sábado, julho 21, 2018

À atenção de S. Pedro


Dizem-me que está a criar-se por aí um movimento de opinião e de massas no sentido de exigir a demissão de S. Pedro, atenta a sua reconhecida medíocre prestação, em matéria climática, em todo este ano.

Não sou tão radical, mas apenas por ora. Deixo assim um aviso: se, no dia 27, data em que inaugurarei a minha época de praia, tudo continuar na mesma, contem comigo para me juntar aos protestos. Quem não tem competência dá lugar a outro e não devem faltar por lá santos sem ocupação.

Há limites para a nossa paciência!

sexta-feira, julho 20, 2018

O Zé Bouza




Há dias, três embaixadores conversavam. Era uma cerimónia de entrega de uma condecoração. Comentei, a propósito, que, na minha vida diplomática, tive recorrentes dúvidas sobre as regras a seguir no tocante ao “lugar” e à ordem de colocação no peito dessas insígnias, quando as regras protocolares me obrigavam a usá-las. 

Sei que esta liturgia pode parecer ridícula para quem não é do “métier”, mas a verdade é que, se se vissem forçados profissionalmente a usar smoking, fraque ou casaca, logo perceberiam o embaraço. Qual a “hierarquia” das “placas” (aqueles chapões metálicos que cosemos à casaca)? As fitas das grã-cruzes ficam por fora ou por dentro, quando estão presentes chefes de Estado? E coisas assim...

Revelei então que, em algumas dessas ocasiões, já enfarpelado para as cerimónias, em lugar de recorrer “ao Helder” ou “ao Calvet” (autores de dois manuais diplomáticos que consagram esse bom-senso educado e consuetudinário que são as regras do protocolo), eu sempre telefonava ao Zé Bouza. Houve logo um coro: os dois outros colegas faziam exatamente o mesmo que eu!

Para quem não sabe, o Zé Bouza é o embaixador Jose Bouza Serrano, um colega diplomata que “sabe tudo” sobre protocolo. Além de ter chefiado o Serviço do Protocolo do Estado, o Zé escreveu uma “bíblia” sobre o assunto, num estilo pessoal que retirou muito do caráter académico da matéria, recheando o texto de pormenores da sua própria vida.

O José Bouza Serrano é um monárquico que serviu, com lealdade, competência e pundonor, esta República que lhe saiu em rifa histórica, desde um dia de outubro de 1910. Não sei se ele ainda acredita na “restauração” da coroa, mas tem um prazer imenso, nomeadamente nas redes sociais, em destacar as figuras que o Almanaque de Gotha, esse guia Michelin da aristocracia, regularmente recolhe, para memória dos fiéis, as “linhagens”, os nascimentos e os matrimónios, quiçá as separações e outros movimentos de sobressalto familiar, tal como as saídas eternas da cena da vida. Eu, republicano empedernido, jacobino e (para ele) cúmplice objetivo dos “mata-frades”, brinco sempre muito com estas coreografias do jet-set principesco e ofícios correlativos. Mas ele nunca leva a mal.

Esse meu colega deu-me, um dia, uma prova definitiva de grande caráter. Ele estava, na altura, colocado num determinado posto. Sabia-se, mas não pela sua boca, que a relação que tinha com o respetivo embaixador não era das melhores - e, conhecendo o bom feitio do Zé, a razão dos dissídios devia ser seguramente posta a débito do seu ocasional chefe. Em Lisboa, por alturas do Natal e Ano Novo, os colegas costumam reunir-se, mas o Zé, nesse ano, fez-se discreto. Nenhum jantar contou com ele, fez gazeta aos copos do fim de tarde. Tempos depois, perguntei-lhe porquê. A resposta foi um exemplo conjugado de profissionalismo e de educação, em suma, da gentileza de um grande senhor: “Não apareci porque tinha a certeza de que me iam fazer perguntas sobre o ambiente no posto. E como não queria dizer mal do meu embaixador, mas também não tinha vontade de mentir, achei que era melhor abster-me de ter essas conversas”.

Nas Necessidades, nos dias de hoje, o Zé continua a trabalhar para uma carreira a que sempre deu muito de si, às vezes com momentos em que, literalmente, “fez das tripas coração”, em tempos complexos que já lá vão. Mas onde, com todo o merecimento, também se soube divertir bastante, como é da lógica dos que sabem viver bem a vida. É uma jóia de pessoa, com um sorriso permanente, uma gargalhada fácil e sã, em especial quando ambos partilhamos alguns episódios caricatos de que fomos testemunhas bem humoradas.

Por que é que falo dele aqui hoje? Ora essa! Porque é o dia do seu aniversário. Um forte a muito amigo abraço de parabéns, querido Zé!

O papel de D. Zulmira



As minhas primeiras aquisições, na Vila Real da minha infância, foram as revistas, no Albertino dos jornais, vizinho de rua. Todas as semanas, ali ansiava pela chegada do “Cavaleiro Andante” e do “Mundo de Aventuras”. 

