sábado, dezembro 07, 2024

Soares e uma certa diplomacia


Oslo, Noruega, junho de 1980. 

O conselheiro da embaixada espanhola em Oslo telefonou-me: "O teu embaixador vai ao aeroporto receber Mário Soares?". Caí das núvens: "Mário Soares vem a Oslo?!". Era uma reunião do "bureau" da Internacional Socialista. A nossa embaixada não tinha sido avisada. O embaixador espanhol, um conservador da velha escola, com ar altivo de "señorito", num tempo em que Adolfo Suarez chefiava o governo em Madrid, ainda não tinha decidido sobre se iria ou não acolher Filipe González. Queria saber o que íamos fazer. Disse-lhe que não sabia, mas que logo lhe diria. 

Por esse tempo, em Portugal, Soares era líder da oposição ao governo da primeira Aliança Democrática, chefiada por Sá Carneiro. Eanes era presidente da República e, por coincidência, há pouco mais de uma semana, tinha efetuado uma visita de Estado à Noruega, de que a nossa minúscula embaixada ainda mal estava refeita.

Nessa embaixada, eu era o único diplomata além do embaixador, de seu nome António Cabrita Matias.  Ele tinha chegado a Oslo em meados de maio, vindo da Austrália, que fora o seu primeiro posto como embaixador. Tinha sido transferido à pressa, para poder acolher a visita de Eanes, dado que o anterior titular, Fernando Reino, era, desde há uns meses, o novo chefe da Casa Civil do próprio Eanes. Eu ficara entretanto encarregado de negócios, chefiando a embaixada, durante esses meses de transição e de preparação da visita.

Cabrita Matias, era um homem pequeno, magro, sempre elegantemente vestido, com um cabelo negro puxado para trás, penteado com aparente brilhantina, naquele modelo de estética capilar que sempre identifico nas fotografias dos primeiros governantes do Estado Novo. Tinha um sorriso que era mais um esgar profissional, mas que projetava um ar de simpatia tímida, embora algo desdenhosa.

Fui avisá-lo da chegada de Soares, que era logo no dia seguinte. Os tempos políticos em Portugal estavam muito tensos, nesse ano que iria ficar bem marcado na nossa História política. Vi que Cabrita Matias hesitava claramente sobre o que deveria fazer, embora procurasse não dar isso a entender. Receber o líder da oposição, num tempo político lisboeta tão crispado, sem ter instruções expressas para tal?

António Cabrita Matias foi talvez a pessoa mais solitária que cruzei em toda a minha vida. Era solteiro, um pouco misógino, mas creio que não homossexual. Passava as férias e os Natais completamente sozinho. Gabava-se de não escrever a ninguém. Não o vi cultivar um único amigo, nem sequer na carreira, embora, no fim da vida, eu próprio o considerasse como tal. Desconfiava, à partida, de tudo e de todos, quiçá fruto de experiências desagradáveis, que nunca me revelou. Cuidava em manter a maior distância possível face a Lisboa. 

Colocado em 1974 na Austrália, por seis longos anos, num tempo em que a informação circulava de outra forma, perdera contacto com o país em acelerada mudança, nesses anos após a Revolução de Abril. Não comentava a política portuguesa, embora eu o sentisse bastante conservador. As tricas partidárias em Portugal estavam, em absoluto, fora do seu radar de interesses. Desconhecia os nossos atores políticos mais comuns e tinha reais surpresas com o que eu lhe contava de um mundo lisboeta que continuava a interessar-me muito e a ele quase nada. Era completamente incapaz de me pedir o "Expresso" ou "O Jornal", que eu recebia pela mala diplomática. Comigo comentava apenas temas internacionais, onde era evidente um fascínio pela América, onde vivera tempos que deviam ter sido agradáveis. Lia o "Herald Tribune" e a "Time". Era inteligente, culto, dotado para línguas. 

Cabrita Matias tinha uma vida social e diplomática formal, clássica a roçar a caricatura, mas com uma grande generosidade nos convites que fazia como embaixador, onde gastava abundantemente aquilo que o Estado lhe pagava. Parecia, contudo, ter, como grande objetivo de vida, que, simplesmente, o deixassem em paz. Na sua filosofia profissional, a embaixada devia evitar fazer-se notada pelas Necessidades. Nisso era o mais flagrante contraste com Fernando Reino, que trabalhava como se Oslo fosse o centro do mundo. 

Devo confessar que não me foi fácil conviver diariamente, durante dois anos, com uma pessoa com aquele recorte idiossincrático. Contudo, com um algum esforço de adaptação da minha parte e uma crescente amabililidade do lado dele, que cedo percebeu a minha lealdade funcional, acabámos por nos dar relativamente bem. Faço este retrato para melhor se poder entender o que vou relatar.

Voltemos então a Mário Soares, que chegava no dia seguinte. Para quem não saiba, não há regras fixas a seguir, nas visitas de figuras que não ocupam funções oficiais. Cada caso é um caso e é preciso, essencialmente, ter algum bom senso e inteligência prática. 

Cabrita Matias não perguntou a minha opinião sobre o que deveria fazer, mas eu dei-lha: "Se me permite que lhe diga uma coisa, acho que o senhor embaixador deve ir ao aeroporto. Trata-se de um antigo primeiro-ministro e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros". E acrescentei um argumento que não era despiciendo, para um embaixador acabado de chegar ao país: "O governo trabalhista norueguês não deixaria de notar, se acaso não estivesse lá a receber Soares". 

O que eu disse tocou-o, embora intimamente deva ter pensado que era o meu "côté socialista" (como, mais tarde, com frequência, diria, a sorrir, quando passou a ter maior confiança comigo) que induzia o conselho que eu lhe dava. Como era extremamente orgulhoso e não queria que ficasse a ideia de que tinha sido eu que o influenciara, logo acrescentou: "Decidi ir. Afinal, foi o ministro Mário Soares quem, há anos, me nomeou para Camberra como embaixador".

No dia seguinte, no aeroporto de Fornebu, à chegada de Mário Soares, que vinha acompanhado por Maria Barroso, Rui Mateus e a mulher deste, constatou-se que não cabíamos todos no mesmo carro. "A embaixada não tem outro carro?", perguntou-me Mateus, com um ar um tanto sobranceiro. "A embaixada tem apenas este carro e nem este funciona muito bem...", respondi-lhe, seco. Ele e a mulher foram de táxi, eu acomodei-me ao lado do motorista e Soares, Maria Barroso e o embaixador ocuparam o banco de trás do carro.

A conversa entre os três começou por ser de circunstância. Cabrita Matias, como vim a constatar, era um requintado especialista em platitudes. Tinha mesmo, na sua abundante biblioteca, cheia de coisas religiosas e de ciências ocultas, livros americanos com anedotas e historietas, como um meio prático para iniciar e alimentar conversas fúteis. É verdade! Era simpático e deliberadamente mimético nos seus contactos profissionais, como tática para agradar. A última coisa que lhe passava pela cabeça era tocar em temas polémicos. Fugia disso como o diabo da cruz! Imagino que tivesse descrito a paisagem e falasse da vida em Oslo, na curta viagem a caminho do hotel em que Soares se instalava e onde a reunião da Internacional Socialista iria ter lugar.

Quando, ainda durante o trajeto, o embaixador referiu, incidentalmente, a recente visita de Estado de Eanes, Soares agarrou o tema: "Sabe, senhor embaixador: a situação política em Portugal atravessa um momento de grande tensão. Eu tenho profundas divergências com o presidente Eanes e com o primeiro-ministro Sá Carneiro. E, como saberá, o primeiro-ministro tem uma muito má relação com o presidente. Dificilmente as coisas poderiam estar piores". 

