Trump tem fortes razões para estar orgulhoso. E isso ficou claro no seu discurso de posse. Regressar ao poder, com a forte legitimidade eleitoral que conseguiu arregimentar, com confortável base legislativa e judicial, deve dar uma muito agradável sensação de poder. Um poder que recuperou depois de ter descido aos infernos, com uma derrota eleitoral sofrida mas nunca aceite, com processos judiciais cumulativos e humilhantes, depois de ter sido exposto como cúmplice de uma agressão constitucional sem precedentes ao Capitólio. Capitólio esse onde agora reentra pela porta principal, sob o olhar impotente dos seus inimigos, com esse passado conflitual recente colocado entre parêntesis. Como vingança, reconheça-se, Trump não poderia ter desejado mais e melhor.
Ele também sabe que pode olhar o mundo de cima, desde os seus adversários aos seus atarantados aliados, com a noção clara de que é a sua palavra que verdadeiramente vai contar no futuro imediato, o que lhe confere um estatuto quase único, à escala internacional. E pressente que muitos americanos se revêem, com gosto, nesse tipo de discurso afirmativo, que mistura nacionalismo, arrogância com um sentido de excecionalidade, que cai bem na imagem que se habituaram a ter de si próprios.
O discurso de entronização de Trump mereceria uma exegese cuidada – política, sociológica e psicológica. O que ali ficou dito, no tom, na forma e no conteúdo, é o espelho de uma liderança que encenou, com todo o cuidado, uma coreografia de sucesso, de confiança, de ausência de dúvidas, de uma certeza inabalável no êxito. Trump parece quase não antever obstáculos para os seus projetos, como se a simples afirmação da vontade fosse garantia de resultados. Com Trump, o destino americano, que confunde com o seu, é só um e não há escolhos que o possam limitar.
Para muitos observadores estrangeiros, designadamente europeus, habituados a um outro registo de linguagem do poder, o discurso chega a parecer ridículo, em certas passagens mais gongóricas e auto-congratulatórias. Se a isso somarmos os aspectos místicos e o culto hiperbólico das virtudes do povo americano, fica criada uma coreografia algo bizarra para ouvidos alheios. Se um líder europeu, numa intervenção daquela solenidade, ousasse anunciar que ia renomear uma entidade geográfica de fronteira, provocando gratuitamente o Estado vizinho com o qual tem a maior carteira de relações comerciais, cairia no ridículo. Até Hillary Clinton, ao ouvir a proposta, caiu em gargalhadas. Mas Trump considera-se imune ao ridículo – e isso, goste-se ou não, acaba por ter um forte significado político.
Trump e o mundo
De há muito que o mundo sabe que depende dos humores da América. Mas talvez nunca tenha dependido tanto como nos dias de hoje.
Trump é um presidente para a América, eleito pela América, que só pode ser condicionado por ela. Só os americanos podem vir a travar Trump. As entidades exteriores podem opor-se a Trump, mas, nesse caso e com todas as consequências, terão de correr o risco de vir a enfrentar a força dessa mesma América.
No seu discurso de posse, o mundo exterior só esteve presente naquilo que tinha real importância para o público americano. As taxas alfandegárias, o mito de um mundo que se “aproveita” dos EUA, o papão chinês e algumas atitudes simbólicas surgiram no texto, elaborado por “speech writers” que souberam dosear ideologia com anúncios que tocaram cordas sensíveis de uma certa América, desses mais de 70 milhões de pessoas que confiam em Trump.
A Europa não apareceu no discurso? Biden, há quatro anos, também ignorou os aliados europeus. Mas, ao recusar o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, ao decidir, horas mais tarde, abandonar a Organização Mundial de Saúde, o presidente americano sabe que está a dar um sinal de desvalorização do mundo multilateral, que é tido como vital por parte da União Europeia. E, ao dizer que os EUA, em lugar de gastarem dinheiro a defender as fronteiras dos outros, devem defender as suas, está a “matar dois coelhos com uma só cajadada”: prenuncia o fim do financiamento à Ucrânia e assinala o reforço do policiamento à fronteira com o México, tida como ponto essencial para a travagem da imigração, que Trump e muitos americanos identificam com a insegurança nas ruas.