Ao longo da vida, as lojas de jornais, tal como as livrarias, exerceram sobre mim uma atração única. Sempre me conheci como um consumidor compulsivo de coisas em papel. Compro imensamente mais do que aquilo que consigo ler, atulho-me (o verbo é forte, mas verdadeiro) de publicações que me seguem, atrasadas na leitura, em sacos de plástico, nas viagens, sobrevivendo, por semanas, até ao dia em que discretos “autos-de-fé” familiares fazem desaparecer essas pilhas de papelada, as quais, como sou avisado quando protesto, já estariam “a criar bicho”. (Há tempos, encontrei uma pasta com recortes “para ler”: tinha artigos do “Diário de Lisboa” e do “Jornal do Fundão”, do início dos anos 70...)

Vem isto a propósito da D. Zulmira, que gere uma loja perto de minha casa e que acaba de nos anunciar que, no final deste mês, vai fechar o seu negócio: venda de jornais e revistas. Ora o papel, por muito que o não queiramos aceitar, está pela hora da morte. Eu próprio, viciado nas folhas e no cheiro da impressão, ando cada vez mais pelo “online”. Embora reconheça que uma das coisas boas e simples da vida é estacionar, com um jornal e uma bica, numa esplanada de Verão, a verdade é que até este excelente JN é por mim quase sempre lido, pela manhã, no écran do iPad em que agora dedilho este artigo.

Parte do admirável mundo velho do papel, que era o mundo da D. Zulmira, está a acabar. O bairro está cada vez mais cheio de velhos, não se vê um jovem com um jornal ou uma revista na mão e os novos vizinhos, que agora nos enchem os passeios de “bonjour” e “au revoir”, não devem ser grandes clientes. Vou sentir a falta de uma leitora dos meus artigos, porque, como acontece com alguns livreiros, a D. Zulmira era muito atenta ao que vendia. Sem surpresas, a nossa última conversa foi sobre o Trump.

As coisas são mesmo assim e a D. Zulmira - cujo nome, como um dia lhe ensinei, significa sublime e brilhante – também vai ter de se adaptar. E como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, talvez valha então a pena, afinal, aproveitar para celebrar esta nova fase da sua vida com um bom vinho. Um destes dias, prometo! vou-lhe oferecer um magnífico verde branco, cruzamento de arinto e loureiro, que acabo de conhecer. A senhora vai gostar. O vinho chama-se Zulmira!

quinta-feira, julho 19, 2018

A SONAE e as empresas familiares

O grupo Sonae anunciou mudanças importantes na sua liderança. Uma filha do fundador, que há pouco desapareceu, vai agora assumir a chefia executiva. Isso acontece, curiosamente, poucos meses de depois de um outro grupo nortenho com forte presença familiar, o grupo Amorim, ter consagrado o papel proeminente da filha do seu também falecido fundador. 

Por razões de envolvimento profissional direto, tenho vindo a atentar de perto, nos últimos anos, para a especificidade das empresas de base familiar. À primeira vista, as questões que se colocam a esses grupos não serão muito diferentes das de outras grandes empresas - e também conheço alguma coisa dessa outra realidade. Mas, de facto, não é assim. Há um conjunto de dimensões muito particulares que são próprias das entidades de base familiar, em matéria de desafios de gestão, o que, aliás, justifica, desde há muito, a existência, em algumas universidades internacionais, de modelos de estudo dessa complexa realidade, que também já deu origem a variada literatura especializada. Precisamente porque cada caso é um caso, os grupos familiares somam às questões tradicionais de “governance” e de gestão a necessidade de refletir a especificidade da composição familiar nesse mesmo processo. E é muito evidente que o sucesso dos grupos depende bastante da sabedoria de muitas das decisões tomadas no quadro dos equilíbrios da família detentora do capital.

Algumas das atuais grandes empresas portuguesas têm uma base familiar. Há dias, li uma biografia de José Manuel de Melo através da qual é traçado o retrato de um grupo de base familiar que, como alguns outros, atravessou complexos tempos da nossa história contemporânea. Outros surgiram, em décadas mais recentes, e constituem hoje uma parte muito importante do tecido económico nacional, que o mesmo é dizer do emprego e da criação da riqueza.

Ao iniciar a escrita deste post, aqui nas redes sociais, dei comigo a pensar que este seria talvez o lugar mais inadequado para deixar uma nota serena sobre a realidade específica que procurei destacar. Ao mesmo tempo, achei que seria um bom teste: veremos como se comporta alguma pulsão para o radicalismo e para a demagogia, para a expressão da inveja e para o insulto fácil, para a personalização diabolizada, que a simples menção dos grandes grupos económicos, e das personalidades que os titulam, regularmente convocam.

CPLP em tempo de esperança



Ao longo dos anos, tenho vindo a alimentar um forte ceticismo sobre a eficácia do funcionamento da CPLP. Não obstante reconhecer que, em alguns setores específicos, a organização deu já alguns passos importantes traduzidos na criação de modelos de cooperação entre os seus Estados membros, devo dizer que não tenho encontrado motivos para ser muito otimista quanto à capacidade da CPLP conseguir dar um salto em frente, em especial para se projetar internacionalmente como um valor acrescentado significativo às diplomacias nacionais que a integram. Há meses, na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa palestra que fui convidado a fazer sobre o tema, deixei um conjunto de razões que, a meu ver, continuam a entravar o desenvolvimento da CPLP, mais de duas décadas decorridas sobre a sua criação.