Com imensa curiosidade, esperei a reação de Cabrita Matias. Esperei e temi, com razão. Saiu-lhe algo parecido com isto: "Eu percebo, senhor doutor, que toda essa agitação política acabe por ser uma forma vibrante de viver o jogo democrático em Portugal. O que seria dos jornais se não fosse essa imagem de constante polémica! Mas, com certeza, há um espaço de diálogo para pacificar essas tensões. Estou certo que, em alguns dias, em finais de tarde, o senhor doutor, o dr. Sá Carneiro e o general Eanes se encontram, com cálice de cognac na mão e um bom charuto, ao calor de uma lareira, talvez no palácio de Belém, para discutirem os três, com calma, as grandes questões do país".

Eu enterrava-me no banco da frente, desgostoso por não ter um espelho retrovisor para ver a cara de Mário Soares e Maria Barroso. Aguardei, ansioso, a resposta e ela chegou, em alto e bom som, abalando o interior do velho Peugeot: "Ó senhor embaixador! Em que mundo é que o senhor vive?! Eu, o dr. Sá Carneiro e o presidente Eanes em conversa à lareira?! Era só o que faltava! Como é que pode ter uma ideia dessas? O senhor não sabe o que é Portugal nos dias de hoje!". Já não recordo o resto da cena. Entretanto chegámos ao hotel, onde os visitantes ficavam.

O hall do SAS de Oslo estava apinhado de delegados estrangeiros, ansiosos por fazer o "check-in" e, simultaneamente, inscreverem-se para a reunião socialista. Ainda olhei em volta, não fosse por ali surgirem Willy Brandt ou Filipe Gonzalez. Mas nada, ninguém conhecido. Com Soares a dar mostras de fadiga da viagem e porventura desejoso de se ver livre de nós, eu procurava apressar as formalidades. Mas o "first come, first served" da democracia nórdica impunha-se. Cabrita Matias, pela certa adepto do "à tout seigneur, tout honneur", decidiu, a certa altura, tomar a iniciativa. Vendo passar uma senhora, de cujo pescoço pendia uma identificação com o vermelho do evento, ia-a tomando quase pelo braço, com ar e tom irritado, como se de uma hospedeira da reunião se tratasse. Fui eu quem, no último instante, lhe travei o gesto, explicando: a senhora era Gro Harlem Brundtland. Dentro de escassos meses, iria ser escolhida para primeira-ministra da Noruega, como já estava nas cartas. Cabrita Matias tinha ainda pouco conhecimento da vida política local. Escapou ali, por muito pouco, a uma cena, que podia ter sido penosa, com alguém com quem um embaixador não poderia nunca ter conflitos.

Passaram entretanto dois dias. Fomos ao hotel buscar o casal Soares para os levar ao aeroporto. Mário Soares parecia ter esquecido as bizarrias do nosso embaixador. Talvez para fazer conversa, contou que, dentro de semanas, iria fazer uma visita à China, como vice-presidente da Internacional Socialista. Era a primeira vez que a organização recebia um convite dessa natureza. Soares mostrava-se curioso com essa futura experiência. No banco de trás, ouviu-se a voz do embaixador: "Vai passar por Nanquim, senhor doutor?" Soares não sabia ainda do programa. "É que se for a Nanquim, daqui a semanas, vai poder ver os mais bonitos campos de flores da China. Não devia perder isso!" 

Fez-se então um silêncio na conversa. Deduzi que os campos floridos talvez não fizessem parte da hierarquia de prioridades de Mário Soares. Mas Cabrita Matias tinha um sentido social de anfitrião que não lhe permitia conviver com pausas. E, ainda antes que a viagem acabasse, lançou: "O senhor doutor Mário Soares permite que lhe dê um conselho?" Voltei a alarmar-me! Devo-me ter aconchegado ao banco, para o choque do que dali viria. Soares, com uma voz entre o tolerante e o exasperado, de quem já estava por tudo, respondeu: "Faça favor, senhor embaixador, faça favor!" E o embaixador avançou com o "conselho": "Se quer o meu conselho, não fale de política aos chineses. Refira outras coisas, use metáforas, mas não lhes coloque abertamente temas políticos. Aquilo é outra forma de estar no mundo, de olhar as coisas".

A resposta de Soares soou-me forte, na nuca: "Não lhes falo de política?! Ora essa! Não lhes vou falar eu de outra coisa. Ó senhor embaixador! Desculpe lá, mas deve guardar esses seus conselhos para outras pessoas, mas não mos dê a mim, por favor!" Não me recordo se Maria Barroso disse alguma coisa, para pôr alguma água na fervura. Só sei que estive calado. Neste entretanto, felizmente, o nosso motorista, o excelente Domingos, tinha parcado o carro em frente à porta do pequeno aeroporto de Oslo. Sair daquela conversa foi um bálsamo.

Soares regressou a Portugal. Nesse mesmo ano de 1980, meses depois, auto-suspender-se-ia conjunturalmente do cargo de secretário-geral do PS, protestando pelo apoio dado pelo partido à recandidatura de Ramalho Eanes, contra o candidato apoiado pela AD, Soares Carneiro. Em 4 de dezembro de 1980, Sá Carneiro morreu em Camarate. Eanes foi reeleito e a AD nunca mais seria a mesma. 

Muitos anos depois, algures no mundo, onde nos fomos encontrando por diversas vezes, com longas e agradáveis conversas, perguntei a Mário Soares se se lembrava daquela visita a Oslo. Soares tinha uma magnífica memória, mas apenas para o que era importante. E, manifestamente, aquelas cenas nórdicas não o tinham marcado muito. Disse-me que guardava apenas na ideia ter-se cruzado, na Noruega, com um embaixador "um pouco estranho", mas nada mais. De cujo nome não se recordava. Mas acrescentou: "Lembro-me apenas que era o meu amigo que estava por lá com ele", disse-me, generoso, sem que eu acreditasse.

Tenho muitas saudades de Mário Soares.

sexta-feira, dezembro 06, 2024

O que se passa na Síria?


Ver aqui.

Interessante

 


Dignidade ou a falta dela

O discurso do chefe do partido da extrema-direita, no dia em que a Assembleia da República assinala o centenário de Mário Soares, teve um nível de indignidade difícil de igualar. A democracia tem uma imensa generosidade perante quantos dela se aproveitam para a amesquinhar. 

Braço de ferro

Ursula von der Leyen vai assinar o Acordo UE-Mercosul sem o aval explícito dos Estados-membros, que desconhecem o texto final negociado pela Comissão. É uma usurpação de poderes, nos termos dos tratados, passando agora ao Conselho o ónus político de dizer não ao Mercosul. 

Com a devida vénia...


 ... peço emprestado a Al-Jazeera e ao Público este elucidativo mapa.

O verdadeiro artista

 


quinta-feira, dezembro 05, 2024

Na praça


Alguém terá já visto esta senhora pelas ruas de Tiblissi? 

Os dias de Macron


Se Macron nomeasse hoje um novo PM, o evento da reabertura da Notre-Dame seria passado para segundo plano e a alguma França passaria o fim-de-semana a falar do futuro governo. Tal como aconteceu nos Jogos Olímpicos, Macron ganha tempo. Afinal, tem de entreter o país até julho.

Turquia


Há algumas coisas discutíveis neste quadro, como é da natureza de todas as simplificações. Porém, no essencial, ele é muito interessante e útil para quem quer obter respostas informadas para certas situações. A Turquia é, de facto, um ator geopolítico a que importa estar atento.

