França. Sei do que falo, porque fui precisamente o diplomata que, pela primeira vez, teve de acumular ambos os “chapéus”, numa ubiquidade quase impossível. 

A Unesco fez-nos então sentir o desagrado pelo gesto, tanto mais incompreensível quanto tínhamos acabado, com alarde nacional, de ver o Fado consagrado como Património Imaterial e, na nossa agenda, figuravam difíceis dossiês que, nas condições materiais e humanas em que passámos a ser forçados a trabalhar, foi muito difícil levar a cabo. Quer eu quer o colega que me sucedeu nessas funções fizemos o que nos foi possível. Mas devemos assumir que este tempo foi um “parêntesis” que é preciso abrir.

Portugal deve, dentro em breve, ser eleito para o Conselho Executivo da Unesco, o órgão máximo da organização, depois de uma magnífica campanha montada pela nossa diplomacia. Não quero dar conselhos a quem deles não necessita, mas acho que seria este o momento de Portugal indicar de novo um embaixador dedicado exclusivamente à Unesco, reatando uma tradição perdida num momento menos feliz da nossa história prestigiada dentro da organização. 

(Artigo hoje publicado no "Diário de Notícias")

domingo, outubro 15, 2017

Manuel Freitas


Há quanto tempo nos conhecíamos? Nem sei bem. Há bem mais de meio século, pela certa. O Manuel (Manel, como eu o tratava) era mais velho do que eu alguns anos. E um ano, no tempo da adolescência, faz (ou fazia) uma imensa diferença. Lembro-me dele a namorar a mais bonita rapariga de Viana, a minha prima Filomena. Mantínhamos, por essa época, uma cordialidade algo cerimoniosa. Era originário da zona de Aveiro, o tio, que o protegia, tinha em Viana uma importante ourivesaria, perto da Praça, junto à Matriz. O Manel andou entretanto pela tropa, em Moçambique. Depois, foi para o Porto acabar Económicas. Aproximámo-nos por lá. Ele, no entanto, estudava e eu só fingia que o fazia. Vivíamos em ruas paralelas, ele no Breyner, eu na Miguel Bombarda, ambos com quartos a meias com colegas. O dele tinha um sofá, o meu não (lembrei-lhe eu, rindo-nos, ainda no mês passado). Jantávamos no Zé dos Bragas, íamos ao café ao Centro (o Centro Universitário do Porto, detestado pela esquerda), onde fiquei amigo de muitos dos seus amigos. O cinema juntáva-nos com alguma frequência (vimos e discutimos o "Barbarella" numa tarde no Rivoli, comigo a detestar o filme e ele mais preso à graça da Jane Fonda). Depois, casou com a tal mais bonita rapariga de Viana. A partir daí, o Manel passou a ser uma visita que eu sempre cumpria, com gosto, nas minhas frequentes idas (melhor, vindas, porque escrevo isto aqui) a Viana. Vi nascer-lhes e crescer os filhos e assisti à tragédia que, sucessivamente, foi a desaparição, ambos em condições trágicas, da Marisa e do Eduardo. Notei, entretanto, o seu gosto crescente pela cidade que fez sua, a sua militância política (foi fundador local do PPD), o seu empenhamento cívico, com voz forte, nas televisões, pelos interesses locais. Exprimia-se lindamente, era culto e preparado, frontal nas posições e forte nas ideias que exprimia, não desdenhando uma boa polémica, o que o não tornou consensual - e ele gostava desse "estatuto"! Testemunhei o seu desespero pela barbaridade dos assaltos violentos à sua ourivesaria, ao Museu do Ouro, que desinteressadamente criara, como preito à arte de ourives, em que ele próprio se tornou conhecedor, de que publicou livros, de cujo valioso espólio fez oferta generosa à cidade, em memória do filho. O tempo (melhor, a idade) foi criando, entre nós, uma amizade sólida e sincera, caldeada em longos anos de convivência desinteressada, pela qual nunca perpassou a menor réstea de conflitualidade, sabendo nós que, na política, olhámos sempre cada um para seu lado (nos últimos anos, demo-nos conta de que, afinal, as nossas divergências eram ínfimas e irrelevantes). Um dia, há já algum tempo, deu-me conta da doença, mas também da esperança com que a defrontava - ele que passara por tragédias familiares quase insuperáveis, cuja devastação pessoal sofrera na pele. A derrota final foi hoje, à hora de almoço, depois de uma luta tenaz. Há semanas, numa visita que lhe fiz, vi-o pela última vez, com o olhar já perdido, o ânimo esmorecido, uma sombra do Manel que sempre nos brindava com um sorriso largo, alegre por nos ver. Nessa mesma noite telefonou-me, com um pretexto simples, uma conversa que tive por uma despedida. Para trás, fica agora, aqui por Viana, a Filomena aquela que foi a rapariga mais bonita da cidade, que assim o perde, como, no passado, foi perdendo os pais, um irmão e os filhos. A ela, com a amizade fraterna de uma vida, só posso desejar a serenidade possível e toda a coragem do mundo.