Por essa razão, foi-me muito grato constatar que a recente cimeira da CPLP em Cabo Verde pareceu ter dado um impulso muito interessante à organização. A forte e rara presença política nos trabalhos, a assunção da presidência rotativa por parte de uma Angola num novo tempo (com a saudável retirada da candidatura da Guiné-Equatorial, um país cujo regime continua a envergonhar a organização) e a assunção de funções do novo secretário-executivo trazem uma justificada esperança.

Francisco Ribeiro Teles (na foto), o novo secretário-executivo, nesta que é a primeira vez que Portugal ocupa esse posto, é um dos melhores diplomatas das Necessidades, tendo a riquíssima e única experiência de ter sido, sucessivamente, embaixador em Cabo Verde, em Angola e no Brasil - três postos que desempenhou com grande eficácia e brilho. É o homem certo no lugar certo e o nosso país não podia ter encontrado alguém com maior qualificação diplomática para tentar dar um novo impulso à CPLP. Assim possa contar com os meios necessários e com a disponibilidade dos Estados em cujo pleno empenhamento reside a chave para o êxito do seu trabalho.

quarta-feira, julho 18, 2018

Sporting, de novo...

Acabou o Mundial. O Ronaldo já está na Juventus. Não há muitas novidades do Jesus das Arábias. A pré-época parecia estiolar. E pronto ! Aí está de novo a novela Sporting. O ex-presidente quer voltar. O presidente da AG não o deixa candidatar-se. Não liguei a televisão, mas imagino que vamos ter “sumo” para várias noites de comentadores. Isto é tudo um pouco triste, não acham?

Aos juristas meus amigos...


... deixo uma fotografia do causídico - e seu ilustre colega - selecionado para seu defensor por alguns cavalheiros dos “Hell Angels”, um grupo de pacíficos cultores do motociclismo, a quem uma justiça precipitada ousou atribuir implausíveis motivações delituosas, as quais, estou mais do que certo, figuras como a que a imagem documenta, dotadas de um arsenal argumentativo feito de uma elegância jurídica que pede meças aos “barras” da barra, irão desconstruir e rebater, com o poder da palavra, ajudada pelo perfil de fino recorte de advogado - uma imagem que devia fazer parte das capas dos manuais da profissão ou, no mínimo, dos cartazes de publicidade da universidade que o formou.

Manoel Caetano


Só hoje dei conta de que morreu Manoel Caetano, o antigo locutor da RTP.

Desde há uns anos, Manoel Caetano, que nunca conheci pessoalmente, era meu "amigo" aqui no Facebook. Trocámos mesmo algumas mensagens, comentando a atualidade. Manoel (com "o") Caetano era meio irmão de Marcelo Caetano e creio que isso não deixou de ter (más) consequências no seu futuro na (então única) televisão, após a Revolução.

Recordo muito bem a sua voz timbrada, soletrando as palavras com ênfase e uma certa pompa, ao jeito de um estilo de locução desse tempo.

Manoel Caetano fazia parte de um Portugal que já se foi. Um dia, aqueles que hoje são populares nas nossas televisões terão o mesmo destino de Manoel Caetano e, em algum lugar, alguém notará então que o respetivo estilo passou a estar datado e completamente "démodé". É a vida...

Deixo aqui uma sincera nota de simpatia para Manoel Caetano, uma figura que faz parte do meu passado, quando telespetador tinha um "c".*


(*os detratores do Acordo Ortográfico não têm nada que agradecer-me o pretexto que aqui lhes dou para se afastarem do tema deste post, como é do seu endémico tropismo para a polémica)

"Bandido" de ideias...


Li há dias que alguns presos de delito comum brasileiros qualificavam como “bandidos de ideias” os presos políticos com que, por vezes, coexistiam em certas cadeias, nos tempos da ditadura militar. Lembrei-me desta, afinal bela, expressão ao ler “As Cartas de Prisão de Nelson Mandela”, que agora a Porto Editora decidiu publicar. Eram as ideias, e a luta pela liberdade em afirmá-las e pelo direito de as levar democraticamente à prática, que o “apartheid” sul-africano lhe negava.

Ao longo dos anos, aprendi bastante sobre Mandela, desde a sua biografia até ao muito que sobre ele se escreveu, desde os anos de prisioneiro do “apartheid” até à sua dimensão como estadista. As 751 páginas destas suas cartas, se não me trouxeram grandes surpresas, ajudaram-me contudo a recortar, de um modo muito mais fino, o perfil psicológico de um homem muito raro, simples e complexo ao mesmo tempo.

É muito difícil, para quem lê a epistolografia de que foi autor durante os seus 28 anos consecutivos de prisão, desligarmo-nos do que Mandela acabaria por ser já em liberdade, do seu generoso papel na reconciliação nacional sul-africana, da sua conduta como líder democrático de um país que conseguiu resgatar de um dos mais abjetos regimes à face da terra.

Mas esse esforço de distanciação tem de ser feito: estas cartas, salvo talvez as últimas, já marcadas por uma libertação no horizonte plausível, representam mais de duas décadas de vida de uma figura condenada à prisão perpétua, a quem só a esperança podia servir de arma de resistência perante a opressão, quase limite, a que estava sujeita. É assim forçoso que nos coloquemos na perspetiva de quem viveu o ambiente concentracionário de Robben Island e de Pollsmoor, sujeito a constantes provocações, isolado da família e dos amigos, tendo apenas alguns companheiros de luta e infortúnio a seu lado.

