Está a tornar-se um pouco bizarra a coreografia desculpabilizante a que se está a assistir nas últimas horas, a propósito do caso do voto na ONU, em 1987. É um espetáculo triste virem à baila nomes de funcionários diplomáticos que intervieram nesse processo, como se, pela confusão, se conseguisse salvar, não a "honra do convento" de Nossa Senhora das Necessidades, mas a imagem dos verdadeiros responsáveis pelo sentido do voto - independentemente de qualquer juízo sobre a importância objetiva desse mesmo voto.
Os diplomatas obedecem a uma cadeia hierárquica, executam uma política externa que lhes é determinada por quem tem legitimidade política para o fazer e que, em derradeira instância, deve responder pelas suas decisões. Os diplomatas aconselham mas não "produzem" política externa.
Quem conhece como estas coisas funcionam sabe que o diplomata que intervém numa comissão de um órgão multilateral como é a ONU atua sob uma instrução recebida do seu embaixador, ao qual, por sua vez, chegaram orientações oriundas da direção política, em Lisboa. Muitas vezes as instruções são genéricas, outras vezes são detalhadas, em alguns casos mesmo num "micro-management" irritante. Na frente lisboeta da decisão - que, dada a sensibilidade política do tema em causa, deve ter sido ponderada ao milímetro, porque ninguém fica "isolado" com os EUA e o Reino Unido sem ser como resultado de uma opção política muito refletida - fazem parte o diretor-geral político-económico (era assim que se chamava, à época), o ministro dos Negócios Estrangeiros e, naturalmente, o primeiro-ministro de então. Não me passa pela cabeça que qualquer destas três figuras possa ser tentada agora a fugir às suas responsabilidades. E, repito, não é para aqui chamado qualquer juízo de valor sobre a temática, em si mesma. Essa é outra questão.
Porque é que tenho estas certezas - e não outras - sobre este assunto? Fui embaixador na ONU, na OSCE e na UNESCO e, noutro quadro de responsabilidades, passei anos a dar instruções a representações portuguesas junto da União Europeia, da OCDE, do Conselho da Europa e da OMC. Sei, por isso, do que falo, mas, repito, apenas no tocante ao "processo decisório".
Os diplomatas obedecem a uma cadeia hierárquica, executam uma política externa que lhes é determinada por quem tem legitimidade política para o fazer e que, em derradeira instância, deve responder pelas suas decisões. Os diplomatas aconselham mas não "produzem" política externa.
Quem conhece como estas coisas funcionam sabe que o diplomata que intervém numa comissão de um órgão multilateral como é a ONU atua sob uma instrução recebida do seu embaixador, ao qual, por sua vez, chegaram orientações oriundas da direção política, em Lisboa. Muitas vezes as instruções são genéricas, outras vezes são detalhadas, em alguns casos mesmo num "micro-management" irritante. Na frente lisboeta da decisão - que, dada a sensibilidade política do tema em causa, deve ter sido ponderada ao milímetro, porque ninguém fica "isolado" com os EUA e o Reino Unido sem ser como resultado de uma opção política muito refletida - fazem parte o diretor-geral político-económico (era assim que se chamava, à época), o ministro dos Negócios Estrangeiros e, naturalmente, o primeiro-ministro de então. Não me passa pela cabeça que qualquer destas três figuras possa ser tentada agora a fugir às suas responsabilidades. E, repito, não é para aqui chamado qualquer juízo de valor sobre a temática, em si mesma. Essa é outra questão.
Porque é que tenho estas certezas - e não outras - sobre este assunto? Fui embaixador na ONU, na OSCE e na UNESCO e, noutro quadro de responsabilidades, passei anos a dar instruções a representações portuguesas junto da União Europeia, da OCDE, do Conselho da Europa e da OMC. Sei, por isso, do que falo, mas, repito, apenas no tocante ao "processo decisório".
15 comentários:
Caro Amigo,
Ainda bem que põe os pontos nos ii sobre os meandros da diplomacia, ressalvando que não aborda a questão sob o ponto de vista dos valores. Um sentido de voto em assuntos de tão grande importância é, tem de ser, sempre político e a política tem razões que a razão desconhece...Abraço
José Honorato Ferreira
A terrível e vergonhosa intervenção de Colin Powell na ONU é o exemplo mais cruel desta responsabilidade hierárquica da diplomacia. Mentir ao mundo por ordem.
Não percebo a tremedeira sobre uma posição correta do Estado Português. Incluindo quem a tomou, o próprio Cavaco Silva. Que raio de políticos estes…nem sequer merecem falar de Mandela!
antonio pa
Ouvi ontem Ana Gomes, pessoa que muito admiro desde os tempos de Timor pela frontalidade ,a falar sobre o tema e a informar que não foi só em 1987 que as instruções negativas em relação a Mandela aconteceram : um ano antes da sua libertação , até algo relacionado com crianças teve a mesma instrução.
Segundo Ana Gomes ,todos os diplomatas envolvidos (tanto de Esquerda como de Direita) enviaram ofícios a aconselhar outra posição, até porque estavam cientes de que iria haver uma mudança de regime e que estava em causa também a comunidade portuguesa da África do Sul, em particular os madeirenses(incluindo a própria igreja).