sábado, outubro 14, 2017

Somos netos da madrugada?


Há qualquer coisa que indicia um malsão e inexistente estado de exceção no espetáculo do ministro das Finanças a entregar ao chefe do parlamento, tarde na noite, o Orçamento para 2018, seguindo depois para uma conferência de imprensa pela uma da manhã. É para apagar mediaticamente os "fogos" de Pedrógão ou as faúlhas de Sócrates? Seja por que motivo for, é preciso dizer de forma clara que, em democracia, as coisas não devem passar-se assim. Há rituais de serenidade e eficácia que devem ser respeitados, para que os cidadãos fiquem com a certeza de que quem os governa não anda "à bout de souffle", que as coisas do Estado estão em boas mãos e são tratadas nas devidas horas, que o tempo dos "homens sem sono" já foi chão que deu uvas. As madrugadas servem para um copo no Procópio, não para coreografias de Estado.

sexta-feira, outubro 13, 2017

Para além da Catalunha


Há questões que o caso da Catalunha suscita, que vão para além da coreografia política de quem se revê nas posições dos senhores Puigdemont e Rajoy.

O direito à autodeterminação (livre decisão sobre o futuro de uma comunidade) e à independência (constituição de um Estado) estão vulgarmente ligados, no imaginário político internacional, a antigas colónias ou territórios não autónomos, numa lógica de “libertação”. É assim, aliás, que o tema é tratado nas Nações Unidas, onde esses direitos são institucionalmente protegidos. Mas há outros exemplos: novos países que emergiram da implosão de Estados, quase sempre numa afirmação democrática contrastante com um modelo autoritário que prevalecia no antecedente.

O caso da Catalunha traz à nossa atenção um fenómeno novo, que só encontra similitudes com o exemplo da Escócia. Trata-se da circunstância de uma comunidade inserida num Estado plenamente democrático, que aí usufrui de uma plenitude e igualdade de direitos, mas onde a ordem constitucional não prevê um qualquer modelo de secessão territorial, pretender, um dia, organizar-se num Estado autónomo. (Não importa aqui discutir a validade da recente consulta organizada na Catalunha). Não estamos perante comunidades oprimidas, sujeitas a um jugo anti-democrático. É apenas a circunstância de uma parte da população de um Estado, reivindicando-se de uma identidade específica e de um determinado território, decidir cindir-se, pelo facto da vontade de viver autonomamente se sobrepor ao interesse em continuar junto, por ter considerado que essa sinergia lhe trazia mais inconvenientes do que vantagens.  

No caso britânico, onde o reino é “unido”, o parlamento central não viu inconveniente em permitir um referendo, o qual, se acaso tivesse tido um desfecho favorável, poderia ter conduzido à independência da Escócia. A ordem jurídica britânica tem esta flexibilidade, aceite por todos. 

