segunda-feira, agosto 24, 2009

Tintin no País dos Censores

Uma biblioteca de Nova Iorque remeteu o álbum "Tintin no Congo" para uma área que necessita de uma autorização especial para consultas, sujeita a dias de demora. Já há uns tempos, algumas livrarias inglesas haviam decidido colocar tal álbum na área de vendas de adultos. No essencial, o trabalho de Hergé é hoje considerado como tendo conotações racistas. O que é, seguramente, uma verdade.

Toda a gente sabe que Hergé, para além do facto de ser um criador genial, era uma figura hiperconservadora. O seu pensamento era mesmo tributário de ideologias próximas da extrema-direita e a sua memória histórica pagou e paga um preço por isso. Mas não me consta que, em qualquer país livre, o anti-comunismo pré-primário do seu "Tintin no País dos Sovietes", tenha levado alguém a pensar colocá-lo no index, por ofender os sentimentos dos comunistas ou as relações com Moscovo - e aí, com toda a certeza, nunca o álbum esteve à venda...

Este esforço de alguns para nos defenderem de nós próprios, esta desconfiança sobre a nossa capacidade autónoma de julgamento, esta ideia de que não somos capazes de contextualizar ou ajudar a situar historicamente uma obra - tudo isto começa a converter-se numa insuportável tutela de coloração bem pensante, francamente irritante. Os exemplos são cada vez mais, pelo mundo fora, havendo como que uma passiva aceitação, quase sem reacções, deste tipo de atitudes censórias, uma espécie de temor reverencial, de que o banimento de imagens de figuras a fumar é talvez o caso mais paradigmático, como por aqui já referi outras vezes.

Neste contexto, vale a pena deixar uma história que, estou certo, a maioria dos leitores deste blogue desconhece.

Quando o "Tintin na América" começou a ser publicado em Portugal, no saudoso "Cavaleiro Andante", um dos seus primeiros quadros (senão mesmo o primeiro), apresentava a caricatura de um "gangster", de chapéu caído, figura rotunda e ar descarado, com o comentário à margem de que, naqueles tempos, tais personagens se passeavam livremente por Chicago.

Anos mais tarde, ao ler o álbum original, fiquei com a sensação de que havia uma qualquer diferença entre a imagem que eu vira no "Cavaleiro Andante" e a que o álbum completo trazia. E fui verificar: de facto, no álbum original, ao lado do "gangster", aparecia um polícia fardado a fazer-lhe continência. Ora o Estado Novo - "politicamente correcto" à sua maneira e cioso protector das nossas consciências - não quis deixar admitir que um agente de autoridade pudesse saudar um bandido , pelo que fez "desaparecer" o polícia do desenho publicado no "Cavaleiro Andante".

Cada um tem a sua paranóia. Mas, num mundo em liberdade, isto começa a ser demais!

Lisboa

"Lisbonne (Portugal) s’affiche comme la destination présentant le meilleur rapport qualité-prix selon les notes attribuées par les touristes, avec une moyenne de 7,83/10. Berlin (7,75) arrive ensuite devant Tokyo (7,74). Hotel.info constate que des villes comme Paris, Moscou ou Londres ne parviennent pas à s’imposer dans le Top 20 des villes les mieux notées."

Não sou eu quem o diz, é o site Hotel.info, segundo li aqui (cuidado com o som...). Aliás, a capital portuguesa, está cada vez mais na moda, como também pode ver-se aqui.

domingo, agosto 23, 2009

Terminus

Há uns anos, tive um embaixador que recomendava para nunca nos instalarmos nos hotéis que existem junto às estações de caminho de ferro. Dizia ele uma imensa verdade: "São sempre demasiado longe para se ir a pé com a mala e demasiado perto para se apanhar um taxi".

Lembrei-me deste conselho ao passar ontem pelo Hôtel Terminus, junto à Gare de Saint-Lazare, em Paris, que foi um dos locais de férias de Eça de Queirós, Cônsul-Geral em Paris no final do século XIX, quando a família estava a banhos. Nesta minha peregrinação ocasional pelos locais da memória queirosiana em Paris, dei-me conta que o Terminus desse tempo, construído para a Exposição Universal de 1889 (que também nos deu a Torre Eiffel), possuia uma "passerelle" que ligava o hotel à estação, aliás tal como acontecia com o Hotel Avenida Palace, em Lisboa, que tinha um corredor directo para a Estação do Rossio. E foi ao apreciar essa belíssima "passerelle", em ferro e vidro, de que lhes deixo uma imagem, que descobri este delicioso naco da propaganda que o hotel fazia, à época, na qual um suposto cliente descrevia assim as suas vantagens:

"À la gare Saint-Lazare, je saute du wagon, j'entre de plain-pied au Grand Hôtel Terminus en donnant mon billet de voyage au portier et je suis déjà au lit, alors que les autres voyageurs, moins avisés, se morfondent sur un trottoir et se querellent avec les cochers et les portefaix... Puis, au départ, on m'apporte mon billet dans ma chambre, mes bagages sont enregistrés sans que j'aie quitté le salon. On vient m'avertir et j'arrive tout droit par la passerelle en pantoufles dans mon compartiment, sans attendre, sans prendre froid, sans m'agacer, par conséquent sans fatigue. J'ai donc épargné mon temps, mon argent et ma peine."

Porque a Gare de Saint-Lazare não levava aos destinos habituais do Eça, nunca saberemos se ele alguma vez utilizou estas mordomias. Ele ou o Jacinto...

sexta-feira, agosto 21, 2009

Google Street Views

Com um carro similar ao da imagem, a Google filmou, ao que se diz durante o último mês, as ruas de Lisboa e isso permite-nos agora "passear" virtualmente pela cidade. Terá até obtido uma imagem um tanto estranha, numa avenida importante de Lisboa...

Há quem ache isto uma invasão da privacidade, uma espécie de novo "big brother" (do Orwell, não da TV, note-se). Para mim, teve, desde já, uma grande vantagem. Andava cheio de dúvidas sobre se, numa passagem por Lisboa, há algumas semanas, havia deixado ou não aberta uma determinada janela da minha casa. Confirmei ontem: está fechada! Viva o Google Street Views!

O Procurador

Contrariamente ao que alguns estarão já a pensar, apenas vou falar de uma das mais antigas instituições do Ministério dos Negócios Estrangeiros - o "procurador".

Confrontei-me com ela nos corredores do palácio das Necessidades, durante o período em que fazia as provas para a entrada na carreira diplomática. Um dia, fui aproximado por um contínuo que me perguntou: "O senhor doutor já tem procurador?". Devo ter olhado para ele com cara espantada: "Procurador?! Para quê?". O homem explicou, em breves palavras, que todos os diplomatas, sem excepção, tinham "o seu procurador", alguém que lhes tratava de receber o vencimento (!?) e que era muito útil para várias coisas, em especial quando no estrangeiro. E propunha-se para ser meu procurador, claro.

Ora eu ainda não tinha sequer passado as provas orais, estava a anos de partir para o estrangeiro, porque raio precisava de um procurador? Mas lá fiquei com o cartão do homem. À medida que os exames iam decorrendo, pelas esquinas dos claustros, foram aparecendo outros contínuos ou motoristas a deixarem-me cartões. E eu ia-os guardando, mais por curiosidade do que por convicção.

Entrado no Ministério, colegas mais velhos perguntavam-me: "Já escolheste procurador?". Eu dizia que não, eles estranhavam e, por regra, gabavam logo as vantagens que haveria em escolher o seu. Mas eu continuava relutante e não contratava ninguém. Fazia até uma certa gala nessa atitude singular.

Até que chegou o primeiro fim-do-mês. Perguntei a alguém onde se recebia o vencimento. Nesse tempo não havia ainda o crédito em conta bancária. O salário mensal vinha em envelopes, com as notas e as moedas dentro. "O teu procurador é que trata disso" - foi a resposta. Sim, mas eu, que não tinha procurador, como é que fazia?: "Não tens procurador? Isso é muito complicado, sem procurador não é possível receber o salário. Ele é que leva 'as folhas' ao banco". Sabia lá eu o que eram "as folhas"! Entrei em fúria. Já tinha sido funcionário público noutro departamento do Estado e nunca tinha tido dificuldade em receber o salário. Era agora, no MNE, que isso ia ser impossível? "Vai ao 4º andar, pode ser que te informem de outra maneira de receberes o dinheiro, mas, desde já te digo, não vai ser nada fácil" - disse-me uma voz amiga, embora muito céptica.

