Há histórias cuja graça só consegue ser apreendida por quem conheceu as personagens reais que as protagonizaram. Explicar quem é o Zé Macário é uma redundância para muitos vilarealenses (eu sei que se escreve com dois "erres", mas por cá é assim, pronto!) do meu tempo, mas é uma necessidade para os muitos mais que nunca se cruzaram com essa figura quase mítica, tantos são os seus episódios curiosos, que marcaram o imaginário de algumas décadas da cidade. A família Macário (curiosamente há um Macário, de Vila Real, do conto "Singularidades de uma rapariga loura", de Eça de Queiroz) é bastante conhecida na cidade, quer na área comercial, quer na fotografia: o pai do Zé Macário era um fotógrafo habitual nos eventos citadinos, com especial destaque para o desporto. E a última atividade que conheci ao Zé foi precisamente a de fotógrafo, a par de ser um ás para o negócio imobiliário.
Creio que o Zé Macário deve ser basicamente da minha idade. Era uma figura aquilina, ligeiramente curvada para a frente, de passo rápido e olhar vivo. Sempre penteado a preceito, de risca ao lado, parecia-se muito com aquela imagem dos brasileiros dos anos 30, que o "amigo da onça" de Péricles consagrou, embora sem o bigode. Com uma lata estanhada, era um farrista emérito, disponível para aventuras de largo espetro, algumas incontáveis. Ao tempo da sua juventude - já não vejo o Zé há muito e dizem-me que vive hoje fora de Vila Real, depois de vários percursos afetivos - teve sempre um particular êxito com um certo tipo de pequenas, fruto de uma lábia bem ensaiada e de uns métodos requintados de engate em que se aprimorara. Vestia de forma galante, assenhorado, com uns históricos coletes que lhe davam um ar, simultaneamente, sério e divertido. Nunca fomos íntimos: eu sempre tive tendência em ironizar um pouco com ele e, imagino hoje, ele não devia "ir muito à bola" com a minha maneira de ser. Mas recordo-me de, não obstante algumas escassas tricas, sempre nos termos dado relativamente bem.
Guardo para sempre dele uma imagem com uma imensa bebedeira - uma "narça", como por cá se diz - que apanhou numa ceia da festa estudantil do 1º de dezembro, um rito alcoólico de iniciação por que todos passávamos. Ele estava sentado no chão, esbodegado, olhos vítreos, depois de muito tinto e alguma aguardente, quando um polícia se aproximou e, com ar complacente mas crítico, lhe atirou: "Você não tem vergonha de estar aí bêbado?" O Zé, entaramelando a voz, nessa noite do ano em que tudo nos era permitido, olhando enevoadamente o cívico, retorquiu-lhe: "E você não tem vergonha de estar aí polícia?"
Mas "este" Zé Macário era compatível com o afinado galã de bailes, ele que era um dançarino de primeira água, que cuidava em percorrer todas as damas disponíveis de uma sala, das mais girotas até aos estafermos inapresentáveis. O que ele gostava era de dançar! E corria, com critério, as melhores festas do distrito para aproveitar os bailaricos.
São aos montões as histórias divertidas que envolvem o Zé Macário, um homem que acabou por ter uma vida algo atribulada, com algumas tragédias pelo meio. Talvez por isso se torne interessante destacar o período mais divertido dessa sua existência agitada.
Ontem, ao almoço, um amigo comum contou-me um episódio, ocorrido num baile no Casino das Pedras Salgadas, no final dos anos 60. Ele e o Zé tinham-se aperaltado a preceito para o evento. Desde a chegada ao baile, o Zé notara um sorriso prometedor, do outro lado da sala, de uma miúda bonitota, que trazia à ilharga uma mãe com ar austero. O Zé lançou-se numas danças com outras parceiras, mas foi mantendo olho na pequena, que sempre o mirava com ar convidativo. Curioso, decidiu tentar a sorte. Com aquele seu aspeto de quem "não parte um prato", educadérrimo, aproximou-se da mãe da rapariga e pediu, em termos irrepreensíveis, autorização para uma dança com a filha. A senhora anuiu, a pequena levantou-se da cadeira e foi então que o Zé notou que ela tinha um defeito numa perna e caminhava flagrantemente aos solavancos, numa coreografia que nos levara a crismar um conhecido professor de Matemática do liceu com o apodo de "chega-me isso", pela similitude da infelicidade ortopédica com o gesto de pedir algo para a frente.
Mas o Zé Macário não era rapaz para se deixar intimidar por uma surpresa, nem sequer daquele quilate. E, com imenso garbo, pôs-se a dançar com a pequena como se, também ele, sofresse dessa limitação no andar. Diz quem viu que, sem nunca se desmanchar, o Zé aguentou não uma mas três danças, sempre assumindo, mimeticamente, a mesma coreografia mancada, porventura adaptada habilmente à provável variação dos ritmos. No final da terceira dança, sempre de sorriso nos lábios, devolveu a pequena à mãe, agradeceu e beijou a mão da senhora, como era seu velho timbre, atravessou a sala para reencontrar o amigo com quem viera e, finalmente à vontade, de costas voltadas, desabafou: "Porra! Estou de rastos. Vamos embora!"
Grande Zé Macário! Onde estiveres, um forte abraço para ti.