A França do espetáculo


Há duas Franças paralelas. Uma é a do presidente que empurra as crises com a barriga, queimando primeiros-ministros. Outra é a de um Macron que chefia a sociedade do espetáculo: primeiro, os jogos olímpicos, agora a Notre-Dame recuperada. Paris é uma festa, lá dizia Hemingway.

quarta-feira, dezembro 04, 2024

A França


Aceitei um convite para ir hoje à noite ao Jornal da RTP 2 falar com Sandra Sousa sobre a crise política em França. 

Ver aqui entre os 5 e os 14 minutos.

terça-feira, dezembro 03, 2024

Macron tien bon?

Com a queda do governo Barnier, o cenário político francês ficará mais complexo. O parlamento está "balcanizado" e falta muito tempo para Macron poder convocar novas eleições. Uma coisa parece clara: ele não renuncia. Mélenchon e Le Pen vão ter de esperar por sapatos de defunto.

A saída de Biden

À simpatia de que Biden desfrutava em meios europeus, por contraste com Trump, não correspondeu nunca uma idêntica apreciação nos EUA. Biden foi um presidente muito impopular. O gesto de perdoar os crimes do filho fê-lo perder agora alguma autoridade moral. Sai da pior forma.

A política em calão

Ao ver alguns debates sobre a crise política em França, dei-me conta de que o pessoal político da extrema-direita francesa, comparado com aquela inenarrável bancada lusa da mesma área política, confirma bem o que o Eça dizia: "Portugal é um país traduzido do francês em calão".

segunda-feira, dezembro 02, 2024

Costa e a inveja

A mesquinhez invejosa é a marca distintiva de muito "tuga". O sucesso europeu de Costa já faz roer de despeito a alma de muita gente.

Os trabalhos de António Costa



Em 1 de dezembro de 2024, António Costa assumiu as funções de presidente do Conselho Europeu. 

A partir de agora, por dois anos e meio, com possível e provável recondução até 2029, irá coordenar o funcionamento de uma instituição que, ainda nos anos 70, havia sido criada como uma instância meramente política, não decisória e de discussão informal, por iniciativa de Valéry Giscard d'Estaing e de Helmut Schmidt, ao tempo que chefiavam os seus países. 

Os posteriores tratados, que densificaram politicamente o projeto, reconhecendo o mérito de fazer subir a decisão ao nível mais elevado dos governos, vieram a dar músculo político e institucional aos Conselhos Europeus. 

Note-se que, por muito tempo, desde o início das Comunidades Europeias, competiu aos ministros dos Negócios Estrangeiros a coordenação da ação do Conselho, coadjuvando nessa qualidade os chefes dos governos, durante os Conselhos Europeus. 

Embora curiosamente se fale pouco disto, vale a pena referir que o Tratado de Lisboa afastou discretamente os chefes da diplomacia dos Conselhos Europeus, onde os chefes do governo hoje tomam assento sozinhos. Não foi coisa que muitos ministros dos Negócios Estrangeiros tivessem achado muito simpático... 

O Tratado de Lisboa, em 2007, criou também a figura de um presidente permanente do Conselho Europeu, eleito pelos chefes de Estado e governo (e só por estes, não estando a sua escolha sujeita ao escrutínio do Parlamento Europeu), destinada a substituir as anteriores chefias semestrais, exercidas pelos líderes dos países que tinham a seu cargo as presidências rotativas. 

A ideia foi tentar garantir uma continuidade nessa liderança, criando uma espécie de entidade coordenadora da agenda do Conselho, com um poder de representação internacional dos seus pares, mas, igualmente, com uma alargada liberdade de iniciativa na propositura dessa mesma agenda. 

O presidente do Conselho Europeu, na atividade de representação externa, deve atuar em articulação com a chefia da Comissão Europeia e, também, com a figura do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança - uma entidade híbrida, que reporta ao Conselho mas está inserida na Comissão. 

O antigo primeiro-ministro português é a quarta personalidade a ocupar um cargo que vive associado à ideia de que há uma espécie de bicefalia no topo da União Europeia: o presidente do Conselho Europeu e o presidente da Comissão Europeia. Pode dizer-se que ainda há uma terceira figura nesse âmbito, o presidente do Parlamento Europeu, embora só formalmente ao nível das outras duas. 

Teoricamente, as duas funções de topo têm perfis próprios e distintos. Na realidade, embora institucionalmente não haja áreas cinzentas, a prática revelou algum potencial de conflito político entre ambas as entidades. Isso foi notório durante os últimos cinco anos, em que a chefia da Comissão Europeia foi exercida por Ursula von der Layen. 

Impulsionada pelo seu papel na crise da Covid, pelo lançamento dos programas financeiros de recuperação económica e pela criação de uma resposta à guerra na Ucrânia, von der Leyen terá ido bastante para além dos poderes que os tratados lhe atribuíam em termos políticos. Basta lembrar o seu criticado voluntarismo em face das ambições europeias da Ucrânia, antecipando abusivamente as decisões do Conselho, ou as inusitadas declarações que proferiu em Israel, sem a menor coordenação com o Conselho Europeu. 

Tendo, no outro lado da bicefalia de representação europeia, a figura pouco saliente de Charles Michel, como presidente agora cessante do Conselho Europeu, a comissária alemã como que levou a cabo uma espécie de “golpe de Estado” institucional, assumindo, aos olhos exteriores, a face decisória da União. Para isso também terá contribuído a fragilidade conjuntural do “eixo franco-alemão”, que se auto-excluiu do seu tradicional papel de motor europeu. Ou talvez a nacionalidade de von der Leyen não tenha sido alheia ao poder que conseguiu concentrar... 


E agora, António Costa? 

Estará o novo presidente do Conselho Europeu interessado em comprar uma guerra de chefias com von der Layen, para recuperar o estatuto perdido? Se acaso estivesse, será que encontraria apoio no Conselho para poder assumir tal atitude? As suas hipóteses de vencer essa disputa seriam superiores às vantagens que eventualmente retirará de fazer um discreto pacto de natureza funcional com a poderosa alemã, que agora dispõe de um colégio muito mais sob o seu controle e, a nível do Conselho, da grande simpatia de muitos países do Leste, graças às concessões feitas no desenho da Comissão? 

O novo presidente do Conselho tem uma sólida história europeia. Foi vice-presidente do Parlamento europeu, representou Portugal em conselhos de ministros em Bruxelas e, o que é mais relevante, teve uma muito longa e prestigiada presença em Conselhos Europeus. É, além disso, um europeísta convicto, com sobejas provas dadas. 

António Costa terá um tempo nada fácil à sua frente. Vai ser rigorosamente escrutinado no tocante à questão ucraniana. As suas pretéritas declarações de alguma prudência, no tocante às ambições europeias e euro-atlânticas da Ucrânia, já lhe tinham custado críticas, que chegaram a toldar o seu processo de escolha para o lugar. A ida a Kiev, horas depois da posse, mostra que Costa já percebeu que, mesmo que quisesse, não poderia rumar contra o vento dominante. 

E isso leva-me a uma ideia que me parece evidente: no futuro, não devemos confundir António Costa com António Costa. 

O primeiro foi um chefe de governo português que, com uma leitura sensata dos equilíbrios e objetivos da União, soube definir, em nome de Portugal, durante oito anos, uma certa perspetiva da evolução possível e desejável da Europa que aí está. O outro passa agora a ser o representante do “mainstream” prevalecente no seio do Conselho Europeu, que é feito de consensos acomodadores de agendas estratégicas de oportunidade, de interesses e de poder. Só por milagre o primeiro António Costa virá a coincidir, em absoluto com o segundo. 