Faço aqui um parêntesis para explicar que o "4º andar" é o andar do poder administrativo do MNE, da mesma maneira que o "3º andar" é o andar do poder político, onde está o gabinete do Ministro e, antes, também estava o do Secretário-Geral, até que um "golpe de mão" do ministro Deus Pinheiro praticamente "correu" com o chefe da carreira do gabinete que ocupava há décadas. Mas, na realidade, se se entrar no MNE pelo Largo do Rilvas, o 4º andar é, verdadeiramente ... o 2º andar! Na "casa", as contas fazem-se desde "lá de baixo", de outros andares que só se vêem da Tapada das Necessidades. E estas coisas, no MNE, já não se discutem. Aliás, na conversa normal da carreira, é vulgar ouvir-se: "Falei hoje com o 4º andar sobre as promoções, mas disseram-me que o assunto ainda não tinha saído do 3º andar". Frase que, às vezes, é complementada por outra ainda mais críptica: "Dizem que é a 7ª que está a criar dificuldades". A "7ª" significa a 7ª repartição da Contabilidade Pública, braço armado do Ministério das Finanças dentro do MNE.

E lá fui eu ao 4º andar. Eram dois corredores em cruz ("et pour cause"...), sem nada que identificasse o que fazia quem estava por detrás daquela imensidão de portas fechadas. Andei de seca para meca, a entrar e a sair de salas atulhadas de senhoras, algumas que vim a saber historicamente poderosas, que olhavam com superioridade o jovem "adido de Embaixada" que eu era, particularmente o teimoso que não queria ter procurador. "Ó dona Maria Garcia, está aqui um doutor que quer receber o ordenado sem ter procurador!" - dizia uma delas, como se acabasse de avistar um extra-terrestre, provocando a concentração em mim de dezenas de olhos incrédulos, acompanhados por alguns sorrisos de benévola piedade. "Isso só vendo amanhã, passe então por cá da parte da tarde, pode ser que estejam por aí as 'folhas', mas olhe que vai ter muito trabalho, ó doutor!", advertiu-me logo alguém. No dia seguinte, afinal, também não foi possível. E, no outro, as 'folhas' ainda não apareciam... "To make a long story short", cedi e lá acabei por arranjar um procurador...

Verdade seja que, se o procurador era quase inútil em Lisboa, ele era, num tempo sem internet e com dificuldades de comunicação, precioso durante as nossas longas estadas no estrangeiro: ia aos bancos, pagava contas, mandava e expedia correspondência, fazia diligências de todo o tipo (alfaiates e costureiras incluídos). Contudo, para mim, a sua função mais apreciada era e continua a ser mandar-me livros e jornais pela mala diplomática.

Entre os procuradores, houve sempre "classes" e até gratificações diferentes: os procuradores mais "finos" só tratavam de prestigiados embaixadores e já não aceitavam "mais gente". Outros, eles próprios mais velhos, dedicavam-se preferencialmente a diplomatas antigos. Finalmente, os mais novos procuravam singrar na vida através de clientela das gerações recentes. Os mais afortunados ou poderosos tinham (têm?) mesmo cubículos ou vãos de escada, com chave própria, onde guardavam embrulhos e envelopes. E, se bem me lembro, alguns havia que já subcontratavam mais novos, para tarefas ou deslocações mais pesadas.

Na minha memória de algumas décadas, o grande procurador do MNE foi o Sr. Matos, homem da portaria, figura de grande educação e óptimo trato, sempre delicado, mesmo para os mais novos. Nunca foi meu procurador, mas eram famosas as cartas com que fazia acompanhar as contas mensais, nas quais pré-anunciava os "movimentos diplomáticos": "Saiba Vossa Excelência que consta pelos corredores que o Senhor Embaixador X poderá vir a ser substituído em breve pelo Senhor Ministro Plenipotenciário Y, que corre que será promovido. Quem não estará contente, ao que se diz, é o Senhor Embaixador Z, que agora poderá que ter de aceitar "tal posto"...". E depois, modestamente, terminava: "Mas Vossa Excelência sabe, bem melhor do que eu, que isto podem ser só boatos...". Qual quê! O Matos acertava sempre, pelo cruzamento de ouvidos vários, que faziam da portaria do Ministério um lugar privilegiado de informação.

Confesso que não sei se, nos dias de hoje, os meus colegas mais jovens ainda têm o seu procurador. Eu tenho, é de uma eficácia imbatível e, além do mais, no que me toca, transformou-se já num velho amigo. Como não lê blogues, nem sabe que falo aqui dele...

quinta-feira, agosto 20, 2009

Amália

O novo Portugal continua a ser, para o Brasil contemporâneo, uma constante descoberta. Um pouco como começa já a acontecer em França. Há dias, o jornal "O Globo", trouxe uma reportagem sobre Lisboa, na qual, entre uma interessante reportagem, dava conta da relutância de um empregado da FNAC lisboeta - um figura com símbolos de modernidade como "cabelo, piercings e tatuagem" - a vender o disco "Amália Hoje", uma revisitação da cantora por novos intérpretes. Ao tentar dissuadir o jornalista, ele terá dito: "Este CD é uma porcaria. Não o compre".

Ingenuamente, o jornalista viu, nesta reacção, o reflexo de uma atitude nacional conservadora, de um país que só aceita a modernidade "desde que não mexam com o que é autenticamente português". Ora, na realidade, a reacção, além de mau profissionalismo, é pura estupidez.

O disco é um esforço interessante de recriagem de uma outra sonoridade em torno de temas de Amália, a que só "amalianos" do antanho podem ser hostis. Embora perceba que possa não se gostar deste tratamento musical, está muito longe de ser "uma porcaria" e, confesso, a mim agrada-me bastante. A voz de Sónia Tavares é uma boa surpresa.

Veja um clip aqui e também o texto de O Globo.

Mulheres

Se acaso está ou vem a Paris, ou conhece alguém que venha, posso dar um conselho? Vá à magnífica exposição de fotografia que a Fundação Gulbenkian tem no seu Centro Cultural, no nº 51 da avenue d'Iéna (tel. 01- 53 23 93 99).

Trata-se de uma exibição intitulada "Au Féminin - Women Photographing Women", concebida e organizada por Jorge Calado, que inclui obras desde o século XIX a tempos recentes. Os retratos do feminino, feitos por mulheres, são, de facto, uma outra maneira de olhar. O catálogo é belíssimo. A foto que ilustra este post é de Leni Riefenstahl, a polémica, mas excelente, fotógrafa alemã.

Curiosidade é a presença nesta mostra da portuguesa Maria Lamas (1893-1983), uma mulher de cultura, que viveu tempos importantes nesta cidade de Paris e cuja memória a Embaixada irá recordar proximamente.

Já agora, um conselho mais: se visitar esta exposição na Gulbenkian de Paris, aproveite para olhar de forma mais atenta para a casa onde está instalado o Centro Cultural, que foi a antiga residência de Calouste Gulbenkian em Paris. É que, daqui a meses, vão mudar para novas instalações.

quarta-feira, agosto 19, 2009

Bardot

Gabo a paciência de Daniel Ribeiro que, daqui de Paris, conseguiu extrair uma entrevista, por fax e telefone, a Brigitte Bardot, para o "Expresso".

Nas respostas, vê-se que a senhora está ácida, radical no mau sentido e ferida com um mundo que tão bem a tratou.

Por mim, prefiro recordá-la (pelo menos) assim.

Selecções

A "Reader's Digest" anunciou ontem falência nos Estados Unidos. Ao ver a notícia, fui invadido por uma leve nostalgia.

Aproveito para deixar claro que as memórias que, por vezes, trago para este blogue não representam, necessariamente, qualquer saudade de outros tempos. Com escassas excepções, o presente é bem melhor do que tudo o que ficou do lado de lá da esquina da História, por mais graça que esse tempo tenha então tido, por mais complexa que a vida de hoje seja. Pelo menos, eu penso assim, com sinceridade.

A "Reader's Digest" lembra-me as suas "Selecções" (ou melhor, as "Seleções"). Cresci com elas sempre lá por casa, na sua versão brasileira, espreitando "pin-ups" que a publicidade caseira não comportava ainda nos seus cânones, com propaganda a frigoríficos e automóveis que não havia em Portugal. E tinha sempre, pelas suas páginas de textura sedosa, donas-de-casa loiras e de "permanente", tipo Doris Day, com camisas aos folhos e saias compridas rodadas, ao lado de cavalheiros invariavelmente elegantes, tipo Cary Grant, quase sempre de fato e chapéu ou naquilo que os brasileiros designam por "esporte fino", ao lado de crianças sorridentes e felizes nas suas bicicletas e bonecas (nunca houve muitas bolas por lá), sempre à porta de moradias com relva a descer para as alamedas dos bairros. Sorridentes e sempre brancos, claro. Era a América oficial que exportava a imagem do "way of life" de alguns.