Mas as instruções continuaram e tiveram que ser cumpridas.
Este caso recorda-me a queda da ponte de Entre-os-Rios, cujo julgamento recaiu sobre os técnicos - como se fosse deles a decisão política!
E desta matéria posso falar de cátedra, porque trabalhei nela décadas . Pelo que fico estarrecida quando o Governo afirma que as IPSSs são uma maravilha!!
Boa noite
A culpa é sempre do mexilhão.
Certíssimo Sr. Embaixador!
Um Post oportuno. Concordo consigo.
a)Rilvas
A 'velha senhora' diz-me que 'conheceu' bem alguns diplomatas e que se deu e dá com muitos outros para saber que o caríssimo Autor tem toda a razão no que explica neste post. Mas a senhora continua insatisfeita:
em baixa, amor?
em baixa dor
que se aliena
e não condena
simplesmente
veementemente
essa vergonha
e sonsa ronha
de votação
contra a nação
leal real
que é portugal
em baixa? dor!
Portugal e o apartheid É curiosa a polémica que surge agora em torno da recusa do governo português de 1987 em apoiar uma resolução da ONU contra o apartheid. A mais de um quarto de século de distância devia ser possível reconhecer as limitações do contexto e mesmo os erros cometidos à altura. É um assunto que conheço porque me interessei naquele tempo pela política externa portuguesa em relação à África do Sul, escrevi dois ou três artigos de jornal e logo a seguir à libertação de Mandela fui para a África do Sul tentar construir pontes entre a comunidade portuguesa (que por erros próprios e dos governantes em Lisboa tinha entretanto ficado completamente isolada) e os representantes da luta contra o apartheid. Mantenho daqueles três meses em Joanesburgo a recordação de testemunhar um momento único na vida de um país, a par de memórias extraordinariamente gratificantes de trabalho político. Mas regressando à política externa portuguesa. Aquilo que se passou foi que em Lisboa, no Palácio das Necessidades, houve uma abdicação de responsabilidade em termos da posição face ao regime sul-africano. As posições portuguesas eram essencialmente ditadas por meia dúzia de “comendadores” da comunidade portuguesa, fortemente apoiados por Alberto João Jardim. Simplificando, a comunidade portuguesa era composta por duas componentes: imigrantes vindos da Madeira nos anos 20 e 30, gente modesta, de baixa escolaridade, pequenos comerciantes frequentemente interagindo com negros que eram clientes das suas lojas. Para este grupo a existência de mecanismos de discriminação racista tinha o benefício imediato de os proteger da concorrência dos sectores mais dinâmicos entre os negros. A outra componente da comunidade portuguesa tinha um nível mais elevado de escolaridade e resultava do êxodo de Moçambique em 1975. Este grupo tinha maior capacidade de progressão social mas ideologicamente era intensamente alérgica à ideia de democracia eleitoral. Filipe de Oliveira ambas as componentes da comunidade portuguesa, as mensagens que chegavam a Lisboa falavam da necessidade de apoiar diplomaticamente o regime do apartheid. Da África do Sul chegava também algum financiamento partidário e apoio eleitoral que não deixava de ter alguma influência. Em Lisboa, em vez de se pensar nos interesses de médio prazo de uma comunidade portuguesa que inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, teria de fazer a transição para a democracia, a opção foi no sentido de dar o apoio discreto que fosse possível para aliviar a pressão internacional. É assim que Portugal se vê, nos anos 80, numa posição de alinhamento com as posições de Reagan e Thatcher, destoando da forma como na Europa e em quase todo o mundo se olhava para o regime do apartheid. Foi claramente um erro da política externa portuguesa, porque em vez de preparar a comunidade portuguesa para a transição encorajou-a a manter-se numa posição de defesa intransigente do regime. O resultado foi que a comunidade portuguesa acabou por ser a única que não teve entre os seus membros lutadores contra o apartheid. Gregos, italianos, judeus de muitas partes, brancos de muitas origens lutaram contra o apartheid. Entre os portugueses nem um único nome era conhecido. A mudança chegou muitíssimo tarde, quase em cima do colapso do regime. Em particular foi José Cutileiro, que chegou a Pretória como embaixador em 1989, que começou a mandar sinais urgentes para Lisboa quanto à necessidade de mudar de rumo. Estamos portanto a falar de menos de um ano antes da libertação de Nelson Mandela. Claro que a boa educação mandava que houvesse declarações de voto aquando da tomada de posições em Nova Iorque ou Bruxelas, mas a realidade é bastante simples, e espanta agora, vinte e tal anos mais tarde, que se venha sugerir que as posições assumidas pela diplomacia portuguesa eram as melhores possíveis. Não eram, manifestamente não eram.