É esse Mandela que está nestas cartas e é sobre alguns traços notáveis que delas ressaltam que gostaria de deixar algumas impressõDesde logo, o “recorte” que ele faz da sua própria situação, como prisioneiro político, perante um poder que considera e sempre afirma como ilegítimo. Ele assume naqueles textos uma permanente e nunca vacilante atitude de firmeza, de respeito por si próprio como ser humano e dirigente político, agindo sempre sem esquecer que estava ali como representante da dignidade de um povo que lhe não perdoaria a fragilização ou um qualquer compromisso perante o essencial. Jurista, tributário de uma cultura onde há muito da tradição legal britânica, Mandela mantém um registo frio no relacionamento com as autoridades que o privam da liberdade e que regularmente o procuram humilhar, exigindo-lhes em permanência o cumprimento dos direitos que a ditadura do “apartheid” não podia deixar de apresentar como face formal da sua ordem constitucional. E é muito interessante observar que essa reivindicação se torna ainda mais determinada e rigorosa à medida que se pressente que a consistência do regime, sob pressão de sanções e do crescente coro internacional de críticas, o ia forçando a conceder aberturas e a procurar estender “pontes”. É nesse tempo que Mandela se revela como uma grande personalidade política, não mostrando “pressa” em ser libertado, usando o embaraço que para o Estado sul-africano significava a sua manutenção na cadeia como hábil um instrumento negocial.

Ainda no plano da política, estas cartas revelam-nos a ideologia nacionalista subjacente à revolta dos sul-africanos negros, inicialmente muito tributária do exemplo da Índia, do papel de Nehru e de Gandhi, mas igualmente da onda de autodeterminação que varria a África. Muito curiosas – e que devem ser contextualizadas nesse tempo pós-Bandung – são as propostas políticas em que Mandela assenta o seu programa básico, uma espécie de socialismo nacionalista, com afastamento do marxismo caricatural, de onde já estão ausentes quaisquer pulsões autoritárias. Essa era também a forma que Mandela encontrava para negar a sua dependência do comunismo, com cujos seguidores não rejeita alianças, mas de cuja direção política se não considera refém. A política, em termos de projeto, era, para Mandela, um modelo de contraponto ao mundo do “apartheid” e isso significava a liberdade e o respeito por todas as ideologias que coubessem num processo democrático. A prática de Mandela viria a revelar-se consentânea com a teoria.

Mandela é profundamente africano. O respeito pela herança cultural dos antepassados, o orgulho pela história do seu povo, a veneração pelos “mais velhos” e a sua reverência às estruturas hierárquicas tradicionais, o seu quase obsessivo tratamento dos rituais em torno da morte, o sentido profundo de comunidade e o sublinhar da importância dos laços de família, estão permanentemente presentes nas suas cartas. Delas transparece um equilíbrio entre a tradição e a modernidade, como se o próprio Mandela considerasse ser uma espécie de fator de ligação entre um passado de luta contra o colonialismo e o presente de então em que era preciso levar à prática uma derradeira luta de libertação contra uma opressão de novo tipo. Porém, Mandela relativiza sempre o seu papel, dilui-se constantemente no grupo e até, a espaços, se autocritica por ter de se ocupar demasiado de si próprio.

Uma última palavra para os sentimentos. Alguém, melhor do que eu, poderá fazer uma exegese mais elaborada sobre a evolução das suas cartas para Winnie, desde tempos apaixonados em que a escrita é quase que apenas limitada pelo pudor, até a uma subtil transformação numa “fraternidade” justificada pela partilha progressiva do destino na luta política. Mas Mandela é de um carinho sem limites para os filhos e para os amigos, com uma atenção angustiada aos seus problemas, limitada apenas pela impotência da sua própria situação. O permanente conselho para o investimento na educação, como fator libertador, mas também na responsabilidade dentro do quadro das relações familiares, mostram uma figura humana muito fora do comum, num mundo político onde, frequentemente, as personalidades de topo são absorvidas pela luta. Ironicamente, talvez a prisão, o isolamento, porque não a saudade, tenham afinal contribuído para a construção desta fantástica figura da História universal. E talvez estas cartas, lidas agora, nos ajudem a perceber melhor a razão por que a todos nos parece natural devermos uma homenagem permanente a Nelson Mandela.

Uma dúvida


Não sou um tudólogo, não sei falar de tudo, longe disso! Nos jornais onde escrevo, regular ou ocasionalmente, pronuncio-me apenas sobre aquilo de que julgo saber alguma coisa e que acho que pode interessar a quem me lê, mas nunca afirmo que é sobre aquilo que sei - isso só os outros poderão avaliar. Aqui, pelas redes sociais, que é um terreno lúdico de “irresponsabilidade ilimitada”, permito-me muitas vezes ir um pouco mais longe e dar a minha opinião, ou emitir impressões, sobre temas do quotidiano que não fazem parte das áreas de conhecimento em que posso ter alguma autoridade. Não levo estes espaços de espontaneísmo de escrita demasiado a sério...