Fui leitor assíduo de rubricas como "Meu tipo inesquecível", "Flagrantes da vida real", "Rir é o melhor remédio", "Piadas de caserna" ou o "Enriqueça o seu vocabulário" - onde, pela primeira vez, devo ter pensado nas vantagens do Acordo Ortográfico. Nunca li, e nunca me arrependi, nenhuma das suas irritantes sínteses de romances, mas algumas vezes fui à procura do volume completo. Devo também às "Selecções" a minha hipocondria, pela reiterada inclusão de artigos sobre doenças, cuja sintomatologia tantas vezes partilhei. Já não cheguei à fase das peças sobre dietas... logo quando mais delas necessitava!

Só tarde me apercebi, ou me fizeram aperceber, da existência, em cada número das "Selecções", de três ou quatro artigos onde, com maior ou menor subtileza, se fazia a apologia de ideologias convenientes aos interesses americanos. Mas, na verdade, que importava isso, no tempo cinzento do salazarismo? Claro que as "Selecções" diziam mal dos comunistas, mas com bem mais sofisticação do que o "Diário da Manhã", o "Novidades" ou o "Diário de Notícias". E também lembravam, numero-sim-número não, belos episódios das glórias aliadas na 2ª Guerra Mundial.

Um dia, as "Selecções" aportuguesaram-se e, pouco a pouco, foram desaparecendo do nosso horizonte de leitura, concorrendo com outras publicações mais apelativas. Às vezes, antes de entrar num comboio, ainda comprava as "Selecções", mais por curiosidade do que por interesse. A "Reader's Digest" passou então a ser mais famosa por livros e discos que editava e que uma inventada "Marta Neves" nos propunha, em regular e personalizada epistolografia - alguns, aliás, de grande qualidade.

Há anos que já não lia as "Selecções". Minto: há poucas semanas, numa casa de campo nortenha, encontrei exemplares das edições brasileiras, dos anos 40 e 50 do século passado, alguns já sem capa, e, confesso, diverti-me bem com algumas historietas, bem de um outro tempo. Será isto nostalgia?

terça-feira, agosto 18, 2009

Sérgio


“Você sabe, Francisco, só me aparecem desafios que não consigo recusar!” – foi a frase que retive da última conversa com Sérgio Vieira de Mello, quando lhe telefonei para Genebra a desejar sucesso para a sua nova missão em Bagdad. Ironizámos então com o facto de Paul Bremer, o primeiro "administrador" americano no Iraque, com quem Sérgio teria que se articular, ter coincidido comigo em posto diplomático na Noruega, nos idos de 70: prontifiquei-me para "meter uma cunha", se ele precisasse…

Só conheci pessoalmente Vieira de Mello em Setembro de 1999, quando o protocolo nos sentou lado-a-lado, num almoço em Nova Iorque. Acabara, há pouco, a sua missão nos Balcãs e entre nós passou, de imediato, uma corrente de empatia luso-brasileira, logo cimentada pelo mútuo culto do humor. Recordo-me de termos falado da possibilidade de ele chefiar a nova missão da ONU em Timor, ainda semanas antes de Kofi Annan lhe propor o lugar. Eu não tinha a pretensão de estar a ser presciente: limitava-me a ecoar o nome prestigiado que circulava já por alguns corredores, afirmando-lhe a certeza antecipada de que o Governo português o acolheria com muito agrado. Na altura, Sérgio retorquiu-me, com o seu sorriso confiante, que não, que “ia precisar de algum tempo para descansar”. Felizmente, isso acabou por não acontecer.

Sérgio Vieira de Mello fez em Timor um trabalho notável, como várias vezes tive ocasião de referir, em nome de Portugal, em intervenções no Conselho de Segurança da ONU. E – confesso – fi-lo com uma sinceridade que nem sempre é regra nos discursos oficiais. Com ele combinei, nas derradeiras fases do processo pré-independência, o tom comum das nossas intervenções em Nova Iorque, por forma a garantir o apoio que o secretário-geral da ONU e o Governo português entendiam necessário que fosse dado aos timorenses pela comunidade internacional, nos difíceis anos que se seguiriam. Recordo também os pedidos que fez, por meu intermédio, para que Portugal “deixasse cair”, a nível adequado, palavras de acalmia e bom-senso junto de responsáveis políticos de Timor, a fim de atenuar alguns litígios menores, mas que ameaçavam a estabilidade do processo interno.

Em Novembro de 2002, convidei Sérgio Vieira de Mello para ir a Viena, falar ao Conselho Permanente da OSCE, já na sua qualidade de Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos. Foi uma sessão memorável, que gerou um debate interessantíssimo, em que o à-vontade diplomático de Sérgio sublinhou o seu profundo conhecimento da situação internacional. Mas que também revelou a firmeza das suas convicções. No almoço em minha casa que se seguiu, e perante uma observação mais tensa avançada pelo meu colega americano, não deixou de lhe recordar que os prisioneiros de Guantanamo “não vivem na Lua” e que, também a eles, se deviam aplicar, em pleno, “todos os Direitos Humanos devidos aos cidadãos da Terra”.

Foi há precisamente seis anos, no dia 19 de Agosto de 2003, que Sérgio Vieira de Melo morreu, de forma violenta, em Bagdad.

(Este texto reproduz grande parte de um outro que inseri no meu livro “Uma Segunda Opinião”)

Arctic Sea

Se há história que parece ainda muito mal contada é a saga do navio "Arctic Sea", que colocou toda a frota russa em polvorosa, a caminho do Atlântico. O que haverá lá dentro? Alguma vez saberemos?

E por que luas a Comissão Europeia (!) lançou a ideia de que o barco terá sido objecto de um assalto em plenas águas territoriais portuguesas? Será do calor?

Namora


A internet tem destas coisas: encontram-se referências curiosas sobre temas inesperados. Hoje mesmo foi uma nota, num site belga, sobre a edição francesa dos "Retalhos da Vida de um Médico", de Fernando Namora, onde se pode ler:

"Un livre que je ne pensais pas trouver, car il n’a pas été réédité depuis 1955. Et quel bonheur de le trouver à la bibliothèque, bien relié, attendant ma visite. Avec son odeur de vieux livre qui ne se décrit pas. Son papier qui a jauni. Ses pages qu’on a trop peu tournées.

Dommage. Oui, dommage que ce livre ait été si peu lu. Car il y a dans ce récit, ou plutôt cette suite de récits, un ton, des images, des scènes, une époque. Un Portugal qui n’est pas encore révolu, dont les villages reculés hébergent encore des guérisseurs de tout genre, où la population gitane n’a jamais cessé de croître, où l’étranger - comme ce médecin venu du nord - n’est pas accepté d’emblée mais après avoir fait ses preuves, dix fois plutôt qu’une. Un Portugal de petites gens, de superstitions, de simplicité. Le Portugal des villages éparpillés dans la montagne, isolés. Un Portugal que l’auteur aime intensément, avec un respect profond pour les travailleurs de la terre.

Le Carnet d’un médecin de campagne est à découvrir, dans cette édition qui a certes vieilli mais qui n’en est pas moins intéressante, en attendant que quelqu’un pense à faire une nouvelle traduction de ce bijou afin de donner à celui-ci le rayonnement auquel il aurait droit, celui d’un « classique » de la littérature portugaise."

A velha obra de Fernando Namora é, de facto, o retrato de um Portugal de outro tempo, quando o escritor era médico em Monsanto, uma aldeia da Beira-Baixa. Não deixa de ser interessante a ideia da sua reedição, mas parece-me de difícil concretização, atendendo àquilo que é o perfil de procura da literatura portuguesa na França de hoje.

segunda-feira, agosto 17, 2009

Mini-Bar

Os contabilistas estavam perplexos. A conta de "mini-bar" que o hotel tinha remetido ao Ministério, relativa ao convidado estrangeiro que lá alojáramos durante três dias, era espantosamente alta. Muito maior do que as despesas efectuadas no próprio bar do hotel. Que se teria passado? Teria o homem decidido encerrar-se no quarto e esvaziar todo o whisky, gin, cognac e outras bebidas, mandando recarregar o mini-bar algumas vezes mais?