Por isso, não é garantido que quem, por cá, apreciou o António Costa líder português venha, necessariamente, a sentir-se confortável com aquilo que o António Costa que agora representa o Conselho Europeu virá a titular no futuro. À bon entendeur...

(Artigo hoje publicado no site da CNN Portugal)

Nuclear

Recomendo a leitura deste curto artigo sobre os riscos do nuclear civil. https://www.spectator.co.uk/article/tony-blair-is-wrong-to-love-nuclear-energy/

Crime e falta de castigo

Um europeu nunca perceberá a lógica democrática de certas práticas americanas. Há dias, foi a decisão de Trump de nomear o sogro da filha, um delinquente já antes perdoado por crimes, para embaixador (!) em Paris. Agora, Biden, antes de sair da Casa Branca, decide absolver as patifarias do filho.

domingo, dezembro 01, 2024

Falsos


Por mais de uma vez, em redes sociais, surgiram perfis falsos com o meu nome. Há dias, foi este, no Instagram. E como nada disto é inocente, o vigarista surgiu logo a sugerir "negócios" aos meus contactos. Sabem quando é que isto terminará? Quando os autores destas trafulhices perceberem que o risco de serem apanhados é superior à possibilidade de saírem impunes. E como é que isto podia ser evitado? Com total transparência e verificação de identificação de quem usa as redes sociais, acabando-se, por exemplo, com a cobardia dos pseudónimos. Mas já percebi que isto é tabu para o mundo que por aí anda.

Multinacionais


Algumas siglas obrigam a ir ao Google, mas aprende-se muito com este quadro.

Isto não está fácil...

 


Israel e Ucrânia


Ver aqui.

A Europa que aí vem


Ver aqui.

sábado, novembro 30, 2024

António Costa


A União Europeia vive um dos momentos mais exigentes da sua história. O facto dos seus líderes terem escolhido um português para o cargo de presidente do Conselho Europeu é um grande prestígio para Portugal. Um abraço amigo, caro António, com votos das maiores felicidades.

Elisa Ferreira


Um forte abraço, cara Elisa! E muitos parabéns pelo teu excelente trabalho como comissária europeia.

Comentários


Têm-me chegado algumas notas de desagrado pelo facto de, desde há uns dias, eu ter suspendido a publicação de comentários aos posts que escrevo neste blogue.

Em termos de comentários, o proprietário de um blogue pode assumir vários tipos de atitude: ou publica tudo aquilo que os comentadores lhe enviam, ou exige uma espécie de certificação de identidade de quem pretende publicar algo, ou faz uma seleção - isso mesmo, uma censura prévia - daquilo que é publicado ou, finalmente, não admite nenhuns comentários. Na sua existência diária, desde 2 de fevereiro de 2009, este blogue já passou pelas quatro fases, estando agora na última. Porquê? 

Quem por aqui vem, nos muitos anos da existência deste espaço, sabe que convivo muito bem com o contraditório, às vezes com o quase insulto, frequentemente com expressões limite de radicalismos. Lembro-me bem de interrogações deixadas por leitores, surpreendidos com a minha permissividade. 

O que é que se passou agora? Cansei-me do tom insistentemente confrontacional de alguns comentadores. Mas não podia, pura e simplesmente, optar por eliminar esses comentários? Claro que sim. Mas achei melhor pôr todos os comentários "em pousio", até para perceber como é que o blogue "sobrevive", em termos de leitores, sem admitir quaisquer comentários.

Quem tiver curiosidade pelo tema dos comentários nos blogues, que é muito antigo na blogosfera, pode ler aqui.

E sobre o assunto, voltaremos a falar em janeiro.

sexta-feira, novembro 29, 2024

As contas da União


Quem paga mais do que recebe está a azulado, quem recebe mais do que paga a avermelhado. Mas não se enganem: quem paga mais têm um retorno no mercado interno que compensa aquilo que "dá". A UE é uma união de interesses: ninguém faz favores a ninguém e nem deve nada a ninguém.

No NYT hoje


Já chega!

A utilização pelo Chega do edifício da AR para ações de chicana política levanta uma séria questão sobre a compatibilidade desse partido com a ordem democrática. Os partidos fazem parte do sistema constitucional. Quando se colocam à margem deste, há que tirar consequências.

Eh toiro!

A cavernícola decisão de reduzir o IVA das touradas é uma triste revelação do recuo civilizacional a que esta conjuntural maioria, acolitada por alguns peões de brega de outras áreas políticas, condena o nosso país, perante o olhar apiedado do mundo.

A União Europeia e os seus imigrantes

 


Médio Oriente



A convite do Observatório do Mundo Islâmico, fiz ontem a palestra de encerramento do seminário "O Grande Médio Oriente e a nova configuração geopolítica regional e global", que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Concentrei o que disse no conflito entre Israel e a Palestina, tentando identificar as mais importantes atitudes da comunidade internacional face ao mesmo. 

Observei a evolução das posições de Israel, dos EUA, das lideranças palestinas e dos Estados árabes. Mas, como há mais Médio Oriente para além da Palestina e de Israel, alarguei a análise à posição regional do Irão, da Arábia Saudita, dando uma particular atenção ao Egito, ao Iraque, à Turquia, à Síria e ao Qatar. Destaquei ainda a secundarização da Europa deliberadamente promovida pelos Estados Unidos, bem como as divergências prevalecentes no seio da União Europeia na abordagem do tema palestino. E, claro, falei do papel da Rússia e do modo como a China olha a região. Naturalmente, a dificuldade do papel da ONU na área foi também referida, bem como o tema do Tribunal Penal Internacional. 

Terras raras


Tive algumas surpresas. 

quinta-feira, novembro 28, 2024

Para ajudar a ler o mundo

 


Um voto a mais

Nas eleições, por um voto se ganha, por um voto se perde. Na Moldova, os pró-europeus ganharam e o país irá agora nesse caminho. Na Geórgia, os pró-europeus perderam e essa vontade deve ser respeitada. Um resultado não deixa de ser válido só porque não é aquele de que gostamos. 

"Há lobo!..."

O Dr. Luís Montenegro tem suficiente experiência política para saber que convocar o país para ouvir uma comunicação, a uma hora nobre, teria um custo de credibilidade, se acaso isso fosse visto como uma operação de mera propaganda politiqueira. Foi o caso.

"Antes que me esqueça"


Faz hoje um ano. Com um prefácio de Jaime Gama, apresentado por Jaime Nogueira Pinto e José Ferreira Fernandes, lancei, numa Fundação Calouste Gulbenkian cheia de amigos, o livro "Antes que me esqueça - a diplomacia e a vida". Em poucos dias, a edição esgotou. Uma segunda edição só surgiu bem dentro de janeiro de 2024. Depois, ainda houve um terceira edição. E o livro continua a vender-se, ao que sei.

quarta-feira, novembro 27, 2024

Fumo


Coloquei por aqui, há dois dias, esta fotografia de Melo Antunes. Recebi vários protestos. Porquê? Porque Melo Antunes, na imagem, está a fumar. Está tudo doido?

Braga


Custou-me perder por 5-1 com o Braga, ou como eles se chamavam ontem à noite.

terça-feira, novembro 26, 2024

Os amigos maluquinhos da Ucrânia

Chegou-me há dias um documento, assinado por algumas personagens de países do Leste da Europa em que, entre outras coisas, se defende isto: 

"Extend Air Defence over Western Ukraine and Use It to Cover Coalition Troops on the Ground: Air defence assets based in coalition countries or sent to states bordering. Ukraine can provide a shield over Western Ukraine and take some of the pressure off. Ukrainian air defence assets. Russian missiles and drones are flying toward our borders and we can’t take chances. Coalition states could then use this shield to put their own troops on the ground, as proposed by French President Emmanuel Macron, to help train Ukrainian forces, provide logistical and de-mining support and conduct other tasks that would demonstrate our commitment to Ukraine’s victory and security".