E agora?
Donald Trump declinou a sua agenda. Deixou evidente que ela vai depender pouco da vontade dos outros, o que quer dizer que tem a intenção de que a sua própria vontade seja a regra do novo jogo.
Não sendo estranho que este tipo de intenção procure prevalecer perante os adversários e inimigos, poderia parecer menos curial que Estados amigos e aliados sejam tratados desta forma.
A América, contudo, não é conhecida por ter uma relação equilibrada com os países que lhe são teoricamente próximos. Os EUA têm uma tendência, que não é de hoje, de considerar que os seus interesses, nomeadamente os de ordem estratégica, devem ser em absoluto seguidos por quantos têm a sua segurança dependente do poder armado americano. E assumem essa atitude de forma muito aberta, quase chocante. E, em geral, esse mundo de amigos da América resigna-se. Embora, verdade seja, raramente isso seja feito num registo de “bullying” tão brutal como o que Trump pratica.
No que diretamente interessa à Europa, o que se pode fazer? A União Europeia tem de tentar preservar a todo o custo a sua unidade, em especial no terreno negocial que aí vem. O passado provou que os EUA conseguem, se quiserem, fazer uma espécie de “pesca à linha” dentro da Europa. O poder americano é politicamente “afrodisíaco” e a sedução de uma fotografia na Sala Oval com o presidente de turno é irresistível, em especial para os poderes que, na Europa, se habituaram a fazer de conta que são “grandes” neste mundo. Já para não falar dos outros.
Não vale a pena ter ilusões no plano militar e de segurança, nomeadamente no que toca à questão ucraniana: os EUA de Trump já deixaram claro que têm em escassa consideração a obsessão europeia perante a agressividade russa. E expressaram de forma muito óbvia que não estão dispostos a suportar o custo da segurança alheia, perante um adversário que não vêem como o seu inimigo principal. A mensagem de Trump não pode ser mais cristalina: os Estados Unidos, sob a sua liderança, entendem que a segurança europeia é, basicamente, uma obrigação da Europa, a ser suportada pelos contribuintes europeus, com os EUA dispostos a venderem armamento e tecnologia, embora mantendo, por tempo a determinar, a rede de bases militares que têm no Velho Continente.
No resto, na economia, a Europa sabe que continua a ter algumas outras armas para responder à pressão de Trump, dado que o mercado europeu é bastante importante para os EUA. Mas a América é sempre muito fria com os números: a balança comercial está desequilibrada em seu desfavor e isso vai ser posto em cima da mesa de modo frontal. Além disso, a regulação europeia é um estorvo a alguns gigantes tecnológicos americanos, que Trump, um tanto surpreendentemente, cooptou para o seu serralho de amigalhaços e financiadores. Vai ser uma negociação muito difícil e todos os tabuleiros – económicos, tecnológicos e de defesa – tenderão a confundir-se. E não é seguro, bem antes pelo contrário, que a vantagem esteja do lado de cá do Atlântico.
Resta o fator tempo e o peso dos factos. A realidade é sempre muito mais imaginativa do que os homens e, mais dia menos dias, algumas das ilusões grandiloquentes em que se apoia a narrativa eufórica de Trump irá confrontar-se com um banho frio na sua prática. E, à medida que as coisas se tornem mais difíceis para o novo inquilino da Casa Branca, o seu apoio político interno pode vir a ser afetado. Foi sempre assim no passado e nada indica que o não venha a ser de novo. A escassa maioria de que Trump dispõe na Câmara dos Representantes dificilmente poderá ser preservada nas “midterm elections” de 2026, com efeitos na sua capacidade de implementação legislativa. E isso não será sem consequências para a sua margem política de manobra. Mas essas são contas para uma “bolsa de futuros” e, até lá, o mundo vai ter de viver um longo dia-a-dia com Trump. Será como uma tempestade: teremos de nos precaver até que passe.
( Artigo hoje publicado a convite do "Jornal Económico" )
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