Porém, quem lidara com ele, durante esses mesmos dias, não ficara com a menor impressão de se tratar de alguém afectado na sua sobriedade. O nosso hóspede era quadro superior de um país estrangeiro, de um Estado pobre e com grandes dificuldades. No passado, já tinha ocorrido o Ministério ter de suportar algumas despesas exageradas, feitas por alguns convidados de perfil idêntico, um pouco deslumbrados pela circunstância de todo o consumo que fizessem no hotel ser por nossa conta. Mas isso, à partida, continuava a não explicar a elevada despesa do mini-bar.

Foi tomada a decisão de pedir uma factura detalhada dos consumos feitos pelo cliente, durante todo o tempo da sua estada. A resposta veio e, com ela, a desarmante explicação: a rubrica "mini-bar", inserida na conta do hotel, nada tinha afinal a ver com o consumo de bebidas. Tinha a ver com o facto do nosso homem, no embalar final das suas bagagens, antes de sair do hotel, ter decidido levar consigo, seguramente bem embrulhado, o próprio pequeno móvel do mini-bar...

100 metros

Ontem, foi um grande dia para o atletismo mundial. E não só. O jamaicano Usain Bolt completou os 100 metros na fantástica marca de 9,58 segundos: 37,578 quilómetros por hora!

Um recorde histórico na cidade em que Jesse Owens irritou Hitler e no ano em que Obama é presidente dos Estados Unidos. Um excelente momento para o mundo!

Voltas

Terminou ontem mais uma Volta a Portugal. Desta vez, para variar, foi um português o vencedor.

Não tenho um contacto com a realidade portuguesa que me permita aquilatar, com precisão, da relação afectiva que o país tem hoje com o seu ciclismo. Fico com a sensação que já não há grandes ídolos, apenas uma meia dúzia de nomes relativamente mais conhecidos. Não deixa, aliás, de ser curioso que aquele que parece ser o mais popular ciclista português, Cândido Barbosa, nunca tenha obtido uma vitória na Volta a Portugal. É, apesar disso, um campeão da simpatia.

A desaparição dos clubes tradicionais como promotores centrais da modalidade, bem como a entrada das empresas a dar nomes às equipas, terá retirado muita da rivalidade antiga que alimentava o ciclismo português. Valha a verdade, um dos grandes duelos históricos do nosso ciclismo ocorreu entre Alves Barbosa e Ribeiro da Silva, apoiados então, respectivamente, pelos modestos Sangalhos e Académico do Porto. Mas as camisolas do Benfica, Porto e Sporting (aqui por ordem puramente alfabética, claro...) foram a chave de décadas de entusiasmo nacional pelo ciclismo. Que parece perdido.

Nem sempre foi assim. Na minha juventude, a chegada da Volta a Vila Real era um momento de grande emoção, tanto mais que então acompanhávamos, ao segundo, a evolução da classificação geral (e, também, de montanha e por pontos). Pela rádio, ficava a saber-se, a certa altura, que "já chegaram ao Alto de Espinho!", pelo que imaginávamos a descida rápida desses 15 km, que antecedia a curta subida para a meta na cidade. Depois, nas horas seguintes, era o espetáculo bizarro e colorido dos ciclistas sentados pelas esplanadas da avenida Carvalho Araújo, de chinelos, antes de recolherem às pensões Excelsior, Mondego, Coutinho ou Areias - salvo as equipas ricas, que se permitiam os luxos do hotel Tocaio.

Porém, como espectáculo de rua, o ciclismo continua ainda a ser uma festa para as terras por onde passa. Há uma merecida admiração por esses homens que, no tempo mais quente do ano, passam horas a sofrer. Uma luta que se passa à nossa escala, porque há que ter em atenção que a Volta a Portugal está a anos-luz de importância das suas grandes congéneres europeias - a espanhola, a italiana e a francesa. De qualquer forma, conseguir subir a Senhora da Graça ou a Torre continua a ser uma proeza impressionante e comovente.

Vila Real deu ao ciclismo português um nome importante: Delmino Pereira. Porém, na minha infância, havia por lá um outro ciclista, Firmino Claudino, o qual, durante alguns anos, alinhou em Voltas a Portugal, sem que, no entanto, tenha deixado marca de vitórias. Recordo-me bem da sua figura, dono de uma loja de bicicletas e, com bastante mais êxito do que no ciclismo, do seu estatuto de um dos melhores bilharistas nas mesas do Café Excelsior.

Uma Volta a Portugal, nos anos 60, teve uma etapa que finalizou nas Pedras Salgadas, terra de onde Firmino Claudino era originário. Mantenho viva na minha memória a sua imagem, nesse final da tarde, impante de orgulho, a passear-se de braço dado com Alves Barbosa, numa assumida e ostensiva revelação de proximidade com aquela que era, à época, a grande estrela do ciclismo português. Essa terá sido, seguramente, a sua maior vitória ciclística... Anos mais tarde, a caravana da Volta atravessou as Pedras Salgadas. Firmino Claudino ia no pelotão e, à passagem na sua terra natal, decidiu desistir por lá. Foi a etapa final da sua última Volta. Ter a própria terra por meta não deixa de ser bonito.

sábado, agosto 15, 2009

Douro

Há semanas, dei por mim a pensar no Douro. E, em especial, no que hoje representa o Douro para o nosso imaginário regional e nacional.

Nasci, fui educado e vivi durante algum tempo bem perto do Douro, a menos de três dezenas de quilómetros, por estrada. Para quem viajava bastante de comboio, como era o meu caso, a paisagem duriense fazia parte integrante e habitual do nosso cenário de trajecto, quer no tortuoso e bizarro percurso entre Vila Real e a Régua, quer entre esta vila (que o era, à época) e o Porto - que era então a mais próxima imagem de metrópole para os nortenhos.

Nas minhas memórias de infância e adolescência está aquela mancha de água que viajava quase sempre ao lado da linha férrea, às vezes aproximando-se dela de forma quase perigosa. Nelas estão também as regulares enchentes, uma espécie de destino a que as ruas mais baixas da Régua não escapavam. Mas, no nosso imaginário, o Douro não era mais do que isso.

Mas a que propósito vem isto? Vem a propósito do facto de eu, como muito boa gente do Norte do país, só ter acordado muito tarde para a fantástica beleza da região do Douro, para a paisagem magnífica e diversa que ela hoje oferece a qualquer viajante - de carro, de barco ou de comboio. Porque fazia parte do nosso cenário de rotina, não a tínhamos valorizado e, de certo modo, foi preciso que outros a olhassem de fora para que nós também a "víssemos".

O Douro, para além dos vinhos, mas agora muito por causa deles, é um património sem preço que importa a Portugal promover, sem o deixar descaracterizar.

Em Paris, numa data a anunciar, mas ainda dentro deste segundo semestre, em estreita cooperação com as autoridades durienses, vamos levar a cabo, nas intalações da Embaixada de Portugal, uma acção de promoção daquela região. Aí falaremos do vinho, claro, mas também das paisagens, da hotelaria, da gastronomia, da cultura e de um conjunto de outras vertentes que tornam aquela região, nos dias que correm, numa das grandes "surpresas" da oferta turística portuguesa.

sexta-feira, agosto 14, 2009

Cem Amigos

A língua portuguesa é muito traiçoeira - dizia um rapaz que já teve mais piada, em especial quando a usava com subtileza. Cem amigos significa que estamos com amigos, por mais que a frase soe estranha.

Como o quadro ao lado atesta, na data de hoje, temos já 100 leitores inscritos no blogue, pessoas a quem agradecemos a sua simpatia, paciência e atenção, que esperamos continuar a não desiludir.

Les Paul (1915-2009)

Tive o privilégio de ainda poder ver, ao vivo, Les Paul, o guitarrista americano que agora desaparece, aos 94 anos. Foi numa noite, nos anos 90, nessa histórica "catedral" do jazz que é o Ronnie Scott's, em Londres. Era uma figura genial e foi um dos instrumentistas que deu à guitarra eléctrica uma grande dignidade.

Aqui fica a uma sua memória. Se puderem, ouçam os seus discos.

República

Hoje, dia em que alguns blogues portugueses vão voltar a andar muito entretidos com o tema, apetece-me publicar esta bela alegoria sobre a Implantação da República.

A Embaixada de Portugal em Paris tem em preparação, para o ano de 2010, algumas iniciativas destinadas a comemorar o Centenário da nossa República - a segunda, depois da francesa, a ser instaurada num país europeu.

quinta-feira, agosto 13, 2009

Telefonista

Aquela telefonista era muito rigorosa e precisa: tudo o que não fosse relacionado com o serviço da Embaixada era imediatamente reencaminhado.