Esta gente ensandeceu?

Antes


Era assim o ambiente, no topo do Campo Grande, uma hora antes do jogo do Sporting com o Arsenal. Depois, foi o que se viu: lavámos uma cabazada. E saímos de Alvalade de orelha murcha, mas mais sportinguistas do que nunca. É a vida de quem é adepto de um clube essencialmente católico: porque só ganha quando deus quiser. E a deus deu-lhe para apostar nuns tipos vestidos à Sporting de Braga. Ele lá sabe porquê! 

Seriedade

Há uns anos, a Guiné Equatorial, antes de introduzir uma moratória sobre a pena de morte, terá "despachado" uns casos que tinha pendentes. Agora, Israel, antes de implementar um cessar-fogo no Líbano, faz um forte bombardeamento sobre Beirute. Estados sérios são "priceless"!

Seminário

 


A moca de Rio Maior

 


segunda-feira, novembro 25, 2024

Outros blogues

Imagino que deva haver por aí blogues onde a data de hoje esteja a ser celebrada. Eles são o lugar adequado para os adoradores da data inserirem os seus comentários. Não aqui.

Viva o 25 de Abril!


Por esta hora, e nesta precisa data, um grupo de quase duas dezenas de "implicados" no 25 de Abril reune-se numa almoçarada que tem como único objetivo saudar esse mesmo 25 de Abril. Só isso.

Viva o 25 de Abril!

25 de novembro

 


domingo, novembro 24, 2024

Os ácidos


Nos anos 60, a expressão que vai em título tinha outro significado. Nos tempos que correm, pode aplicar-se a quem se dedica, por vício ou embirração, a contrariar tudo o que por aqui se escreve. Será da idade dos comentadores? Os ácidos, sofredores de vesícula mental e chatos por natureza, à falta de palco próprio, penduram o seu mau feitio em quem possa ser lido. Se os deixarem, claro. Que tenham muito boas festas, porque desejar-lhes alguma coisa de bom deve irritá-los supinamente.

Romário


Daqui a poucas semanas, fará 20 anos que cheguei ao Brasil, para ali ser embaixador. Nessa noite, ao abrir do portão da residência, eles lá estavam, à nossa espera: o Zé e o Romário. 

O Zé era pequeno, nascido no Piauí, muito negro, um sorriso franco, grande conversador. O Romário era alto, mais claro de pele, saído de Pedra Azul, onda a Bahia se aproxima de Minas. Tinha uma expressão mais grave, um discurso mais rural, era mais contido e parcimonioso nas palavras, mas tinha um humor subtil, às vezes só percetível com mais atenção ao que dizia. Com a Helena, irmã do Zé, e a moçambicana Delfina, esse quarteto maravilha de empregados da nossa residência constituiu o "dream team" que, durante quatro anos, tornaram a nossa vida extraordinariamente agradável. Ficámos amigos para sempre. De todos. Há poucos anos, tomámos a decisão de voltar a Brasília, quase só para os rever.

Acabo de saber, através do meu colega que hoje é o nosso embaixador no Brasil, que o Romário morreu. E chegou-me agora esta fotografia dele, junto a um arranjo de flores, muito adequada para homenagear quem nisso era um mestre. Nela noto que o Romário tinha já os cabelos mais grisalhos do que no meu tempo, mas a verdade é que os anos passam por todos.

Com o andar dos dias, fui levado a apreciar cada vez mais o estilo sóbrio do Romário, a sua eficácia sem falhas, o seu cuidado com o pormenor. Aprendi com ele, e tenho-me esforçado para exercitar, essa coisa simples de que quando há algo de prático que temos que executar, devemos fazer isso de imediato, para nos libertarmos do encargo e da preocupação que a procrastinação provoca.

Nunca esquecemos as lágrimas que detetámos na cara do Romário, naquela tarde em que saímos definitivamente de Brasília.

Termino com uma historieta minha com o Romário, para atenuar esta evocação muito triste. 

O Romário tinha a seu cargo a adega climatizada onde eu guardava os meus vinhos. (As embaixadas nunca têm vinhos. Os vinhos e a comida que nelas são servidos são do embaixador e saem daquilo que mensalmente lhe é pago - isto para quem não saiba). Eu conhecia o que por ali tinha. Ele ia-me avisando das eventuais falhas de abastecimento, que dependiam do ritmo dos almoços e jantares oferecidos. Numa certa zona dessa adega, existiam algumas garrafas individuais, que não tinham par, ideais para uma refeição a sós ou de duas pessoas. Ora, por esse tempo, acontecia que eu estava sozinho em casa. Ao pequeno almoço, disse ao Romário: "Para o almoço, abra cedo e "deixe respirar" a garrafa que está no alto, do lado direito dos tintos". Era um vinho português, que eu sabia razoável. Quando ia a entrar no carro, a caminho da chancelaria, estranhei a pergunta do Romário: "Quer mesmo a garrafa que está no alto, à direita?" Embrulhado nos jornais, conhecedor confiante da geografia dos meus álcoóis, confirmei e passei adiante.

Em Brasília, eu tinha o privilégio de poder almoçar ao ar livre, na esmagadora maioria dos dias do ano. Fi-lo também nesse dia, sozinho, junto à piscina. Notei que o Romário, que me servia, tinha decantado o vinho para uma garrafa de cristal. Iniciei o meu almoço, continuando entretido com uma pilha de imprensa, nesse tempo em que ainda não havia iPads. A certo passo, quase distraidamente, provei o vinho. Uáu! Era excelente! Melhor do que eu esperava. Quando o Romário se aproximou de novo, pedi-lhe para me trazer a garrafa original. Notei-lhe um leve esgar, quando me mostrou o rótulo de um "Barca Velha" de 1983... Caí das nuvens! "Eu estranhei que o senhor embaixador insistisse em mandar abrir esta garrafa, mas achei que talvez quisesse comemorar alguma coisa". E fez um largo sorriso. Graças ao Romário, eu ia ter o inédito e irrepetível prazer de gastar um "Barca Velha" comigo mesmo!

Grande Romário! Gostaria muito de poder agora brindar com ele, com esse amigo que várias décadas de excelente serviço prestou ao Estado português e a quantos o representaram em Brasília. Os nossos sinceros sentimentos a toda a família do Romário.

"Solar dos Pintor" (Santo Antão do Tojal)


Não, não é "dos Pintores": é do Pintor. Onde fica? Fica em Santo Antão do Tojal. Não sabe onde é? Ó diabo! Conhece A-das-Lebres? Também não? Bom, Loures já conhece, não é? Sai da autoestrada para lá e, depois, ponha o Wase ou o Google Maps. É mais fácil assim. De Lisboa (depende de onde estiver em Lisboa, claro) leva uns 20 minutos. A certa altura, dado o tipo de estrada, vai achar que se perdeu. Nessa altura, pode ter a certeza: é mesmo por aí.

Fui lá uma primeira vez há uns bons anos, com um amigo que sabe muito desta poda. Regressei tempos depois. Comi sempre bem e invejei a fantástica garrafeira. Ontem, perante uma Lisboa onde tudo quanto era restaurante estava apinhado, lembrei-me do Solar dos Pintor. Consegui arranjar mesa para o jantar. E arrastei comigo meia dúzia de pessoas. 

