Daqui a poucas semanas, fará 20 anos que cheguei ao Brasil, para ali ser embaixador. Nessa noite, ao abrir do portão da residência, eles lá estavam, à nossa espera: o Zé e o Romário.
O Zé era pequeno, nascido no Piauí, muito negro, um sorriso franco, grande conversador. O Romário era alto, mais claro de pele, saído de Pedra Azul, onda a Bahia se aproxima de Minas. Tinha uma expressão mais grave, um discurso mais rural, era mais contido e parcimonioso nas palavras, mas tinha um humor subtil, às vezes só percetível com mais atenção ao que dizia. Com a Helena e a moçambicana Delfina, esse quarteto maravilha de empregados da nossa residência constituiu o "dream team" que, durante quatro anos, tornaram a nossa vida extraordinariamente agradável. Ficámos amigos para sempre. De todos. Há poucos anos, tomámos a decisão de voltar a Brasília, quase só para os rever.
Acabo de saber, através do meu colega que hoje é o nosso embaixador no Brasil, que o Romário morreu. E chegou-me agora esta fotografia dele, junto a um arranjo de flores, muito adequada a homenagear quem nisso era um mestre. Nela noto que o Romário tinha já os cabelos mais grisalhos do que no meu tempo, mas a verdade é que os anos passam por todos.
Com o andar dos dias, fui levado a apreciar cada vez mais o estilo sóbrio do Romário, a sua eficácia sem falhas, o seu cuidado com o pormenor. Aprendi com ele, e tenho-me esforçado para exercitar, essa coisa simples de que quando há algo de prático que temos que executar, devemos fazer isso de imediato, para nos libertarmos do encargo e da preocupação que a procrastinação provoca.
Nunca esquecemos as lágrimas que detetámos na cara do Romário, naquela tarde em que saímos definitivamente de Brasília.
Termino com uma historieta minha com o Romário, para atenuar esta evocação muito triste.
O Romário tinha a seu cargo a adega climatizada onde eu guardava os meus vinhos. (As embaixadas nunca têm vinhos. Os vinhos e a comida que nelas são servidos são do embaixador e saem do salário que lhe é pago - isto para quem não saiba). Eu conhecia o que por ali tinha. Ele ia-me avisando das eventuais falhas de abastecimento, que dependiam do ritmo dos almoços e jantares oferecidos. Numa certa zona dessa adega, existiam algumas garrafas individuais, que não tinham par, ideais para uma refeição a sós ou de duas pessoas. Ora, por esse tempo, acontecia que eu estava sozinho em casa. Ao pequeno almoço, disse ao Romário: "Para o almoço, abra cedo e "deixe respirar" a garrafa que está no alto, do lado direito dos tintos". Era um vinho português, que eu sabia razoável. Quando ia a entrar no carro, a caminho da chancelaria, estranhei a pergunta do Romário: "Quer mesmo a garrafa que está no alto, à direita?" Embrulhado nos jornais, conhecedor confiante da geografia dos meus álcoóis, confirmei e passei adiante.
Em Brasília, eu tinha o privilégio de poder almoçar ao ar livre, na esmagadora maioria dos dias do ano. Fi-lo também nesse dia, sozinho, junto à piscina. Notei que o Romário, que me servia, tinha decantado o vinho para uma garrafa de cristal. Iniciei o meu almoço, continuando entretido com uma pilha de imprensa, nesse tempo em que ainda não havia iPads. A certo passo, quase distraidamente, provei o vinho. Uáu! Era excelente! Melhor do que eu esperava. Quando o Romário se aproximou de novo, pedi-lhe para me trazer a garrafa. Notei-lhe um leve esgar, quando me mostrou o rótulo de um "Barca Velha" de 1983... Caí das nuvens! "Eu estranhei que o senhor embaixador insistisse em mandar abrir esta garrafa, mas achei que talvez quisesse comemorar alguma coisa". E fez um largo sorriso. Graças ao Romário, eu ia ter o inédito e irrepetível prazer de gastar um "Barca Velha" comigo mesmo!
Grande Romário! Gostaria muito de poder agora brindar com ele, com esse amigo que várias décadas de excelente serviço prestou ao Estado português e a quantos o representaram em Brasília. Os nossos sinceros sentimentos a toda a família do Romário.
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