A chamada que recebeu nessa manhã teve a resposta devida. O interlocutor perguntou quem, na Embaixada, o poderia informar sobre as datas de nascimento e morte do rei dom João I.

A funcionária não hesitou: "Nascimentos e falecimentos não é connosco. Isso são coisas consulares. Vou dar-lhe o telefone do Consulado-Geral". E deu...

Crescimento

Embora pontuadas por compreensíveis notas de prudência, as reacções em França às notícias de recuperação nos índices de crescimento foram, em geral, muito positivas e optimistas. Toda a imprensa saudou a "proeza" e não apareceram, até agora, "aves agoirentas" a desqualificar o ocorrido. Implicitamente, o resultado é visto como o saldo de um esforço nacional, colectivo, envolvendo sectores oficiais, empresariais e laborais.

Dado que o percentual de crescimento foi precisamente o mesmo em França e em Portugal, confesso que estou muito curioso em saber como serão as reacções no nosso país.

Ibéria?


Pondo de parte a teoria conspirativa, alimentada por alguns, de que se trata de subtis balões de ensaio, confesso que frequentemente me interrogo sobre as motivações que poderão estar na origem do cíclico surgimento, entre nós, das teses iberistas. Benevolamente, atribuo-as à síndroma sazonal da "silly season", adubadas pelo esforçado internacionalismo de outros tantos, que se entretêm a brincar com a identidade nacional, em exercícios lúdicos de alguma irresponsabilidade.

O iberismo acabou por fundar-se, historicamente, no sentimento de finis patriae que nos adveio do declínio posterior à perda do Brasil, marcado pela dificuldade em gerirmos o nosso papel intraeuropeu, no ácido confronto cruzado de ambições coloniais, que nem o carácter de algumas alianças vetustas conseguiu disfarçar. Desde então, esse tropismo, derrotista e derrotado, tende a renascer sempre que surgem conjunturas que alguns identificam com a crise, não necessariamente do país, mas da ideia atormentada que dele alimentam. Tudo isto vale o que vale, mas devo confessar que começa a tornar-se irritante a sua reiterada emergência, com alguns inocentes úteis a dar-lhe foros de dignidade, por vezes mesmo com tentativas de teorização pseudo-intelectual.

Faço parte de uma geração educada "contra a Espanha", na magnificação do papel das batalhas que nos garantiram a independência, das figuras hagiografadas de recorte heróico quase caricatural, tudo se saldando na gestação de uma desconfiança atávica face aos "ventos" que sopravam de Madrid. Os livros de um Matoso anterior e de alguns outros "genéricos" da historiografia portuguesa defendiam essa espécie de doutrina patriótica incontornável, a que a própria diplomacia portuguesa não escapou. Esse culto quase paranóico da História, hiperbolizado ao ridículo pelo Estado Novo, gerou uma espécie de "inimigo nacional" obrigatório. Ainda hoje, alguns iluminados tendem por aí a esquecer uma meridiana realidade: quase nove séculos decantaram uma identidade portuguesa bem clara que, em todas as dimensões, se distingue hoje das "Espanhas" - de todas elas. E essa distinção já nada tem a ver com antagonismo.

A comum entrada de Portugal e Espanha nas instituições europeias fez com que se atenuasse, de um modo natural e num movimento de elementar racionalidade, essa doentia obsessão anti-espanhola, tornando natural o relacionamento dos dois Estados que coexistem na península. O modo como os temas de contencioso bilateral passaram a ser tratados, de que são exemplo os casos das pescas ou da gestão dos rios comuns, provou o carácter altamente benéfico da mútua convivência dentro do quadro formal europeu. Além disso, devo confessar que, para mim, foi uma verdadeira lição ver as novas gerações portuguesas começarem a entusiasmar-se com a "movida" madrilena ou desejosas de aproveitar a riqueza de vida das Ramblas de Barcelona.

A Espanha contemporânea, na sua diversidade e complexidade, é hoje uma realidade pujante, onde um sentimento colectivo de salutar orgulho fixou uma matriz que conseguiu federar autonomias e nacionalismos muito diferentes. É um país magnífico, com uma cultura interessantíssima, um povo optimista e que, em algumas décadas, deu ao mundo a lição de como foi possível desenvolver uma sólida democracia, uma sociedade de bem-estar e de franca modernidade, que conseguiu firmar-se sobre as memórias trágicas da Guerra Civil, as pulsões nacionalistas e as ameaças da barbárie terrorista.

A serena relação com a Espanha constituiu hoje um dos pilares importantes da nossa política externa. Com Madrid, encontramos, dia-após-dia, áreas para uma acrescida cooperação internacional em imensos domínios, definindo cada vez mais linhas comuns de trabalho em instâncias multilaterais. Como disse, há dias, o rei Juan Carlos, Portugal e Espanha são “duas nações antigas, vizinhas, amigas, sócias e aliadas”.

Existe hoje em Portugal uma grande simpatia pelo seu vizinho espanhol. Para que isso continue a ser assim, necessário é que continuem a existir dois países, Portugal e Espanha, como soberanias orgulhosamente diversas. Alguns não pensam assim? Deixemo-los a falar sozinhos. Portugal está aí para durar, gostem ou não.

Uma versão reduzida deste texto é hoje publicada, como artigo de opinião, no Correio da Manhã.

quarta-feira, agosto 12, 2009

Memória de Agostos (III) - 1974

Estávamos nos últimos dias de Agosto de 1974 e os agentes da polícia política PIDE/DGS (os “pides”), presos desde o 25 de Abril na cadeia penitenciária de Lisboa, haviam iniciado um novo motim. Era um movimento em tudo idêntico ao que tinham desencadeado no início do mês e que provocara a constituição de uma “comissão de inquérito”, composta por um representante de cada um dos três ramos das Forças Armadas, da qual eu era relator, enquanto oficial miliciano do Exército.

Tinha assumido essas funções na qualidade de assessor do general Galvão de Melo para as questões do desmantelamento da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa. Galvão de Melo, da Força Aérea, era um dos sete membros da Junta de Salvação Nacional, que então dirigia o país, e, seguramente, a figura mais à direita dentro daquele órgão. Por uma singular ironia, competia-lhe a tutela da Comissão de Extinção da polícia política do anterior regime, tarefa que o não entusiasmava por aí além. E, por outra singular ironia e fruto de diversas circunstâncias, coube-me em rifa ser seu assessor.

Os pides consideravam então estar a ser vítimas de uma imensa “injustiça”, seriam totalmente infundadas as inúmeras acusações de torturas e atentados aos Direitos Humanos que sobre eles impendiam, a esmagadora maioria jurava nunca ter feito outra coisa que não fosse estar nas fronteiras a pôr carimbos nos passaportes. Uns anjos, em suma. Poder-se-á dizer que a sua posterior não indiciação quase colectiva pela Justiça provou que tinham razão?

Descontentes com o prolongamento da sua detenção e respectivas condições, mobilizados por um pretexto conjuntural, os pides tomam alguns guardas da Penitenciária como reféns, abrem o “gradão”, a porta de ferro que lhes permite invadir a parte central da prisão, e anunciam que estão “à disposição” do general Galvão de Melo, que acabara de fazer uma polémica e ultraconservadora proclamação televisiva, que lhes terá ressuscitado a esperança de uma libertação rápida.

No auge desta nova crise, o chefe da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, comandante Conceição e Silva, foi de helicóptero ao Algarve, com o seu adjunto Alfredo Caldeira, para tentar obter orientações de Galvão de Melo. Na conversa, o general, enfadado por ver interrompido o concurso hípico da Penina, terá deixado os seus interlocutores de mãos a abanar. Estávamos assim, num domingo à tarde, reunidos no gabinete do director da Penitenciária, a discutir o que fazer a seguir.

Esgotadas algumas hipóteses de solução, o José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete de Galvão de Melo, decide tomar o assunto em mãos: “Eu vou lá dentro falar com os pides. Quem é que quer vir comigo?”. A idade tem destas coisas e a precipitação é uma delas. Por isso, disse de imediato: “Eu vou contigo”. Arrependi-me no segundo seguinte, mas já era tarde: cinco minutos depois estava a seguir a figura alta e corajosa do então major (hoje general) Costa Neves e a entrar no meio de uma chusma de pides, que sabíamos que tinham armas retiradas aos guardas e desconhecíamos se tinham a intenção de também ficar connosco como reféns.

