quarta-feira, agosto 02, 2017

O camarada tradutor


A Eslováquia era, nesse tempo, o "mau aluno" dos candidatos à adesão à União Europeia. O primeiro ministro de então, Vladimír Mečiar- umas das duas figuras-chave, com o checo Václav Klaus, na divisão da antiga Checoeslováquia -, conduzia um governo acusado de limitar as liberdades da oposição e dos meios de comunicação social. O próprio presidente da República eslovaca vivia sob forte pressão de Mečiar.

Eu havia desenhado com cuidado a minha visita a Bratislava, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, nesse ano de 1998. O nosso objetivo era dar um sinal de apoio à integração da Eslováquia nas instituições europeias, não obstante o governo do país se revelar então o maior obstáculo à consagração desse mesmo estatuto. Os contactos oficiais seriam feitos nos moldes tradicionais mas eu insisti em ter encontros com as principais forças da oposição, fazendo igualmente uma conferência-debate num instituto que promovia a ideia europeia, uma entidade que sabia não ser do agrado do governo, que não se fez representar no evento.

Um dos encontros tidos com um dos partidos da oposição foi no hotel onde fiquei instalado. Recordo o aviso discreto que o chefe da delegação desse partido me fez, logo à chegada: eu devia ter consciência de que a nossa conversa iria ser escutada, porque isso era uma prática que estava nos "genes" do governo de Mečiar. Assim, "adaptei" tudo quanto disse, em inglês, a essa (previsível) realidade, aproveitando, dessa forma, para passar algumas "mensagens" às autoridades, com maior à-vontade do que aquele que eu usararia nas diversas visitas feitas a interlocutores oficiais.

No dia seguinte, seria eu a fazer uma visita ao partido que, na Eslováquia, era o homólogo do PS português. Recordo-me que a sede era num modesto primeiro andar, numa rua central de Bratislava. Impressionou-me o "décor" das dependências por que passámos: um ambiente que lembrava as sedes partidárias de alguns partidos e formações políticas portuguesas no pós-25 de abril, com posters nas paredes, lembretes com "post-it", enfim, uma alegre anarquia, que rimava menos bem com a serenidade ideológica daquela formação, que, aliás, anos depois, entraria para o governo.

O meu interlocutor era o líder do partido. Não falava inglês, pelo que seria necessário utilizar um intérprete eslovaco, também membro próprio partido. Este não falava português, pelo que anunciou que traduziria para espanhol, explicando-nos que estudara em Cuba. A conversa anunciava-se assim algo confusa. Porém, como essencialmente me interessava ouvir falar o meu interlocutor sobre a situação local, acheio que o modelo poderia funcionar. 

Nestas ocasiões, a tendência é esquecermos o tradutor e tê-lo apenas como um transmissor da mensagem. Foi o que tentei fazer. Sem sucesso. É que o tradutor era um "cromo" que se impunha na sala. Efeminado à quinta potência, tinha um capachinho castanho escuro que se movimentava, por má fixação, à medida que se expressava. E a sua "coreografia" era exuberante. Fazia gestos e agitava-se de uma forma que começou por suscitar o surgimento de leves sorrisos irónicos na nossa delegação. A certa altura, conceitos políticos graves vindos da boca do líder socialista eslovaco chegavam-nos num espanhol de Cantinflas, acompanhados por sublinhados fonéticos em forma de onomatopeias, quase cantadas. 

Como chefe da delegação, eu procurava guardar a compostura, mas as pessoas que me acompanhavam - em especial o então subdiretor-geral, João Pedro Zanatti, e o meu chefe de gabinete, Miguel Almeida e Sousa - já quase não se continham no riso, baixando a cabeça e fingindo tomar apontamentos da conversa. A pouco a pouco, eu ia-me também "tirando do sério". A certo ponto, já quase nos não contínhamos, evitando cruzar os nossos olhares, para não rebentar a cena. Recordo ter apressado o fim da conversa, despedindo-me do meu amável e sensato interlocutor, que conduzia então uma luta complexa e corajosa contra Mečiar. 

À saída, saudei o efusivo tradutor e - recordo bem! - descemos todos de roldão as íngremes escadas para a rua, abafando gargalhadas, que se libertaram finalmente, naquele fim de tarde de Bratislava. 

Tempos mais tarde, quando visitei a capital eslovaca, nomeadamente ao tempo em que vivi em Viena, passei várias vezes por aquela rua central, olhei a sede dos "camaradas" eslovacos e lembrei-me daquela hilariante cena.

2 comentários:

Anónimo disse...

E da cena na Venezuela, também se ri?

Anónimo disse...


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