Este “disclaimer” vem a propósito da perplexidade que nunca consegui resolver e para a qual ninguém me forneceu jamais uma resposta satisfatória: por que razão, pelo menos aos olhos do cidadão comum, os currículos do ensino estão sempre a mudar? Desde há décadas que, ciclicamente, os governos que chegam se permitem a liberdade de mudar esses modelos pedagógicos, de alterar aquilo que é ensinado, criando uma permanente instabilidade no setor. É mesmo necessária esta agitação? Não seria possível “parar” por algum tempo? Há razões de fundo que justifiquem esta espécie de experimentalismo recorrente, que afeta, seguramente, alunos e professores? 

Como não sei, pergunto.

terça-feira, julho 17, 2018

João Semedo


Há quatro anos, João Semedo, à época co-lider do Bloco de Esquerda com Catarina Martins, sondou a minha disponibilidade para estar presente na "universidade de verão" do seu partido, para falar sobre a situação na Europa. 

Declinei esse amável convite, por duas razões: não estaria em Portugal nessa altura e, mesmo que estivesse, mantinha com o BE, desde a votação do PEC IV, em 2011, uma divergência política insanável, que inviabilizaria a minha presença, como na ocasião lhe expliquei. 

Na nossa troca de mensagens, confirmei a grande dignidade de João Semedo e o seu modo urbano e sereno de estar na política. Voltámos a encontrar-nos, meses mais tarde, no almoço dos 90 anos de Mário Soares.

João Semedo teve entretanto um grave problema de saúde, que o obrigou a afastar-se da liderança do Bloco. Agora, a doença fez o seu caminho.

Quero deixar aqui uma nota de pesar pela desaparição de João Semedo, uma figura que me merece um grande respeito, com um passado feito de fortes convicções.

A finlandização de Trump



”Better than super”, segundo o “New Yorker”, terá sido a expressão utilizada por Sergey Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros russo a uma agência noticiosa daquele país, para qualificar o modo como correu, na perspetiva da Rússia, a cimeira entre Putin e Trump. 

De facto, melhor era impossível. Foi como se o “script” daquela inacreditável conferência de imprensa tivesse sido escrito em Moscovo. O modo como mesmo os meios mais conservadores da América estão a reagir é a prova de que algo descarrilou.

Trump parece ter sido vítima de uma espécie de “finlandização”, essa “neutralidade colaborante” que continua a ser um ferrete histórico na memória do país que acolheu o encontro dos dois líderes. Ao colocar a credibilidade das instituições do país que governa ao nível das garantias de um país estrangeiro contra o qual partilha sanções e cujas ações no plano internacional oficialmente condena, o presidente americano, como se dizia há pouco num outro site americano, ou é um inocente útil ou um instrumento consciente a favor da Rússia ou ambas as coisas ao mesmo tempo.

Tempos curiosos, estes. E perigosos, claro. 

segunda-feira, julho 16, 2018

A ilusão dos poetas

Na quinta-feira passada, no jardim de uma embaixada em Lisboa, onde o pretexto da reunião era a homenagem a um político poeta - ou vice-versa -, eu referi a “Balada da Neve”, do Augusto Gil, já nem sei bem a que propósito. 

Nesse instante, passou por nós aquele que é, indubitavelmente, um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, Nuno Júdice, a quem eu comentei: “Estou a falar de um ‘colega’ teu, o Augusto Gil!”

Para minha surpresa, o Nuno retorquiu: “Bem me enganou, esse Augusto Gil!” Não tendo sido contemporâneos (o Nuno nasceu precisamente vinte anos após a morte de Gil), ficámos à espera da explicação. 

E ela veio: “Eu nasci no Algarve, onde não nevava. Pela “Balada da Neve” aprendi que a neve “bate leve, levemente”, fazendo barulho. Até que um dia, já adulto, assisti à neve a cair e, como toda a gente, constatei que não há nada de mais silencioso do que um nevão”.

Afinal, os poetas também se enganam uns aos outros...

À dúzia é mais barato...


  • Estou a ficar velho: depois de um belo fim de semana com amigos, comidas, copos e muita conversa, sinto-me cansado e a ansiar por férias com amigos, comidas, copos e muita conversa.
  • Estou a ficar velho: dez anos depois de o ter iniciado, ainda teimo em escrever todos os dias este meu blogue.
  • Estou a ficar velho: cada vez recuso mais convites para ir falar às televisões.
  • Estou a ficar velho: sinto-me cada vez mais Sportinguista - quer ganhe, perca, empate ou desça de divisão.
  • Estou a ficar velho: deixei definitivamente de ir a restaurantes em que não fazem reservas.
  • Estou a ficar velho: gosto de me sentar a ler um jornal em papel numa esplanada, com uma cerveja e tremoços.
  • Estou a ficar velho: gosto de ver mulheres bonitas nas imagens televisivas dos estádios de futebol.
  • Estou a ficar velho: gosto imenso de ver as cegonhas nos postes da REN.
  • Estou a ficar velho: um hotel onde demoram mais de cinco minutos para fazer o “check-in” passa a “no-go area” na minha lista de afinidades eletivas.
  • Estou a ficar velho: um restaurante em que fiz reserva e em que a minha mesa demora a estar preparada mais de cinco minutos (vá lá!, sete, se me apetece muito lá comer) desce rapidamente na minha lista íntima de preferências.
  • Estou a ficar velho: dei uma volta de carro a um quarteirão só para não perder a oportunidade de fotografar um jacarandá.
  • Estou a ficar velho: já não tenho muita pachorra para conduzir por horas mas tenho imenso prazer em ir ao lado a ler jornais & net, mandar bitaites sobre a condução alheia e ser “managing director” (1) da temperatura do carro, (2) da seleção da música e (3) dos lugares onde se deve parar.

domingo, julho 15, 2018

O sabor da vitória

Não sou francês: mas hoje deve ser muito agradável ser cidadão de um país que, sendo vitorioso à escala do mundo, tem contra si a inveja de boa parte desse mesmo mundo.