No caso espanhol, as coisas não se passam assim. A Constituição de 1978, aliás votada maioritariamente na Catalunha, não prevê essa rutura. Assim, ela é ilegal. A questão passa a ser política e não jurídica: os habitantes numa região de um Estado cuja ordem constitucional votaram (neste caso, catalães e todos quantos vivem na Catalunha, mesmo não se considerando catalães), a meio do seu percurso histórico, podem mudar de opinião? Mas, atendendo ao impacto dessa cisão sobre o todo de que faziam parte, essa aferição de opinião pode ser feita contra a vontade explícita das restante partes desse todo?

(Artigo publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, outubro 12, 2017

Sócrates


Sócrates foi acusado pelo Ministério Público. Já não era sem tempo! Agora que foi deduzida uma acusação concreta, vai ser possível à opinião pública, sem ser através de fugas alambicadas para a comunicação social, ter acesso à leitura dos factos que hoje permitem à justiça formular as suas graves imputações. Pelo que entretanto já foi divulgado, José Sócrates e os restantes acusados vão ter de explicar muita coisa. Há factos que parecem muito estranhos, circunstâncias que se afiguram muito pouco óbvias, coincidências e ligações que vai ser necessário dilucidar com clareza. Ao longo deste tempo, é evidente terem-se adensado crescentes dúvidas, no seio da opinião pública, sobre as atividades do antigo primeiro-ministro. Muitas pessoas, algumas das quais também ajudadas por preconceito político, mas muitas outras com total boa fé, consideram já Sócrates culpado. No que me toca, porque só sei o que leio e não dispenso o contraditório, não posso por ora concluir se Sócrates é ou não culpado, em parte ou no todo, daquilo de que o acusam. Mas também eu criei dúvidas, que quero esclarecer. Também eu quero saber toda a verdade sobre aquilo de que é acusado alguém que conheci há mais de 20 anos, de quem fui colega de governo durante mais de cinco anos, que foi meu primeiro-ministro durante seis anos. Mas não é a mim que compete julgar Sócrates, essa é a função dos tribunais. Espero que o julgamento que se vai seguir nos traga essa verdade, seja ela qual for. Não é confortável para um país ver um seu antigo chefe de governo a contas com a justiça, em especial acusado de graves atos de improbidade cometidos no exercício do cargo que o voto popular lhe confiou. Porém, se a investigação tivesse durado um tempo razoável e se não se tivessem registado "leaks" que em nada enobreceram a neutralidade da nossa justiça, seria tentado a dizer, desde já, que só pode dignificar o nosso sistema judicial a circunstância de figuras poderosas poderem, sem a menor limitação, ser levadas à barra dos tribunais. Mas di-lo-ei, de muito bom grado, se, no final deste processo, todos pudermos concluir, sem a menor sombra de dúvidas, que foi feita justiça.

quarta-feira, outubro 11, 2017

Seguidores

Dou conta, na coluna ao lado, de ter atingido os 900 seguidores - pessoas que recebem um email diário com as publicações deste blogue. Diz-me quem sabe destas coisas que, se a esse número se somar a média diária de 1500 leitores que visitam este espaço, e se pensarmos que há muitos que o fazem apenas algumas vezes por semana ou por mês, o universo de leitura regular ou irregular do blogue deve situar-se nas 5000 pessoas. É um número muito simpático, tanto mais que os textos aqui publicados surgem simultaneamente no Facebook, onde os seguidores ultrapassam os 11 mil. 

O tempo áureo dos blogues de opinião já passou. Começou aí por 2002/3, teve o seu pico uma década depois, estando hoje em declínio evidente. O que hoje "está a dar" são os blogues de produtos, de divulgação comercial. Muitos e excelentes blogues de opinião desapareceram ou deixaram de ser alimentados, a sua utilização como plataforma para algumas agendas deixou de se fazer ou mudou-se para o Twitter. Parte da "geração dos blogues" mais políticos, mais à direita do que à esquerda, tem hoje espaços nos media ou alcandorou-se a estatutos institucionais. 