Enquanto o mar de pides se abria como as águas do mar Vermelho, para ambos podermos chegar ao centro da prisão, comigo numa taquicardia de tardio bom senso, recebo um leve toque num ombro e volto-me, sobressaltado. Dou de caras com o “Navalhas”, um colega de escola primária em Vila Real, que eu não via há muito e desconhecia ter escolhido tão distinta opção profissional.

“'Tás porreiro? Então por aqui?”, saiu-me, num registo social, como se o estivesse a encontrar no Rossio, à porta da Suíça. Apertei-lhe a mão, quase caloroso, para me dares ares de confiança bem à vista do grupo, que tinha já cem olhos sobre mim, com o “Navalhas” a retorquir-me: “É verdade! Quem também cá está é o “Bilrau”, mas não aderiu”. O “Bilrau” era também um antigo colega de liceu que, do mesmo modo, eu desconhecia ter enveredado pela prestigiante carreira de pide. E o meu convívio social-pidesco estendeu-se então, com a maior naturalidade, ao ausente “Bilrau”: “Ó 'Navalhas', dá um abraço meu ao 'Bilrau'… e tive imenso prazer em ver-te, pá!”.

Esta rápida sequência de vénias de cordialidade passou-se, aparentemente, sem que o Costa Neves nada notasse, entretido que estava já a lidar com os cabecilhas do motim e a transmitir ao selecto auditório as presumidas orientações de Galvão de Melo. Dez minutos depois, para meu imenso alívio, estávamos cá fora, sãos e salvos. Os pides acabaram por não se render na sequência da nossa esforçada diligência e só foram “convencidos”, horas mais tarde, pela chegada de um pelotão de “fuzos”, os Fuzileiros Navais que o Conceição e Silva mandou vir do Alfeite.

Desde esse inesquecível mês de Agosto de 1974, nunca mais vi o “Navalhas” ou o “Bilrau”. Coitados, com o acordo de Schengen, até ficaram sem fronteiras para praticarem a sua nobre profissão. Eles que só punham carimbos em passaportes...

Política Agrícola Comum

O antigo órgão oficial do Partido Comunista Francês, o L'Humanité, ataca a decisão das autoridades de Paris de obrigar os agricultores franceses a devolverem aos cofres comunitários ajudas indevidamente recebidas entre 1992 e 2002. Juridicamente, não há a menor sombra de dúvida de que estas ajudas falsearam a posição francesa no mercado comum europeu - como o próprio Governo francês não tem dificuldade em reconhecer e o Le Monde esclarece com serenidade.

O que não deixa de ser interessante é ver os comunistas franceses sublinharem o argumentário das associações de agricultores, que vêm agora lembrar outras ajudas que a Europa concedeu, aquando da entrada de Portugal e da Espanha nas então Comunidades Europeias. O "internacionalismo" já não é o que era...

Alguns agricultores franceses parece esquecerem três realidades.

A primeira é que as ajudas recebidas pelos novos aderentes foram a contrapartida natural da abertura desses países aos produtos e agentes económicos europeus - e também franceses -, muitos dos quais repatriaram tais ajudas em lucros e obtenção de quotas de mercado, nos produtos agrícolas, industriais e nos sectores de serviços.

A segunda é a de que um país como Portugal, pela estrutura da sua matriz agrícola e pelo modo como ela foi projectada na negociação da adesão, tem vindo a ser um "contribuinte líquido" da Política Agrícola Comum (PAC), isto é, paga percentualmente mais para o orçamento comunitário do que recebe através das respectivas ajudas no sector.

Finalmente, esses agricultores parece não se lembrarem que a França foi sempre, bem de longe, o maior beneficiário europeu da PAC, política desenhada ao sabor dos seus interesses, muito antes de Portugal ser sequer candidato à integração. E que essas vantagens vão manter-se até 2013, naquilo que foi o curioso acordo em Conselho Europeu que, em 2002, "congelou" mais de 40% do orçamento comunitário até essa data, bem antes de ter sido fixado o orçamento plurianual (2007/2013) da UE.

A posição do Governo francês nesta questão concreta tem sido de um impecável respeito pelas regras comunitárias. E é importante que, de futuro, tudo possa continuar a ser assim, para o que um país como Portugal necessita, mais do que nunca, de uma Comissão Europeia forte, independente e sem medo dos Estados membros. Quem não perceber isto não percebe a Europa.

terça-feira, agosto 11, 2009

Enfim, juntos

José Mário Branco, Fausto e Sérgio Godinho anunciaram três espectáculos conjuntos no mês de Outubro, sob o título de "Três Cantos / Enfim Juntos".

País feliz, Portugal!

segunda-feira, agosto 10, 2009

Memória de Agostos (II) - 1969

O ano de 1969 anunciava-se decisivo. Em Agosto de 1968, Salazar caíra da cadeira. Marcello Caetano substitui-lo-ia no mês seguinte. Começara a “primavera marcelista”, um logro político que parecia evidente para muitos, mas que, para outros, ainda era visto como uma oportunidade a explorar para a mudança no regime.

Nos meios em que, à época, me movimentava, as esperanças na “abertura” marcelista eram nulas. A confirmá-lo, se necessário fosse, estava a “não homologação” ministerial dos resultados da eleição para a direcção associativa universitária, de que eu próprio fazia parte, e que deu mesmo origem a uma divertida reunião com o ministro José Hermano Saraiva (que um dia contarei). Dentre outras movimentações, nesse importante ano político, há ainda que destacar a grave crise académica em Coimbra. O país andava bem agitado.

E iria ficar mais. Em Outubro de 1969, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. Em Lisboa, tinha já andado envolvido em algumas movimentações preliminares, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas da Oposição se separaram. À esquerda, ficava a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e a franjas mais radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade.

Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, sou contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista) para integrar a estrutura local da CDE. Foi um período intenso de reuniões e mais reuniões, redacção de artigos e manifestos, agitação dos meios da juventude, alguma tensão ideológica intergeracional. Mas, algum tempo mais tarde, lá estou eu, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.

Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque amplamente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, eram atenuadas pela necessidade de arrebanharmos todas as vozes contestatárias. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o entusiasmo quase “anarca” do João "Bouquet", a grande alma da logística da CDE de Vila Real. E algumas outras figuras (não éramos muitos…) que não cabe aqui elencar.

Esse mês de Agosto de 1969 e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas, discussões épicas na Gomes (o principal café da cidade), chamadas à polícia, censura de artigos na imprensa, dificuldades nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, colagem de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas por parte de turiferários do regime, a necessidade de fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral preparava então os seus próprios boletins, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar pessoalmente a cada eleitor, porta-a-porta, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.

Foi um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer.

domingo, agosto 09, 2009

Paris Plage

Há alguns anos, o "maire" de Paris, Bertrand Delanoë, lançou aquilo que, à partida, parecia ser uma ideia um tanto louca: criar, durante algumas semanas de Verão, um espécie de zona balnear junto ao rio Sena, reproduzindo um ambiente de "praia". Por lá há areia, jogos, piscinas, locais de lazer, áreas de pic-nic, espectáculos musicais e de circo, brincadeiras para crianças, "bistrots" improvisados e uma imensidão de outras amenidades que garantem grande êxito à iniciativa. Interessante também é o crescente empenhamento nas dimensões ambientais, no favorecimento do acesso às pessoas com deficiência, no apoio à economia solidária.

Paris continua a ser a mais procurada cidade turística do mundo e este tipo de genialidades tem tido um papel importante para ajudar a manter esse estatuto, mesmo em tempos de crise.

Ao passar ontem pela "Paris Plage", não pude deixar de lembrar-me que, afinal, sempre haveria alguma razão para a velha frase do Maio 68: "Sous les pavés, la plage"...

Caçadores Cinco

Ninguém bate os amantes da pesca em exageros. Ou melhor, talvez só os caçadores. Aquele meu colega, um embaixador cordial e sempre bem-humorado, hoje reformado, era, de facto, e ao que se sabia, um excelente caçador. Mas, como todos os seus pares, "pintava" imenso as histórias.

Diplomata em Cuba, há algumas décadas, chegou mesmo a ir à caça com Fidel de Castro, de quem dizia, com alguma sobranceria: "O Fidel disparava muito mal. Até eu lhe emprestar a minha Purdey, nunca conseguiu caçar coisa de jeito...". Mas acrescentava: "Já o Raul, era bem melhorzinho".

A conversa que vou relatar, teve-a esse meu colega com um seu colaborador, que o conhecia há pouco tempo e que, por um acaso, não estava familiarizado com as qualidades de caçador do seu novo chefe.