O que comemos? A lista é magnífica, nada convencional, com duas especialidades só por encomenda. Optámos por um arroz de cabidela, para todos. Demorou? Demorou, porque foi feito na hora. Entretanto, fomos a uns bolos de bacalhau, fritos também no momento, de textura certa, sorvidos no meio da boa conversa de amigos, numa sala cheia e bem disposta, de gente que sabia bem ao que ali ia. 

O arroz, no tacho, valeu bem o tempo de espera. Estava excelente! Seguiram-se as sobremesas. Belíssimas, também. Como vinho proposto pela casa, fomos por um Grão Vasco, a clássica marca do Dão, agora com rótulo novo na garrafa bojuda tradicional. Na garrafa não, nas garrafas, porque tiveram de vir duas para sustentar a sede da mesa. E que bem simpático que estava o vinho, de 2022. Ah! O serviço é de primeira! Simples, amável e atencioso, fazendo-nos sentir em casa. 

Com os cafés, veio a conta. Se acaso souberem onde se pode comer tão bem por menos de 25 euros por pessoa, digam!

sábado, novembro 23, 2024

Liberdade

Já faltou menos para surgir por aí alguém a propor a Ordem da Liberdade para os fundadores do ELP e do MDLP. E também já faltou menos para lha darem.

Senado

Dois terços dos senadores do Partido Republicano americano não foram eleitos no dia 5 de fevereiro, isto é, na onda política Trump II. É de entre estes senadores, alguns dos quais são figuras referenciais dos seus Estados, que podem vir a surgir algumas surpresas.

João Miguel Tavares no "Público"


 

Convite da SIC Notícias


Foi uma bela conversa com Paulo Garcia, ontem, na SIC Notícias, sobre as tensões mundiais, a Ucrânia, os Estados Unidos, a Rússia e o mandado de captura contra Netanyahu. Foi na Edição da Noite, entre as 22.40 e as 22.55.

Vai haver uma guerra nuclear?

 


Ver aqui.

G20

 


O G20 no Rio. Ver aqui.

Israel


Há muito que Portugal, no plano internacional, não assume nenhuma atitude que presuma possa beliscar um qualquer interesse essencial dos Estados Unidos. É lamentável, mas é assim. Foi agora o caso de uma votação sobre Israel. Falo disso aqui.

"Visão"


Com muita pena, constato a crise financeira que ameaça a "Visão", uma excelente revista de que hoje sou assinante e que leio desde o seu nº 1, hoje dirigida por um qualificado profissional do jornalismo, Rui Tavares Guedes, tendo na redação alguns jornalistas de grande mérito.

RTP

A Assembleia da República derrotou a manobra do governo de fazer desaparecer a publicidade da RTP, sem a menor compensação no aumento da contribuição audiovisual. 

Foi assim anulada a escandalosa golpada de tentar comprar a boa vontade dos privados à custa do enfraquecimento do serviço público de rádio e televisão. 

Sem publicidade e sem a garantia de contribuição pública à altura de uma empresa que mantém hoje 19 canais de rádio e TV, a RTP passaria a depender de injeções financeiras do Estado, ficando dessa forma dependente do governo, uma operação com objetivos muito óbvios. 

No atual modelo, a RTP não recebe nem ordens nem pressões do executivo, sendo a sua tutela o Conselho Geral Independente. E assim deve continuar.

sexta-feira, novembro 22, 2024

Lembrar

Todos quantos acham que Mário Soares, se fosse vivo, se associaria a uma celebração do 25 de novembro fingem esquecer que o próprio Mário Soares, como primeiro-ministro ou presidente da República, nunca demonstrou o menor interesse em organizar ou participar numa evocação da data.

Parabéns, CNN Portugal


Parabéns à CNN Portugal no dia em que comemora três anos de emissões. 

Tive o privilégio de fazer parte dessa magnífica equipa, chefiada por Nuno Santos, em grande parte desse percurso. 

É uma bela história de profissionalismo e de liberdade opinativa.

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António Freitas de Sousa, estranhei o facto do TPI ainda não ter indiciado Netanyahu. Horas depois, o procurador deduziu a acusação. Poder é isto, aprendam... 

Livro

 


Ai Europa!


E se a Europa conseguisse deixar de ser um anão político e desse asas ao gigante económico que é? 

Ucrânia

A utilização pela Rússia de um novo míssil hipersónico só foi uma surpresa porque tinha sido criada a ideia de que o passo seguinte, depois dos meios convencionais usados, seria o nuclear tático. Ora era muito duvidoso que Moscovo se arriscasse a ir por aí, antes de testar Trump.

Brasil

A indiciação de Bolsonaro e de um grupo de militares por uma suposta tentativa de golpe de Estado no Brasil tem uma elevadíssima delicadeza política. Resta esperar que tudo esteja a ser feito pela justiça brasileira com grande rigor, sem a menor margem para contestação dos factos alegados.

Segunda feira

Em face da instrumentalização que a direita e a extrema-direita pretendem fazer na próxima segunda-feira na Assembleia da República, que distorce o significado histórico da data, o Partido Socialista há muito que deveria ter informado o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República de que iria manter apenas uma representação simbólica no plenário.

A lei da bomba

Acho de uma naïveté simplória os raciocínios que levam a sério a letra da doutrina nuclear russa. Como se a Rússia, no dia em que lhe der na gana bombardear alguém, vá consultar a "doutrina": "Ora deixa-me lá ver se, ao carregar no botão, não estou a infringir alguma alínea"...

Netanyahu

Tal como vários dos seus contrapartes já fizeram, seria interessante que Luís Montenegro anunciasse que, se Benjamin Netanyahu puser um pé em Portugal, será imediatamente detido. E pode também pôr Putin no "pacote", para se sentir mais à vontade.

TPI

Quem por aqui tanto se tem congratulado com o cerco feito a Putin pelo Tribunal Penal Internacional estará, com certeza, ao lado desse mesmo tribunal na luta pelo cumprimento do mandado idêntico agora emitido para a detenção de Netanyahu. Ou não?

quinta-feira, novembro 21, 2024

Seguro

António José Seguro anuncia-se para Belém. Fá-lo no tempo certo, oferecendo ao espaço socialista um nome com uma seriedade indisputável, alguém que, depois da sua saída de cena da política partidária, soube usar a palavra com uma inteligente parcimónia.

Sócrates

Por que será que, neste dia que assinalam os dez anos sobre a noite em que José Sócrates foi preso à chegada ao aeroporto de Lisboa, hesitei em escrever sobre o assunto? Por que motivo, ao ensaiar o início de um simples post, dou por mim a escolher cuidadosamente as palavras, como se estivesse a pisar um terreno imensamente delicado?

Naquela noite de 2014, ao saber da prisão de José Sócrates, isso perturbou-me. E, no entanto, a minha relação com ele nunca havia sido íntima. 

Tínhamos estado juntos nos dois governos de António Guterres. Partilhámos muitas reuniões de secretários de Estado, vi com naturalidade a sua chegada a ministro. Era uma estrela ascendente dentro do executivo, tinha claramente a confiança de Guterres, assisti a excelentes prestações suas em conselhos de ministros. Aqui entre nós, tinha um estilo de expressão às vezes um tanto irritante, algo auto-convencido, mas a qualidade da sua ação como que absolvia esses vícios de forma. Em todas as poucas interações diretas que, nesse tempo de governo, tive com ele, foi sempre de uma extrema gentileza e atenção. Éramos amigos? Tínhamos uma relação super-cordial, o que, nesses meios políticos, se pode identificar à amizade.