Por mim, quero deixar expresso que estou muito grato a quem tem a paciência e faz o favor de me ler.

50 anos


"Eu tinha 20 anos e não deixarei ninguém dizer que essa era a melhor idade da vida". A citação de Paul Nizan, retirada do "Aden Arabia", é vulgar, mas é pena não ser completada pelo que vem a seguir: "Tudo ameaça de ruina um jovem: o amor, as ideias, a perda da sua família, a entrada no grupo das pessoas crescidas. É duro aprender o seu lugar no mundo."

Não sei se eram exatamente esses os sentimentos que me atravessavam nesse mês de outubro de 1967, quando me preparava para completar essa idade mítica. Conhecendo-me, não creio.

Lembro-me muito bem de ter recebido, verifico agora que com essa idade, a notícia da morte de Che Guevara, faz hoje precisamente meio século. Recordo a imagem do seu corpo indecentemente exposto na Bolívia, como relíquia de vitória da ditadura militar sobre a guerrilha.

Guevara estava já na fase em que os "dois, três, muitos Vietnam" andavam muito longe de hipóteses de concretização. Antes, andara próximo da guerrilha independentista angolana, no "ano em que estivemos em parte nenhuma", como ele classificaria esse tempo no Congo. Cuba e a sua revolução, essas estavam já muito longe.

Tal como Fidel, Guevara nunca fez parte da minha mitologia de esquerdista. Talvez porque a revolução cubana teve lugar antes da minha idade adulta, o seu socialismo "latino" disse-me sempre muito pouco. Mas Guevara, caramba!, era "do meu lado". Por isso, li o seu diário (edição espanhola, comprada à sucapa na Tanco, em Orense), e também o que Régis Debray escreveu sobre ele, apreciei sempre a sua bela foto feita por Alberto Korda e tenho ainda por casa esta antologia dos "Cadernos" da "Dom Quixote", que a polícia logo recolheu pelas livrarias.

Ernesto "Che" Guevara morreu há 50 anos. Tinha 40 anos, o dobro da minha idade de então. Não seria "a melhor idade da vida", mas era uma bela idade para apreciar as revoluções e acreditar que elas ainda eram possíveis. É que, mesmo não o sendo, as revoluções fazem para sempre parte do património dos que nelas acreditaram. E os bons sonhos não têm preço!


terça-feira, outubro 10, 2017

A nova colina de Santana

Santana Lopes é, sem o menor favor, uma das figuras mais interessantes da política portuguesa, nas últimas décadas. (Digo isto com o óbvio "disclaimer" de quem nunca teve com ele a menor afinidade, antes pelo contrário). Acho mesmo estranho que, até agora, nunca ninguém tenha feito uma sua biografia, num tempo em que isso está na moda. A menos que os potenciais biógrafos tivessem a consciência de que "you haven't seen it all". Se assim foi, tinham razão.

A postura de Santana no seio do "PPD/PSD" (como ele gosta de chamar ao seu partido) é a de alguém que quis sempre afirmar-se como uma espécie de herdeiro teórico de Francisco Sá Carneiro, de quem foi adjunto, embora nunca tivesse ficado muito claro o que é que isso significava em concreto, no terreno ideológico. Tribuno emérito em congressos, foi quase sempre uma "esperança" com escassa concretização prática nos voos mais altos. Várias vezes, porque o seu tempo não era o adequado, ficou na soleira do êxito.

Cavaco Silva, que não gosta dele (recordemos o mortal artigo no "Expresso" sobre a "má moeda"), nunca o chamou para ministro, tendo-o apenas escolhido como secretário de Estado, diz-se que na lógica que Lyndon Johnson aplicou um dia a John Edgar Hoover : "better to have him inside the tent pissing out than outside the tent pissing in". Durou pouco no cargo.