Um dia, veio à baila, num diálogo entre os dois, o tema da caça e interlocutor inquiriu: "O senhor embaixador caça?!". O nosso homem abriu os olhos, como que escandalizado com o indesculpável desconhecimento que a pergunta revelava, e esclareceu, impante: "Se eu caço?! Essa agora?! Eu sou um dos três melhores caçadores da Europa!".

Porém, meio segundo depois, o embaixador teve uma hesitação: "Espera aí!" O tratamento por "tu" é a sua regra normal de relacionamento, logo que conhece alguém, o que o torna ainda mais simpático. O interlocutor, por um instante, achou que ele ia retratar-se do exagero, que a frase lhe saíra precipitada e que iria moderar a dimensão da sua importância como caçador.

E tinha toda a razão. O embaixador logo rectificou: "Eh! pá, três não, "põe" cinco. É que há dois gajos que não são federados".

A modéstia, quando sincera, mesmo que tardia, é sempre uma enorme qualidade...

sábado, agosto 08, 2009

Raul

Este blogue é pessoal, pelo que entendo que nele há sempre lugar para assinalar aquilo que respeita aos meus amigos. Mas, mesmo que assim não fosse, a desaparição de Raul Solnado teria, obrigatoriamente, que merecer uma nota de destaque.

Solnado foi uma das grandes figuras do humor português, que marcou gerações. Hoje, pelos jornais, rádios e televisões, muitos lembrarão as suas divertidas histórias em disco, as revistas do Parque, o Zip-Zip, a Cornélia, o Villaret e outras tantas aventuras de uma vida rica que a Leonor tão bem descreveu na sua biografia. Pode dizer-se que, com a sua palavra, o Raul acabou por se transformar, por assim dizer, num amigo íntimo de muitos portugueses, ao longo dos muitos anos que lhes entrou em casa. Para os mais novos, há também um Solnado televisivo e o seu magnífico retrato do polícia Covas em "A Balada da Praia dos Cães". E há, ainda, o Solnado da Casa do Artista, uma obra grande a que tanto se dedicou. E gostava de notar que, no Brasil, por onde andei uns tempos, encontrei sempre um imenso respeito em torno do nome de Raul Solnado - um dos poucos nomes da cultura contemporânea portuguesa que lá dispõe de grande popularidade.

Uma nota mais pessoal. Há muitos anos que o Raul era um dos nossos comparsas da "mesa dois" do Procópio, esse bar lisboeta onde actualizamos o país, numa tertúlia assumidamente irresponsável, marcada pela ironia e pela amizade. Tive a honra de ser, com ele e outros, co-autor da "biografia" editada do Procópio, onde procurámos desenhar as décadas de boa disposição que o "Retiro da Dona Alice" nos proporciona e a que o Raul tanto ajudou. Tivemos o Raul como integrante dos jantares que, em cada Dezembro, juntaram o pessoal da "dois" e que, este ano, se irá fazer sem ele. Na "dois", onde fica para sempre o seu retrato, desenhado pelo Chico Caruso, vamos agora perder, pelas noites, as suas belas historietas. E, mais do que isso, a sua amizade e ternura. Sem o Raul, as coisas passam a ter muito menos graça.

sexta-feira, agosto 07, 2009

O chapéu

Uma das rotinas mais interessantes dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi, durante muitos anos, o chamado "correio de gabinete". Tratava-se de transportar uma mala diplomática, portadora de documentos de elevada confidencialidade, função de que eram quase sempre encarregados os diplomatas mais jovens. Todas as semanas, um funcionário circulava entre várias capitais, levando consigo uma pasta, fechada com selos de chumbo. Era normalmente pequena, mas também podia acontecer ter dimensões bem maiores, sendo nesse caso complicado (embora sempre obrigatório) assegurar o seu transporte na cabine dos aviões, nunca perdendo o volume de vista.

O roteiro de quem ia "de mala" foi variando, em função de diversos factores e conjunturas. Na Europa, recordo ter-me deslocado, por mais de uma vez, a Londres, Bruxelas, Viena e até a Belgrado. Madrid, Paris e Estocolmo, se bem me lembro, também foram abrangidas pelo circuito deste tipo de "malas acompanhadas". Viena era o centro de contacto com as nossas embaixadas das capitais "comunistas" e os colegas nelas colocados estavam sempre ansiosos para dar um salto à capital austríaca, para buscar ou trazer essa correspondência. Fora da Europa, ia-se a Nova Iorque e a Washington.

Há que confessar que era uma tarefa bastante agradável: uma semana de dispensa de serviço e uma viagem, com ajudas de custo, por cidades simpáticas, embora um pouco numa correria (em Londres ficava-se um dia mais e eramos alojados num pequeno quarto, no edifício da chancelaria). Embora houvesse como que uma escala na atribuição deste encargo, existiram sempre, no Ministério, os chamados "papa-malas", que tinham meios de obter informação prioritária sobre a indisponibilidade pontual dos funcionários escalados e, de imediato, se voluntariavam para os substituir. Às vezes, chegado o bom tempo, até diplomatas bem mais velhos, já mesmo conselheiros de embaixada, faziam um pouco discreto lóbi para "irem de mala", pela vontade de efectuarem uma bela viagem à custa do erário.

Hoje, vistas as coisas à distância, tendo a concordar que uma das vantagens concretas desta instituição dos "correios de gabinete" , num tempo em que se viajava muito menos, era ajudar a aculturar os jovens diplomatas com o mundo exterior, ainda antes de serem colocados no seu primeiro posto.

A história que vou contar, verídica e clássica nas Necessidades, passa-se em Lisboa, numa determinada repartição, creio que no início dos anos 60.

Um velho e prestigiado embaixador está à conversa numa sala onde trabalham diversos diplomatas. A certo momento, fica a saber-se que um dos jovens secretários presentes vai "de mala" na semana seguinte. O rumo da conversa, por uma qualquer razão, deriva para a questão dos trajes e fala-se de usar ou não do chapéu. O embaixador volta-se, então para o jovem secretário que irá "de mala" e inquire: "E o colega, usa chapéu?".

Ser tratado por "colega" por um embaixador "chevronné" era uma distinção que, à época, deixava os mais novos orgulhosos e, desde logo, quase obsequiosos. O rapaz, um tanto aturdido, responde que ainda não, que nunca tinha usado chapéu. O embaixador, experiente, adianta: "Meu caro amigo, usar chapéu, na Carreira, não é obrigatório. Mas é um hábito que fica sempre bem, que dá muita classe. Se o meu amigo quer um conselho, compre um chapéu. Vai ver que, em algumas ocasiões, isso lhe dará uma grande elegância".

Seduzido pela atenção que lhe era dispensada por tão alta figura da "Casa", o jovem diplomata deixa escapar que, pensando bem, vai acabar por comprar um chapéu. Aliás, recorda-se que até já tinha pensado nisso, mas nunca se tinha decidido, em definitivo. Mas agora, "já que o senhor embaixador recomenda", vai mesmo comprar um.

Nesse instante, o embaixador exclama: "Olhe lá! Lembrei-me agora: você vai a Londres! Não há melhor cidade do mundo para chapéus. Mais do que isso: estamos na época dos saldos! E, em Londres, onde você encontra estupendos chapéus é no Bates, ali na Jermyn Street. São magníficos! Porque não aproveita? Você vai estar lá dois dias, dá uma saltada ao Bates e compra um chapéu".

O jovem secretário sente-se impulsionado, entre o rápido convencimento e uma subliminar intimidação, e concede: "De facto, é uma boa ideia. Vou passar por lá e compro um chapéu.". "Faça isso, homem, faça isso, é uma bela oportunidade!", diz o embaixador, dando ares de se encaminhar para a porta de saída da sala.

De repente, porém, o embaixador estaca. E, voltando-se para o jovem colega, inquire: "Então você vai mesmo comprar o chapéu?". "Vou, vou" diz o outro, já num tom entre o decidido e o resignado, começando a estranhar a insistência. Aí, o velho diplomata lança-lhe: "E vai ao Bates? Excelente! É, de facto, a melhor opção! Aliás, dá-se uma coincidência curiosa, de que agora me recordo: eu tenho um chapéu encomendado, precisamente no Bates. Se o colega lá vai comprar o seu, podia levantar o meu chapéu e trazer-mo. Já está pago. Tem aqui talão. Fico-lhe muito grato...."

