O meu querido amigo João Cravinho fez 80 anos, segundo consta. Um imenso grupo dos muitos amigos e admiradores que tem oferece-lhe hoje um almoço.
Deixo o texto que escrevi para o livro que hoje é editado em sua homenagem:
Um rapaz do meu tempo
Esta ideia de que o João
Cravinho é 12 anos mais velho do que eu é apenas uma insuportável sujeição ao
calendário, sem a menor aderência a realidade objetiva das coisas. Sempre vi o
João como « um rapaz do meu tempo », mesmo que a expressão seja já de
outro tempo. Por isso, os seus ditos 80 anos impressionam-me muito pouco.
Lembro-me – ele não se
lembra, claro – de me ter cruzado com o João nos idos de 74, naqueles
corredores, entre fardas e guedelhas, onde se construía uma confusa esperança,
com alegria, ingenuidade e, vá lá !, confessemos, alguma
irresponsabilidade. Ele era ou viria a ser « quase ministro », eu
andava por ali a exercitar a política que tinha lido, absolvido nos erros pela
boa intenção de ajudar a desenhar uma alternativa feliz à ditadura. Um dia, a
vida levou-me para fora e, por muito tempo, perdi o João de vista, de quem ia
ouvindo falar – sempre bem, com respeito e admiração. Só mais tarde, a
« mesa dois » do bar Procópio, sob o humor ímpar do Nuno Brederode,
nos voltaria a juntar, em largas e divertidas charlas. Finalmente, numa tarde
quente de outubro de 1995, assobiando o Vangelis, entrámos ambos para essa
aventura simpática que foi o governo de António Guterres. Já amigos, passámos a
conhecer-nos melhor, com ele a tratar-me por um eterno « meu caro
Francisco ».
Foi então que « aprendi » o João Cravinho. Podem crer que foi « um
espetáculo » poder observar um ministro criativo, ousado, muitas vezes
polémico, sempre teimoso, coerente, sólido como uma rocha, olhando dossiês
técnicos com a vivacidade de um adolescente brilhante, mostrando-nos a
modernidade de um olhar singular sobre a política. Posso confessar um
segredo ? Foi ao ter o privilégio de assistir a algumas
« performances » do João em Conselho de ministros que eu verdadeiramente
entendi o que podia significar, em certas áreas especializadas, uma política
« de esquerda » – sem chavões ideológicos, mas com um pragmatismo de
onde nunca estava distante a solidariedade e a discriminação positiva para quem
dela necessitava.
O que sempre me impressionou no João Cravinho foi a sua abertura ao
contraditório, atitude de onde me pareceu, aliás, que retirava imenso gozo,
porque isso lhe permitia exercitar a dialética, onde a firmeza dos seus
argumentos melhor brilhava. Vi-o em confrontos complexos, em que aquele seu eterno
sorriso, às vezes gargalhante, irritava, não raras vezes, o interlocutor. Mas
pude apreciar e beneficiar da sua abertura a ideias diferentes, que sempre
explorava com benevolência e simpatia. É talvez por isso que nunca o vi com uma
« idade » diferente da minha.
Uma tarde, fui confrontado com um João Cravinho inesperado, de cuja cara
desaparecera o sorriso para dar espaço quase às lágrimas. Foi numa evocação do
embaixador Ruy Teixeira Guerra, nas Necessidades. O João não tinha esquecido, e
lembrava isso com emoção, a mão amiga que lhe tinha sido por ele estendida,
creio que num momento difícil de vida. Marcou-me muito esse momento e
« esse » João Cravinho.
O João faz 80 anos ? Pois isso ! Ele que espere agora pelos meus
80, para comemorarmos a idade comum da esperança, que será sempre a daqueles
que acreditam que a vida coletiva pode ser vivida de outro modo, mais solidário
e mais justo.