sábado, abril 25, 2009

O herói


Quando abrimos a porta, o Ramos dormitava numa sala de instrução, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Horas antes, tinha sido detido. Ele era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reacção e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, foi essa a decisão que os responsáveis pela tomada da unidade militar assumiram como a melhor, até para sua própria defesa, se algo corresse mal.

O Ramos era um tenente miliciano que decidira integrar a carreira profissional, uma facilidade a que o corpo militar recorria com cada vez mais frequência. Era um homem jovial, um pouco “militarão”, mas boa pessoa, com excelente relação com todos nós. Nada indicava que pudesse ser hostil à nova situação. Ora as coisas começavam a serenar, a unidade estava sob total controlo, Marcello Caetano estava cercado no Carmo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Foi solto.

De início ficou um pouco confuso, mas foi-lhe explicado o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, se contava com ele, dali em diante. Ficou outro. Foi tomar um banho e juntou-se-nos, com uma alegria genuína.

Perdi-o de vista durante o dia mas, ao final da tarde, venho a encontrá-lo na RTP, objectivo estratégico que a nossa unidade ocupara nessa noite. Tinha sido, entretanto, encarregado da segurança da entrada dos estúdios de televisão, com um grupo de soldados cadetes.

Quando se aproximou a hora da chegada à RTP da Junta de Salvação Nacional, para fazer a sua proclamação ao país, o Ramos montou aquela que viria a ser a guarda de honra para a chegada de Spínola, Costa Gomes e os outros membros do novo poder. Por curiosidade, confesso, para poder estar presente nessa ocasião com laivos de histórica, juntei-me a ele na entrada da RTP, onde, à época, havia uma bomba de gasolina. Como eu era aspirante e ele tenente, fiquei sob o seu episódico comando, para o exercício de protocolo militar que se iria seguir.

O grupo de cinco ou seis soldados cadetes que compunham a “tropa” do Ramos, que passei a “subcomandar”, estava num estado de cansaço que não augurava uma grande dignidade ao momento que se iria seguir. Bom conhecedor da poda militar, o Ramos relembrou a todos a forma de proceder na cerimónia de apresentação de armas.

Todos os soldados tinham G-3. Eu, porém, ainda hoje estou para saber porquê, tinha andado todo o dia com uma metralhadora FBP (na qual eu tinha “forçado”, por lapso, um carregador de balas errado, creio que de uma Vigneron, o que, mesmo que fosse preciso, me teria impedido de dar um único tiro durante todo o 25 de Abril...), arma que exigia um gestual protocolar diferente. Mas que lá aprendi, graças ao Ramos.

Chegado o grande momento, o Ramos afina a guarda de honra à Junta. Do primeiro carro, que me recordo de ser acinzentado, saiu Spínola, grave como sempre. O Ramos, com garbo, deu as vozes de comando necessárias e lá fizémos a melhor “apresentação de armas” que nos foi possível organizar.

Spínola perfilou-se face ao Ramos, fez continência, fixou o monóculo e olhou-o, por um imenso instante. O resto dos membros da Junta pararam, um pouco atrás, expectantes do momento. Spínola lançou então, para o perfiladíssimo Ramos, sempre em continência:

- "Eu não o conheço da Guiné, nosso tenente?".

O Ramos só conseguiu balbuciar, esmagado de comoção:

- "Meu general, efectivamente tive a honra de servir com V. Exa. na Guiné".

Spínola grunhiu algo, do tipo "logo vi!", e afastou-se, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios.

Aí, o Ramos virou-se para mim, impante:

- "Estás a ver, pá, ele reconheceu-me, lembra-se de mim. Este gajo sempre foi o meu herói!".

E continuou a sê-lo, a partir daí. Para o Ramos.

2 comentários:

Anónimo disse...

A partir do meio da tarde do dia 25, - e o que eu já vivera desde as 6 da manhã, desde a Trafaria,passando pelo Cristo Rei - até ao final da tarde de 28,passei a reforçar a equipa ,que conduzia a movimentação de tropas dentro da cidade de Lisboa,a partir do Quartel General,em São Sebastião da Pedreira .A determinada altura ,começo da noite de 25, uma patrulha exterior comunica que prendera um " gajo "que não sabia a Senha ( Pelé,se bem me recordo ). Este diz que é Almirante,gritavam do outro lado . Ora, nós já tinhamos prendido durante o dia alguns Generais,mas agora um Almirante !O senhor chegou ,nenhum de nós,todos do Exército,o conhecia de parte alguma,mas o homem bem berrava :SOU O PINHEIRO DE AZEVEDO !SOU O PINHEIRO DE AZEVEDO !TENHO DE ME IR FARDAR PARA IR PARA A TELEVISÃO !Ora isto não condizia nada com algo, que nós soubéssemos .A determinada altura o senhor diz-nos para ligarmos para o Gen Spínola,pois este estaria à sua espera .Finalmente fez-se luz .Uma hora ou duas depois,víamos na TV o Almirante Pinheiro de Azevedo,convenientemente fardado .Agora para o senhor José Leandro : na verdade,a 28 ou 29,já noite bem avançada," aproveita-se " o regresso da coluna militar do Salgueiro Maia a Santarém ,como escolta a um Oficial General,que o Gen Spínola acabara de nomear para ir comandar a Região Militar de Tomar .Descansámos duas ou três horas na EPC e seguimos ,escoltados por outra coluna militar ,já não sob o comando do Salgueiro Maia,para Tomar .Chegados aqui,a Segurança ao Quartel General de Tomar,enfrentou-nos !! Houve que manobrar os Carros de Combate e apontar-lhes os canhões .Correra tudo tão bem em Lisboa e estávamos a ver,três dias após o dia 25, que agora é que iríamos ter problemas .Finalmente,tudo acabou em bem ( possívelmente, a generalidade das pessoas não saberá,mas houve sempre a preocupação de pôr no comando das tropas,e mesmo no planeamento das operações, militares com experiencia de combate,o que contribuiu para ultrapassar situações bem complicadas ) .Destituímos o oficial general,que comandara até àquele momento e " colocámos " o que trouxéramos de Lisboa .Cansado,muito cansado,mas imensamente feliz,na tarde de 29 cheguei finalmente à minha Unidade,donde saíra a 16 de Março .

Alexandre Ayres disse...

Parabéns pelas histórias e estórias de 25 de abril - algumas já a mim, por privilégio de seu convívio, relatadas pessoalmente. Estava em Lisboa, neste sábado, e pude sentir todo o representar da data no rosto das pessoas. Expressões de alegria, esperança, decepção pela situação atual, desilusão com os partidos e políticos, etc, tudo misturado numa bonita festa cívica, como tem que ser.
Abraço forte
Alexandre e Kátia Ayres

Livro