Croácia (2)


Aqui fica mais uma memória da Croácia, a horas da final do Mundial com a França.

A Croácia declarou a sua independência em Junho de 1991, no quadro de um complexo processo que levou à divisão da antiga Jugoslávia. Terríveis atos de guerra e tensões étnicas abalaram então a região balcânica, onde hoje, para além da Croácia, figuram, com estatuto de Estados independentes, a Eslovénia, a Bósnia-Herzegovina, a (antiga República jugoslava da) Macedónia, a Sérvia, Montenegro e o Kosovo.

Deve dizer-se que o objetivo croata estava longe de fazer a unanimidade europeia. O regime político do Estado dirigido por Franjo Tudjman era alvo de fortes críticas em matéria de respeito pelos direitos humanos e pelas regras da Convenção de Genève, durante a guerra inter-jugoslava. Além disso, na memória histórica coletiva, subsistia, em muitos países europeus, um forte ressentimento contra os croatas, por virtude da ligação que o "Estado livre" dirigido pelos "oustachis" pró-nazis de Ante Pavelic havia tido com Hitler, durante a segunda guerra mundial. 

A Alemanha, em especial o seu MNE Hans-Dietrich Genscher, foi manifestamente o país mais aberto ao reconhecimento da independência croata por parte das instituições europeias, que só viria a ter lugar em 15 de janeiro de 1992 - precisamente num período em que Portugal detinha a presidência da União Europeia. Recordo a minha quase solidão, como diplomata que representava a presidência das Comunidades Europeias (só em fevereiro desse ano seria assinado o tratado de Maastricht, que criou a "União Europeia"), no cocktail oferecido pelos croatas em Londres, ao final desse dia. A independência da Croácia, se bem que aceite, estava longe de ser saudada com entusiasmo pela generalidade dos países europeus.

A exemplo do que, com frequência, acontece com Estados em busca de reconhecimento, os croatas haviam desenvolvido, a partir de 1991, um pouco por todo o mundo, uma diplomacia pública de convicção, tentando fazer perceber as razões que justificavam a sua autonomização como entidade independente, sucessora do anterior Estado federado existente dentro da Jugoslávia. 

Nesse sentido, a nossa embaixada em Londres havia sido visitada, com alguma regularidade, por um médico croata, com nacionalidade inglesa, que informalmente representava os interesses de Zagreb em Londres. Chamava-se Drago Stambuk, era um poeta com vasta obra publicada e aparecia como regular portador, não apenas da argumentação das suas autoridades em favor do processo de independência, mas igualmente de razões contra as acusações de que o seu regime era alvo (e que infelizmente vieram a ser comprovadas) sobre as derivas autoritárias do governo Tudjman, nomeadamente o terrível tratamento dado aos sérvios residentes na zona croata da Krajina. 

Sem nunca lhe esconder as dúvidas que na Europa comunitária se alimentavam sobre os métodos do regime de Franjo Tudjman (e que, a título pessoal, partilhava em pleno), mantive sempre com Drago Stambuck uma excelente relação pessoal, que se transformou mesmo em amizade.

Um dia, após o anúncio reconhecimento da independência do seu país pelo Reino Unido, Drago Stambuk telefonou-me: tinha sido encarregado de abrir a embaixada croata em Londres. Não podia ser embaixador, porque tinha nacionalidade britânica, mas teria a responsabilidade prática de preparar toda a estrutura de representação croata em Londres. Como não sabia como proceder, "por onde começar", pediu a minha ajuda. Recordo longas conversas, em minha casa e em "pubs", durante as quais "desenhámos" a estrutura da primeira embaixada croata do Reino Unido. Nesses contactos, dei-lhe conta das formas de proceder face às autoridades locais, de "quem era quem" no Foreign Office, do modo de feitura das "notas verbais" e da preparação de outra documentação que faz parte da liturgia diplomática bilateral. Creio mesmo ter-lhe oferecido um exemplar da "bíblia" anglo-saxónica da profissão diplomática, o "Satow's guide to diplomatic practice". Guardei sempre na memória essa minha contribuição para a montagem da primeira embaixada croata em Londres.

Folguedo de Cima


Vista parcial do panorama que se observa do solar junto do celebrado miradouro de Folguedo de Cima, nos arredores da aldeia de Mangalhona, histórica localidade (vulgarmente conhecida por outra designação) da zona raiana. Ao longe, o país vizinho. 

sábado, julho 14, 2018

Croácia


A Croácia disputa amanhã com a França a final do Mundial de futebol. Nos últimos dias tenho observado que muitos dos apoiantes da França acabam por sê-lo apenas como forma de se oporem politicamente à Croácia. A sua história durante a Segunda Guerra mundial, bem como o comportamento do novo país durante o conflito jugoslavo, criaram fortes anti-corpos à Croácia em vários setores “com memória”. E o futebol não escapa a estas polarizações.