Quando saí do governo e regressei à minha carreira profissional, deixámos de nos ver. Só nos reencontrámos no Brasil, em 2005, já ele era primeiro-ministro. Nesse intervalo de cinco anos, Sócrates tinha feito o percurso que o levou a S. Bento. Constatei que era muito eficaz na defesa dos dossiês de Estado, senti-o atento àquilo que o embaixador de Portugal, que eu então era por ali, lhe assinalava como prioritário. Estabeleceu uma relação pessoal imediata com Lula, de que a ação da embaixada bastante beneficiou. Lembro-me da sua obstinação em trazer a Embraer para Portugal e o empenho que colocou na concretização desse objetivo.

Um dia, sem que alguma vez entre nós disso tivéssemos falado, fui transferido de Brasília para Paris, o meu último posto diplomático. Notei, desde a minha chegada. a forte simpatia que Sarkozy dedicava a Sócrates. Passava, entre os dois, uma corrente de energia, como pude constatar em reuniões em "petit comité", durante as suas visitas de trabalho a Paris. 

Por esses tempos, em 2009 e 2010, José Sócrates fez-me vários e honrosos convites, que consegui recusar. Já no Brasil, no início do seu primeiro governo, me transmitira um desafio. Persisti sempre na minha carreira e não estou arrependido.

Depois, veio a crise. Sócrates caiu, em eleições. Alguém me preveniu que ele tencionava ir viver para Paris, pelo que não fiquei surpreendido quando um dia me telefonou. Embora o seu afirmado objetivo fosse proporcionar um melhor tempo académico a um filho, disse-me que tinha intenção de aproveitar o tempo em Paris para estudar "filosofia política". Perguntou-me se eu sabia de algum curso que ele pudesse seguir. Disse-lhe: "Só se eu procurar no Google!". E, brincando: "O teu governo tirou-me a conselheira cultural, que era a única pessoa na embaixada que sabia dessas coisas..." Apresentei-lhe um amigo pessoal, o professor luso-francês Pierre Léglise-Costa, pensando que talvez ele o pudesse informar. No dia seguinte a esse encontro, parti para Portugal, para um mês de férias. Dias depois do meu regresso, Sócrates telefonou-me: "Entrei em Sciences-Po". Felicitei-o e senti-o feliz. 

No ano e meio que se seguiu, encontrámo-nos, por Paris, uma meia dúzia de vezes, duas delas com um Mário Soares de passagem e que por ele manifestava um grande apreço. José Sócrates, por qualquer razão, nunca aceitou os vários convites que lhe formulei para ir a eventos na embaixada, onde eu teria tido muito gosto em acolhê-lo. Nem pôde ir à minha festa de despedida, mas telefonou depois a dar-me um abraço. 

Depois do meu regresso a Portugal, em 2013, estivemos juntos no lançamento de um seu livro, em Vila Real. Creio que foi a última vez que nos cruzámos. Mas, claro, tenho sabido de José Sócrates e acompanhado as suas atribulações, tal como acontece com os leitores deste texto, o qual, afinal, não foi assim tão dificil de escrever.

Já chegámos à Madeira?

Alguém cria no Twitter uma conta com a fotografia, nome e designação do partido de Nuno Melo e coloca-o a dizer inanidades. Ninguém imagina que é uma conta de paródia e muita gente passa a ter esses posts como sendo da autoria do ministro. Não há responsabilidade criminal?

Primeiro revés

O afastamento de um dos nomes indicados por Trump para o seu governo é um revés importante, para a imagem de alguém que se pré-anunciava como um hiper-presidente, com as mãos completamente livres. A ver vamos se Trump não se "vinga", nomeando um "hardliner" ainda mais radical.

Um texto sobre a Rússia, já com 20 anos


Publiquei este texto, em agosto de 2004, há mais de 20 anos, em "O Mundo em Português", uma publicação do saudoso IEEI (Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais), dirigido por Álvaro Vasconcelos, com quem continuo nos dias de hoje a cooperar no Forum Demos. Não retiro uma linha ao que escrevi, tendo muitas a acrescentar, em especial sobre a Ucrânia, que não estava ainda no radar de prioridades. É um texto relativamente longo. Se não tiverem paciência, passem à frente. Não levarei a mal...


AS NOVAS FRONTEIRAS DA RÚSSIA


As mudanças políticas que ocorreram na Geórgia no final de 2003 vieram chamar, uma vez mais, a atenção para um mundo muito vasto, constituído pelos Estados que resultaram do desmantelamento da União Soviética. Dos países bálticos à Ásia Central, da Bielorússia ao Cáucaso, os últimos anos converteram a periferia da Rússia numa área política algo heterogénea, onde se cruzam interesses económicos e estratégicos, cuja evolução dá sinais de perturbar frequentemente o poder político em Moscovo.

Terá a Rússia razões fundamentadas para temer um surto induzido de instabilidade nas suas cercanias, com implicações efectivas na sua segurança futura? Ou estará Moscovo a reagir de forma desproporcionada à constatação da dificuldade de controlar os processos políticos gerados à sua volta? E que condições terá para promover uma reacção eficaz, em moldes que preservem a sua imagem e credenciais internacionais como poder democrático? 


A vizinhança imediata

O processo que levou Moscovo, no auge da implosão da URSS, a ter de conceder plena soberania a vários dos seus Estados integrantes, pondo fim a uma União que havia sido preservada em torno de um modelo político em colapso, acabou por dar origem a realidades nacionais diversas, mas, em grande parte, assentes em regimes de matriz algo autoritária, embora com fórmulas constitucionais teoricamente democráticas. Com excepção dos Estados bálticos, na maioria desses países sobreviveu uma cultura política que, curiosamente, passou a ter mais a ver com a herança dos tempos soviéticos do que com a situação entretanto instalada na própria Rússia contemporânea.

Aos primeiros tempos dessa fragmentação sucederam-se tentativas de retomada centrípeta de alguma coordenação de políticas, de que a CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi o exemplo mais patente. Mas a desconfiança histórica e os ciclos de instabilidade nos diversos Estados afectaram sempre os fundamentos de tais estruturas de cooperação intergovernamental, a que a crise económica quase generalizada afectou a eficácia funcional. Além disso, alguma flutuação na afirmação externa das novas lideranças russas, fruto de razões internas e da evolução da conjuntura internacional, deu origem a etapas também diversas no seu relacionamento com o near abroad, não obstante a permanência de algumas constantes.

Esta nova realidade circundante trouxe a Moscovo, talvez mais do que a nostalgia de um poder perdido, a necessidade de convivência com a proliferação de entidades políticas autónomas, com dinâmicas próprias, quase sempre marcadas pelo sinal de uma potencial instabilidade política, fruto das suas crises de legitimidade. Aquela que sempre foi a matriz da preocupação histórica de Moscovo – a segurança no seu cenário estratégico de proximidade – converteu-se numa crescente obsessão, em particular para um poder militar que cedo entendeu que tinha de se contentar com um futuro sofrível de afirmação tecnológica, com tudo o que isso implica em termos operacionais, além do mais num quadro constrangente de colocação de forças convencionais. A falta de meios económicos para apoiar qualquer actividade significativa sustentada fora da sua área geográfica continua hoje a limitar a possibilidade da Rússia servir como polo de atracção para os seus vizinhos, com excepção dos casos em que algum recurso a Moscovo se mostra como escapatória para afrontar crises internas ou a proteger tais regimes no quadro de pressões internacionais. Em qualquer dos casos, as limitações com que a Rússia se defronta são óbvias: a sua credibilidade internacional não lhe permite arriscar ultrapassar, sem custos sérios, a red line da ingerência interna e, por outro lado, algum nacionalismo estruturante da identidade dos Estados que se destacaram da URSS constitui-se quase sempre como uma limitação a uma excessiva promiscuidade política com Moscovo. Se a nostalgia da “doutrina Brejnev” subsiste ainda na mentalidade de alguns, o realismo político deve já ter interiorizado a noção de que as aventuras têm um preço internacional muito elevado.