Nuno Fraga Coelho
Caro Anónimo (não publicado) das 12.27: agradeço o seu comentário mas as minhas ambições são muito menores. Apenas desejo contribuir com o meu conselho para que alguma coisa mude para melhor. Nada mais, pode crer.
interessante o comentário de n f coelho colocando o ponto na ferida, ou o dedo, alberto j jardim apoiava fortemente o regime apartheid da ras, tanto que convidou nos anos 80 os p. bothas (presidente e mne) a visitar oficialmente a madeira,visita que se efectuou em 1986 e que ele ajj sempre justificou com a defesa dos interesses dos madeirenses residentes naquele país.
havia inclusivamente um consulado de carreira da ras no funchal que depois com mandela fechou.
e havia gente de muito dinheiro oriunda da madeira, empresarios vivendo na ras tipo jo berardo e muitos outros, que apoiavam a ram com os seus investimentos.
o proprio ajj visitava se não anualmente, pelo menos cada 2 anos a ras.
note se que ajj visitava igualmente outros países onde havia importantes comunidades madeirenses, a australia, a venezuela, não era só a ras, e as visitas eram profundamente de trabalho politico e económico junto da comunidade, não protocolares. secretários regionais acompanhava no.
quando pieter botha morreu em 2006ajj, ou o psd madeira, creio que propuseram um voto de pesar na ar da ram.
Em suma. Dava jeito sugerir ao PR uma daquelas gripes dipomáticas, de última hora. Mas claro que não aceitará a sugestão.
Se tiver sorte apanhará apenas um bom susto ... diplomático.
Cá se fazem, cá se pagam.
Pensei que a "malta" que segue este blogue era um pouco mais esclarecida do que aquela que encheu as redes sociais a dizer que Cavaco Silva votou contra a libertação de Nelson Mandela.
Pelos vistos aqui ou ignoram o que realmente se passou, ou pior querem fazem de conta que não sabem para degnerir a figura do Presidente da Republica ( note-se que por sinal até sou Monárquico)
Como todos bem sabemos Portugal votou contra uma moção que sancionava o uso de violência para acabar com o apartheid.
Para os que tiverem duvidas deixo o link :
http://www.un.org/documents/ga/res/42/a42r023.htm
Caro José Tomaz Mello Breyner,
Permita-me um esclarecimento, relativamente a este seu útimo comentário:
A resolução votada apenas pelos EUA (Ronald Reagan), R.U (Margaret Thatcher) e Portugal (Cavaco Silva), não “defendia a luta armada” , conforme, erradamente, de forma intencional e manipuladora, quer na altura, quer hoje, alguns nos querem fazer crer, para se limparem. Esse parágrafo (ou alínea) da resolução dizia tão só: “...a legitimidade da luta do povo da África do Sul e o seu direito a escolher os meios necessários, incluíndo a resistência armada, para conseguir a erradicação do Apartheid”. Recordo-lhe, a talhe de foice, que a nossa Democracia foi recuperada a 25 de Abril com recurso ás armas dos militares responsáveis e ninguém pôs em causa semelhante decisão. Por outro lado, lembraria ainda que relativamente a Timor, apoiámos o direito dos timorenses de recorrerem à resistência armada, como o fizeram. E poder-se-ía ainda dar outros exemplos. Isto para desmontar o seu argumento e o de todos os que defendem o indefensável, ou seja, a posição de Cavaco Silva, então PM, que como aqui já, noutro comentário referi, se deveu a uma opção ideológica sua (de CS). Embora todos tenham direito ás suas opções ideológicas numa Democracia enquanto governantes legitimados por voto popular, há, porém, opções, políticas, que não deveriam ser tomadas à luz desse critério, ou prisma, como foi o caso da resolução de que falamos, tendo em conta o argumentário que atrás menciono, mas não só.
A “malta” que segue este Bolgue é suficientemente esclarecida (não é ignorante, como diz) para perceber a atitude tomada então por CS e não se deixar enganar com “sofismas” mal alinhavados, como os que entretanto surgiram para explicar uma decisão que constituíu um grosseiro erro político, a todos os títulos lamentável.
a)Rilvas
A 'velha senhora' não se cala nem conforma. Mandou-me citar o art. 7º da CRP e ditou-me longa rimalhice para se lhe seguir.
"Constituição da República Portuguesa, Princípios fundamentais, Artigo 7.º (Relações internacionais):
3. Portugal reconhece o direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão […]".
insurreição pôs fim à velha monarquia,
insurreição matou, mais tarde, o estado novo
(violenta ação expulsa 'a banda' agora, um dia?):
aqui e em toda aparte, o roubo e a tirania
acabam por findar às mãos cruéis(?) do povo.
(eu só rimalho mal- alguém faz poesia?)
'josé tomaz mello' com mais 'breyner' fará
um nome assaz belo mas béllico-orthográphico
(não digo o nome meu - também engulhos dá)
constituição, porém, não lê muito por lá
nem quer, talvez, nem ler o horror, porque é monárquico
(prefiro o alvarinho à água pé, eu cá).
depois, veja o querido, não lhe fica bem
dizer que a "malta" aqui ignora ou faz de conta:
se leu o link que citou, josé, só tem
de ver que essa moção apela é a ser contra
prisões e repressão, que o apartheid vem
fazendo contra quem a resistir se apronta.
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