Vou recordar uma historieta, que talvez venha a propósito.

O escritor Álvaro Guerra foi um dos escassos embaixadores oriundos do mundo fora da carreira diplomática por quem o Ministério dos Negócios Estrangeiros sempre manifestou genuíno respeito. A história que hoje relato passou-se em 1996, ao tempo em que ele era nosso representante junto do Conselho da Europa (CdE).

Numa tarde em Estrasburgo, senti o Álvaro um pouco embaraçado, durante a conversa que comigo teve, no caminho entre o aeroporto e hotel. Eu representaria Portugal, no dia seguinte, no Comité de Ministros do CdE, nesse que era o meu primeiro ano no governo. Notei que estava mais lacónico do que era costume e, uma hora depois, ao deixar-me à porta da residência do secretário-geral da organização, onde os membros dos governos tinham um ritual jantar, surpreendeu-me com a frase: "Logo à noite, espero-o no hotel. Precisava de falar consigo".

Fiquei intrigado. Eu tinha uma excelente relação pessoal com Álvaro Guerra, uma figura da intelectualidade portuguesa que conheci logo após o 25 de abril, cujo humor e simpatia, depois complementados pela vivacidade inteligente da Helena, sua mulher, transformavam as minhas idas a Estrasburgo em belos momentos de amena cavaqueira, onde a política portuguesa era sempre percorrida com apurada ironia. E grande cumplicidade. Que quereria o Álvaro? Um novo posto? Ele estava há pouco tempo no CdE, pelo que talvez me quisesse sensibilizar para algum problema de pessoal. Logo se veria.

Os jantares em casa do secretário-geral do CdE, que tinham lugar todos os seis meses, eram sempre precedidos de uma conversa "au coin du feu", com um convidado. Nessa noite, entrei na sala lado o lado com o ministro croata dos Negócios Estrangeiros, Mate Granic, e, por um acaso, sentámo-nos um em frente ao outro, nos dois melhores sofás individuais da sala.

(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)

Eu conhecera Granic, meses antes, em Zagreb. No quadro de um discreto (diria mesmo, secreto) périplo que havia feito à volta da Europa, acordara com ele uma troca de apoios: a Croácia votaria favoravelmente a nossa candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e nós dar-lhe-íamos o nosso voto para a sua pretensão de entrar para o CdE.

Diga-se que esta última candidatura estava longe de ser consensual: o regime croata mantinha ainda falhas no tocante à observância de alguns princípios da ordem jurídica protegida pelo CdE e, por essa razão, alguns Estados membros mantinham reservas quanto a esta adesão. Por "realpolitik" e particular interesse nacional, mas igualmente pelo facto de considerarmos que uma integração da Croácia no CdE era a melhor forma de promover a observância de tais obrigações, o governo português havia optado por dar o seu apoio à pretensão croata, contrariando abertamente a posição que era defendida pela missão portuguesa em Estrasburgo, chefiada por Álvaro Guerra. No dia seguinte a esse jantar, a anteceder a reunião do Comité de Ministros, teria lugar a "foto de família", com os membros do governo e os embaixadores, que consagraria a entrada da Croácia na organização.

Regressei ao hotel e, no "hall", estava já o Álvaro Guerra. Sentámo-nos para uma bebida no bar e ele revelou-me a razão pela qual queria falar comigo: vinha pedir-me o favor de o dispensar de estar presente na cerimónia do dia seguinte. Álvaro Guerra fora embaixador em Belgrado e, tal como a esmagadora maioria dos colegas portugueses que haviam tido a experiência de servir na capital jugoslava (hoje da Sérvia), Belgrado, Álvaro "went native" e assumia uma posição fortemente pró-sérvia, com muito escassa simpatia (e isto é um "understatement"...) pela Croácia.

Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo correto e não conflitual com os interesses do país. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).

Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "Quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci. O Álvaro não se zangou comigo, como também o não fazia quando eu combatia, com ardor e ironia, a sua "aficción" tauromáquica.

O Álvaro morreu em 2002. Se fosse vivo, tenho a certeza de que amanhã estaria a gritar: “Allez les bleus!”.

sexta-feira, julho 13, 2018

Ai Brasil !


Há dias, em escassas horas, o Brasil assistiu – e eu, que estava por lá, também - a um debate extremado de natureza político-jurídica, envolvendo, uma vez mais, Lula da Silva. Um juiz de turno, numa instância que, horas depois, viria a ser declarada incompetente para tal, tomou a polémica decisão de mandar soltar o antigo presidente. No emaranhado quase incompreensível que hoje constitui o processo judicial brasileiro, sucederam-se ordens e contra-ordens. As televisões encheram-se de especialistas (como por cá também houve, ao que me disseram, sobre caves tailandesas). Os atores políticos, chamados a pronunciar-se, reagiram da forma expectável, algumas vezes com a ambiguidade de um discurso tático, atentas as eleições que se aproximam. E, sem surpresa, Lula continuou na prisão, onde, aliás, rapidamente teria regressado, se acaso tivesse sido solto.