Um caso interessante continua a ser a relação de Moscovo com os países da Ásia Central, onde o padrão autocrático assume modelos diversos, que nalguns casos reproduzem mimeticamente a liturgia soviética. Face às singularidades destes regimes, a Rússia assume uma atitude de compreensão, alegando o respectivo estádio de transição e procurando demonstrar, contra o seu próprio exemplo, que não é prudente queimar etapas, apenas para impor um modelo democrático. Tem vindo a ser interessante observar o modo como a Rússia procura explorar alguma “solidão” internacional de alguns desses Estados, estendendo-lhes sempre a mão política, num esforço que deve ser também lido como de recuperação de alguma influência. Uma influência que tem como limite as próprias condições económicas da Rússia, que lhe não permitem assumir-se como sólida alternativa no plano da ajuda internacional.


O fim da buffer zone

O precipitar dos antigos países socialistas do Centro e Leste do continente para os braços da União Europeia não foi uma surpresa para a Rússia. A Europa comunitária garantia um modelo de estabilização democrática e uma promessa de ajuda ao desenvolvimento económico-social que ia na linha óbvia do projecto das classes políticas emergentes naqueles Estados, quase sempre tributária de uma cultura marcada por forte desconfiança face a Moscovo. A adesão representava, além disso, uma rede subliminar de segurança. Com efeito, esses países entenderam que a simples entrada no clube dos potenciais candidatos à adesão os punha praticamente ao abrigo de uma qualquer, embora improvável, atitude adversa por parte da Rússia, situação bem patente no caso dos três Estados bálticos. Moscovo cedo entendeu que tal movimento era inevitável, tendo talvez contado, erradamente, com a ausência de vontade e de capacidade da União Europeia em avançar com determinação para um processo de tal amplitude. 

Com reticências iniciais, em especial ligadas à crescente vocação para uma política de segurança colectiva da União Europeia e à sensível questão báltica, Moscovo conformou-se assim com o alargamento, embora preserve ainda claras reservas à sua extensão sem limites, como haverá oportunidades para confirmar no futuro. Além disso, não deixa de recear, não sem alguma razão, que a estabilidade da relação criada com Bruxelas venha ser posta em causa por eventuais tensões induzidas na PESC pelos novos aderentes, muitas vezes com evidente apetência para explorarem traumas ou contenciosos históricos, ou ainda pendentes, com Moscovo – dado que a nova Rússia continua a ser vista por muitos como um mero sucedâneo da URSS. Neste caso, apenas pode confiar em que a densidade dos interesses da União Europeia sobre si projectados, económicos e de outra natureza, venham a ser um factor de peso para limitar tal deriva.

Mas as objecções essenciais da Rússia quanto ao posicionamento internacional desses países situavam-se noutra dimensão: o alargamento da NATO. Não obstante a Aliança Atlântica ter entretanto elaborado um apreciável quadro formal de cooperação com a Rússia, tendente a gerar confiança e a atenuar tensões, a entrada na NATO de um número significativo de países da Europa Central e Oriental é vista como uma dulcificada “provocação”, que coloca as fronteiras da organização a escassas centenas de quilómetros de Moscovo. A alegada mudança de natureza da organização é um argumento interessante mas demasiado sofisticado para uma cultura político-militar pouco dada a nuances de conjuntura. A circunstância do Ocidente continuar a ligar a ratificação do Tratado CFE Adaptado (que regula a dimensão e colocação das forças convencionais na Europa), bem como a adesão a este Tratado dos países bálticos, à observância pela Rússia dos “Compromissos” firmados em 1999, na cimeira da OSCE em Istambul (retirada de forças e material da Moldova e Geórgia), contribui para potenciar os receios de Moscovo. As fundadas esperanças colocadas pelos EUA no papel da “nova Europa” são um factor acrescido nesta perturbação instalada.


Um alibi de oportunidade

As ondas de choque do 11 de Setembro transportaram a Rússia para uma nova realidade, feita de oportunidades acompanhadas de receios. Por um lado, o seu alinhamento na luta anti-terrorista lançada pelos EUA, com o consequente fechar de olhos circunstancial às suas práticas de imposição político-militar na Chechénia, deram a Moscovo um ensejo para fazer, sem grandes sobressaltos internacionais, aquilo que em circunstâncias normais teria gerado, no mínimo, clamores de condenação. Se a movimentação do nacionalismo checheno não tivesse enveredado pelo desespero como arma política, talvez Moscovo tivesse mesmo conseguido uma solução, neste tempo que lhe foi concedido pela realpolitik

Mas a queda das Twin Towers trouxe também uma nova – e, aos olhos russos, preocupante – situação na sua fronteira sul. Com a bênção internacional e com um alibi irrecusável, os EUA avançaram pelas Ásias Meridional e Central com uma displicência que a Rússia não pôde disputar, por se tratar do combate a um inimigo que Moscovo definira como comum. Mas entre o Afeganistão e o Iraque alguma água passou sob a ponte. Embora os EUA mantenham a Rússia como parceiro formal de um diálogo ao mais alto nível, vão apresentando como factos consumados aquilo que Moscovo apreciaria fosse produto de uma regulação negociada. 

A actividade dos EUA no Cáucaso era, de há muito, um dado adquirido nos equilíbrios da região. Com um pouco discreto apoio à liderança familiar do Azerbaijão e um compromisso com a política de equilíbrio de sobrevivência de Chevardnadze, Washington tinha já conseguido assegurar, sem preocupações de maior, a sustentação do seu projecto petro-político na região. O pouco discreto apoio de Washington à eclosão vitoriosa da nova liderança geórgia obrigou Moscovo a mostrar as últimas cartas de desagrado: reforço da determinação secessionista da Abcásia e da Ossétia do Sul, com a Ajária como jogada intermédia, e uma inesperada recusa, na reunião ministerial da OSCE, em Dezembro de 2003, em Maastricht, de renovar, embora em moldes que o Ocidente queria novos, os “Compromissos” que havia feito em Istanbul. Recorde-se que parte desses mesmos compromissos se prendem precisamente com a manutenção de três bases russas na Geórgia, contra vontade do governo local.

Mas os restantes compromissos, desta vez relativos à Moldova, originaram também uma outra crise. Quase em simultâneo com o eclodir da revolta geórgia, a Rússia apresenta um hábil plano federal para a Moldova, assente no reconhecimento explícito da autonomia da Transnístria, a região secessionista em que Moscovo mantém tropas e material, que se comprometeu, em 1999, respectivamente a retirar e a destruir. A principal “habilidade” deste plano, rejeitado pelo governo moldavo sob o que a Rússia considera ter sido uma pressão ocidental, previa a continuação por um longo tempo das tropas russas, que mudariam o seu estatuto para “forças de manutenção de paz”, desta vez legitimadas pela comunidade internacional. O fracasso desta iniciativa constituiu um golpe humilhante para Vladimir Putin.

Os próximos anos dar-nos-ão resposta a questões que só agora têm condições para ser postas, até porque os respectivos termos de referência estão em constante mudança. Os EUA começam a dar mostras de não ter pejo em forçar alguma tensão com Moscovo, sempre que tal seja compatível com um universo de cumplicidade objectiva de onde continuam a retirar evidentes vantagens. Por outro lado, a renovada legitimidade interna do Presidente Putin permite-lhe, quando oportuno, afirmar agendas de prestígio nacionalista, com o tema da segurança a servir de alavanca instrumental. Estaremos a caminho de um novo, embora diferente, modelo de Guerra Fria?

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...