Guantánamo

Concretizando a disponibilidade anunciada em Dezembro de 2008. no sentido de poder receber prisioneiros detidos no campo americano de Guantánamo, na ilha de Cuba, sobre os quais não impendessem acusações susceptíveis de serem presentes à Justiça, o Governo português acaba de divulgar que vai acolher, no seu território, dois cidadãos de nacionalidade síria.

No comunicado há momentos emitido, Portugal anuncia que vai conceder a estes dois ex-detidos um visto especial, no quadro da sua legislação nacional. E adianta que o encerramento de Guantánamo, onde a anterior administração americana encerrou os "combatentes inimigos" a quem se recusava conceder os direitos previstos nas Convenções de Genebra, é "uma vitória para todos os que defendem e promovem o respeito pelos Direitos Humanos no quadro da luta contra o terrorismo".

Gostava de recordar que o Governo português foi o primeiro, no seio da comunidade internacional, a anunciar a sua disponibilidade de ajudar os Estados Unidos da América a pôr fim à base de detenção de Guantánamo.

Com este gesto, Portugal demonstrou saber assumir plenamente as suas responsabilidades políticas no quadro internacional e, em especial, os interesses da comunidade política e de valores que regem a relação transatlântica.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Benfica

Num jogo desta sua (excelente) pré-temporada, o Benfica fez alinhar, ao que parece pela primeira vez na sua história, 11 jogadores estrangeiros. Nada a dizer, num domínio em que a nacionalidade já hoje é praticamente irrelevante, salvo no caso das naturalizações oportunistas para integrar selecções nacionais.

Só que o caso do Benfica tem, apesar de tudo, uma característica diferente. Durante muitas décadas, a equipa da Luz orgulhava-se de nunca ter recrutado jogadores estrangeiros e terá sido, em Portugal, a última a abandonar essa prática. É claro que eram outros os tempos, tempos em que o pé-de-obra colonial trazia por aí Eusébios, Colunas ou mesmo Costa Pereiras, quase a preços de saldo. A "exploração colonial" tinha estas dimensões mais benévolas.

Neste contexto, seria agora interessante reflectir sobre o que significa este fenómeno da adesão a um emblema, seja quem for que o esteja a representar. Trata-se de um curioso mas complexo processo de construção de afectividade, que deriva de uma total irracionalidade, embora favorecida por factores de natureza conjuntural (região, família, grupos). Aliás, a prova mais irrefragável dessa mesma irracionalidade, assumida frequentemente com ares de seriedade, é detectável na substância do "argumentário"- esse sim, caricatural e supostamente racional - com que o facciosismo pretende explicar as motivações profundas de uma qualquer opção clubística.

Este é um tema fascinante, com a única garantia de ser, como sabemos, o início de uma discussão sem fim.

quarta-feira, agosto 05, 2009

Música

Já tinha dado por isso, em anteriores ocasiões, mas só na passada segunda-feira senti vontade de sentar-me, com alguma calma, para apreciar a música ao vivo que o belo Aeroporto do Porto oferece aos seus utentes.

Naquele ambiente por regra agitado, onde intimamente vivemos na permanente angústia de poderem ter mudado a hora e a porta de embarque, em que somos tentados a queimar tempo e dinheiro com uma nova revista internacional que (não) vamos ler ou com a compra de um perfume que (não) nos faz falta, que bom que foi perder (ou ganhar, depende da perspectiva) um quarto de hora para ouvir dois intérpretes de música portuguesa.

Curiosamente, tive muitos poucos companheiros nesta sessão, com a maioria dos passageiros a olharem à distância, como que desconfiados e temerosos de que, no final, lhes viessem estender um boné para recolha de moedas.

Da próxima vez que um atraso me apanhar no Porto, lá estarei à espera que me dêem música. Desta vez foi uma guitarra e uma viola, há meses ouvi por lá jazz e há ainda no local um piano que abre interessantes pespectivas. Humanizar lugares por natureza desumanos é uma nobre iniciativa.

Portugueses


Fui ontem a Limoges transmitir um abraço de solidariedade aos nossos compatriotas que aí estão hospitalizados, na decorrência do terrível acidente de viação que, no sábado, matou cinco pessoas, entre os quais um cidadão holandês, e deixou um grande número de feridos, alguns deles ainda em situação delicada. Antes de partir de Paris, fui avisado de outro acidente, poucas horas antes, com mais um morto e muitos feridos, desta vez na zona de Bordéus.

Este tipo de ocorrências tornou-se quase como uma sina anual dos nossos emigrantes, no seu regresso sazonal ao país. Ao longo de décadas, um imenso número de portugueses deixou o seu sonho de vida, e o dos seus familiares, pelas estradas de França, Espanha e Portugal, por razões diversas, e às vezes cumulativas, que vão desde a velocidade, a imperícia, o cansaço e outros estados físicos impróprios para a condução, bem como deficiências nas viaturas.

Campanhas de advertência têm sido levadas a cabo por entidades francesas ou da comunidade portuguesa - como foi o caso da "Cap Magellan" -, mas os seus efeitos são sempre limitados. É que alguns pensam que estas coisas acontecem apenas aos outros.

À noite, no meu regresso de Limoges, desembarquei na Gare de Austerlitz. E não pude deixar de lembrar-me que estava a chegar a Paris pela mesma estação ferroviária onde, há algumas décadas, muito provavelmente, haviam desaguado, pela primeira vez, alguns daqueles que agora desapareceram. Ironias deste destino português em França.

terça-feira, agosto 04, 2009

Memória de Agostos (I) - 1967


Uma derradeira boleia deixou-me na Porte d’Italie. Nessa manhã, tinha partido de Blois, depois de cinco dias com diversas paragens, condicionadas pelas disponibilidades de transporte. O mapa de Paris que trazia comigo, obtido no turismo francês em Portugal, era o então conhecido “Paris à vol d’oiseau”, com desenhos dos prédios e um recorte do centro da cidade que nos dava a ilusão de podermos “conhecer”, por antecipação, os monumentos e artérias principais. Mal eu sabia, ao chegar à Porte d’Italie, que a capital francesa era muito e muito mais do que isso. E ainda hoje continuo a aprender...

Eu havia preparado, com muito cuidado, essa minha saída de férias pela Europa, depois de um ano académico pouco feliz. A boleia era então um método de viagem muito comum, particularmente para quem tinha menos de 20 anos e queria conhecer o mundo europeu, sem grandes encargos, com uma mochila às costas. O Inter Rail estava para ser inventado e os tempos que então se viviam eram suficientemente calmos para gerar confiança em quem nos abria, com simpatia, as portas das suas viaturas. E, pela parte de quem solicitava boleia, o sentimento de segurança era quase generalizado. Nessa que foi a primeira de algumas viagens do género que fiz pela Europa, o meu objectivo era ir de Portugal à Noruega, com Paris como uma incontornável escala.

Cheguei aqui no dia 4 de Agosto de 1967, faz hoje precisamente 42 anos. Lembro-me de nesse dia ter apanhado, creio que pela primeira e última vez, um daqueles autocarros com uma plataforma aberta nas traseiras, que agora só se vêem nos filmes. Descobrir lugar para uma dormida compatível com aquilo que tencionava gastar, numa tarde de um Agosto turístico, revelou-se uma tarefa muito difícil. Corri “seca e meca”, mas todos os “auberges de jeunesse” que os livros indicavam estavam mais que cheios. E o final da tarde aproximava-se.

Foi então que alguém me falou do Centre International de Séjour, na Porte de Vincennes. De metro, fui lá parar, defrontando-me logo com uma fila de espera considerável. O processo de registo era assegurado por dois funcionários, cujo gesticular revelava já um certo cansaço, seguramente provocado pela pressão e pelo calor intenso do dia. Longos minutos decorreram e a fila pouco andava. A certo passo, um dos funcionários soltou uma sonora e impublicável imprecação… em castiço português. Não resisti e, lá de trás, do fundo da fila, mandei-lhe um “boa tarde”. O homem olhou-me à distância, com cara de poucos amigos, mas logo lançou, num berro: “Você aí! Avance!”. Um tanto atrapalhado, ultrapassei a longa fila, com imensa gente a protestar, a caminho do balcão. O nosso patrício, com uma lata incomensurável, mas bem olímpico no seu desplante, limitou-se a informar os contestatários, bem alto, desta vez em francês, da óbvia evidência: “Este senhor tem reserva!"

Não seria esta a última vez que ser português me traria vantagens na obtenção de dormida em Paris.

"Quem quer regueifas?"

Sou de um tempo em que, à beira da estrada antiga entre o Porto e Vila Real, havia umas senhoras a vender regueifas. Aquele pão também era p...