Os amigos de Lula, que entendem que a sua condenação e posterior prisão não passaram de uma orquestrada fraude judicial com objetivos políticos, exultaram, entretanto, com a possibilidade momentaneamente aberta pelo complacente juiz. Os seus detratores, ao invés, crismaram o agente da justiça de todo arsenal de epítetos injuriosos e, naturalmente, rejubilaram com o desfecho frustrado do episódio. 

Nada disto parece hoje estranho, num Brasil que vive um tenso ano político, com eleições no segundo semestre, com um presidente completamente desacreditado, um governo errático que parece seguir um “script” desligado do mundo real, com as mãos atadas por um Congresso (Senado e Câmara de deputados) onde se “costuram alianças” e se fazem “articulações” que espelham já todas as ambições dos proto-candidatos. O sistema político mostra-se incapaz de uma auto-regeneração, vivendo sob uma patente desconfiança dos cidadãos, que olham com desprezo a continuação dos jogos de distribuição de lugares e verbas orçamentais, imagem de marca da velha e relha política. A máquina judicial, onde, desde há uns anos, passaram a repousar (e ainda repousam) muitas esperanças, surge cada vez mais acusada de instrumentalização, ao serviço das agendas políticas. E nela, cada cidadão brasileiro já elegeu os “bons” e os “maus”.

Neste maniqueismo obsessivo, o Brasil de hoje pensa com o coração e o “nós ou eles” converteu-se na regra de um jogo muito perigoso. Sabe-se como um contexto instalado de desencanto pode ser pasto fácil para populismos. Por mim, não gostaria de ver o Brasil regressar à América Latina, se bem me faço entender.

quinta-feira, julho 12, 2018

Ramona e outros azares


Na minha infância, recordo-me de ouvir a minha mãe dizer que uma música chamada “Ramona” dava má sorte. Quando os acordes dessa melodia surgiam na rádio (na minha terra não usamos a palavra telefonia e outros vocábulos análogos, que fazem parte do léxico das lisboetices), havia uma corrida imediata a mudar de estação. 

Eu era muito miúdo e impressionava-me que pudesse haver coisas dessa natureza, ou melhor, coisas que ultrapassassem a natureza que tinha à minha frente, que foi sempre o alfa e o ómega da minha maneira de olhar o mundo. Vivi a acreditar no que vejo. E sempre e só nisso.

Nessa eterna e simples perspetiva, sempre vi as sextas-feiras 13, como vai ser o dia de amanhã, como uma crendice com folclórica graça, mas só isso. Não acredito no azar e na má sorte, talvez porque, na vida, sempre tive sorte da boa - ou, quando isso não aconteceu, assobiei para o lado, fiz de conta e passei à frente. 

Não passo por baixo de escadas apenas com medo de que me caia algo na cabeça, não gosto de gatos pretos porque não gosto de gatos em geral, abro sem receio guarda-chuvas dentro de casa para testar o estado das varetas e só não deixo tesouras abertas em cima da cama para não correr o risco de me cortar. Sou totalmente imune a toda e qualquer crença, a coisas ditas “sobrenaturais”, a signos e, repito, a tudo aquilo que esteja para além do que o meu olhar alcança. Eu faço parte de quantos não têm a menor curiosidade em saber o que está para além da curva...

Vem isto a propósito da “Ramona” e de amanhã ser sexta-feira 13. Ontem, numa estrada do Brasil, perto de Congonhas do Campo, vi uma placa com o nome de uma localidade chamada Ramona. Contei então para a pessoa que ia ao meu lado a atitude da minha mãe perante a canção mas, curiosamente, não senti vontade de ir ao YouTube para ouvir a malfadada melodia. Seria por respeito à crença da minha mãe ou porque começo a enfraquecer as minhas defesas face ao desconhecido? Fiquei na dúvida.

Ainda a propósito de “azares”, recordo-me de ter um dia falado, no Brasil, numa conversa de amigos, de um episódio ocorrido no dia da implantação da nossa República, em 5 de outubro de 1910. Estava então de visita a Portugal o presidente eleito do Brasil, que tomaria posse no primeiro dia do ano seguinte. Inopinadamente, ele foi apanhado no meio dos combates. Teve de haver uma parlamentação entre os contendores por forma permitir a saída do dignitário (aproveito para pedir que não escrevam “dignatário”, como se vê muito por aí) estrangeiro, que nada tinha a ver com a nossa peleja interna. 

Porém, quando, no meio dessa conversa, tentei lembrar-me do nome do homem, um dos amigos pediu-me que o não fizesse: é que, aparentemente, referir esse nome, no Brasil, dá azar! 

Fiz-lhe a vontade, mas só então. Amanhã, sexta-feira 13, dia em que por qualquer razão me apetecia estar em Vilar de Perdizes, já posso dizer, para desafiar o azar, que esse político se chamava Hermes da Fonseca (na imagem).

E pronto: aqui fica a minha história para o dia oficial do azar, data em que, por acaso, vou ter a dita de viajar para casa de uns amigos, num local tão aprazível que o crismei do lugar de Nossa Senhora do Folguedo de Cima. É que ainda há dias de sorte e o meu vai ser nesta sexta-feira 13.

Encore Pivot