Uma certa imagem de "homme à femmes" colou-se-lhe à pele por muito tempo - o que sempre tive por uma das suas facetas mais simpáticas e urbanas - e tal não contribuiu para reforçar a sua imagem no plano de Estado. Pelo meio, teve sucesso como autarca, embora essas posições surgissem sempre, aos olhos de quem estava atento, como meros degraus de um percurso de uma (legítima) maior ambição política.

Com a saída de Durão Barroso para a Comissão Europeia, Santana Lopes viria a ser um inesperado primeiro-ministro, cooptado da vice-presidência do partido, sem passar pelo teste das urnas. Desde a caótica tomada de posse - discurso e trocas de governantes, à última hora - até ao momento em que, meses depois, Jorge Sampaio o despediu, sem glória, o seu governo foi feito de uma sucessão de episódios, que o país crismou para sempre como "as trapalhadas". Santana Lopes sentiu-se sempre injustiçado pelo gesto do antigo presidente, que já o tinha nomeado "à contrecoeur" e que deve ter sentido um imenso alívio ao ter tido pretextos para dele se ver livre, como decorre das suas memórias. Quer Santana Lopes aceite isso ou não, o país nunca estranhou o gesto de Sampaio.

Passos Coelho, no fim da era Sócrates, deu à escolha a Santana Lopes uma embaixada ou a provedoria da Misericórdia. Em boa hora aceitou esta última, onde consta que estava a ter um papel positivo, aí se rodeando de muitos dos seus tradicionais "compagnons de route". Entretanto, uma vez mais como comentador na imprensa e na televisão (onde já havia discutido desde futebol a política, neste caso num dueto com Sócrates), foi criando um estilo "statesmanlike", projetando um ar mais maduro e ponderado, a que associa uma simpatia natural, que muitos acham cativante. Ia-se-lhe lendo, contudo, nas palavras e nos silêncios, que a ambição política o não tinha abandonado. Não encontrou espaço para concorrer à presidência da República e terá mantido apenas a ficção de poder ser candidato a Lisboa nas últimas autárquicas. As oportunidades iam-se assim fechando (restava-lhe, talvez, tentar Belém depois de Marcelo, mas já nas calendas).

Agora, subitamente, Santana descobriu uma oportunidade para regressar à política ativa, à liderança do partido. É um "remake", é certo, mas é uma tentativa de relegitimação, para alguém que a necessitava. É mais uma "colina" no seu percurso de altos-e-baixos. É um ato, simultaneamente, de coragem (atento o previsível ciclo favorável de Costa, a perda da influência e do "dourar de imagem" que a Misericórdia lhe proporcionavam, bem como a imprevisibilidade do resultado do confronto com Rui Rio), de ambição (conseguindo, "in extremis", evitar o salto geracional que Montenegro ou Rangel significariam) e de resposta positiva a apelos de um certo PSD que é totalmente incompatível com Rui Rio. 

Santana converte-se, assim, na principal "novidade", nos meses que se seguem. E não deixa de ser muito interessante que um partido que parecia a caminho de uma salto etário (Passos Coelho fizera já parte desse caminho) se reencontre com a necessidade de optar entre duas figuras vindas de um tempo anterior. 

Quem conhece os cantos à casa social-democrata antecipa uma luta muito dura (e "muito feia", segundo alguns). Para quem está de fora, tudo indica que vão ser tempos de observação bem interessantes.

segunda-feira, outubro 09, 2017

Catalunha


A discutir a questão catalã com Jaime Nogueira Pinto, com moderação de Pedro Pinto, na TVI 24. 

Pode ver aqui

Boas e más notícias

Não é todos os dias que recebemos boas notícias, como esta, sobre o afastamento das chances de gente insalubre. Mas, ao fim do dia, ninguém ...