segunda-feira, agosto 24, 2009

Tintin no País dos Censores

Uma biblioteca de Nova Iorque remeteu o álbum "Tintin no Congo" para uma área que necessita de uma autorização especial para consultas, sujeita a dias de demora. Já há uns tempos, algumas livrarias inglesas haviam decidido colocar tal álbum na área de vendas de adultos. No essencial, o trabalho de Hergé é hoje considerado como tendo conotações racistas. O que é, seguramente, uma verdade.

Toda a gente sabe que Hergé, para além do facto de ser um criador genial, era uma figura hiperconservadora. O seu pensamento era mesmo tributário de ideologias próximas da extrema-direita e a sua memória histórica pagou e paga um preço por isso. Mas não me consta que, em qualquer país livre, o anti-comunismo pré-primário do seu "Tintin no País dos Sovietes", tenha levado alguém a pensar colocá-lo no index, por ofender os sentimentos dos comunistas ou as relações com Moscovo - e aí, com toda a certeza, nunca o álbum esteve à venda...

Este esforço de alguns para nos defenderem de nós próprios, esta desconfiança sobre a nossa capacidade autónoma de julgamento, esta ideia de que não somos capazes de contextualizar ou ajudar a situar historicamente uma obra - tudo isto começa a converter-se numa insuportável tutela de coloração bem pensante, francamente irritante. Os exemplos são cada vez mais, pelo mundo fora, havendo como que uma passiva aceitação, quase sem reacções, deste tipo de atitudes censórias, uma espécie de temor reverencial, de que o banimento de imagens de figuras a fumar é talvez o caso mais paradigmático, como por aqui já referi outras vezes.

Neste contexto, vale a pena deixar uma história que, estou certo, a maioria dos leitores deste blogue desconhece.

Quando o "Tintin na América" começou a ser publicado em Portugal, no saudoso "Cavaleiro Andante", um dos seus primeiros quadros (senão mesmo o primeiro), apresentava a caricatura de um "gangster", de chapéu caído, figura rotunda e ar descarado, com o comentário à margem de que, naqueles tempos, tais personagens se passeavam livremente por Chicago.

Anos mais tarde, ao ler o álbum original, fiquei com a sensação de que havia uma qualquer diferença entre a imagem que eu vira no "Cavaleiro Andante" e a que o álbum completo trazia. E fui verificar: de facto, no álbum original, ao lado do "gangster", aparecia um polícia fardado a fazer-lhe continência. Ora o Estado Novo - "politicamente correcto" à sua maneira e cioso protector das nossas consciências - não quis deixar admitir que um agente de autoridade pudesse saudar um bandido , pelo que fez "desaparecer" o polícia do desenho publicado no "Cavaleiro Andante".

Cada um tem a sua paranóia. Mas, num mundo em liberdade, isto começa a ser demais!

9 comentários:

Miguel Gomes Coelho disse...

Para seu conhecimento, o "Vermelho Cor de Alface", nomeou-o para o selo "Este Blog é viciante...".
Saudações.

Jorge Pinheiro disse...

Será que o "TT no País dos Sovietes" foi proibido na URSS?

Francisco Seixas da Costa disse...

Há alguma dúvida?

Helena Oneto disse...

Partilho totalmente a sua reacçao. Devemos continuar vigilantes e reagir sempre que necessario para preservar a liberdade de expressao.
Obrigada pelos diversos "alertas" que nos da neste blog.

Bien à vous
Helena Oneto

Anónimo disse...

Obviamente que para quem pode esperar, embora reduzida a acessibilidade, aumenta o interesse da obra através da curiosidade do fruto proibido.
È assim uma das formas em que se desvanece a pseudo atitude pedagógica.
Também acho que começa a haver confusão com as fronteiras do abuso de liberdade da censura insidiosa.
Isabel seixas

Pedro disse...

Liberdade, onde andas tu?
saudosa, pelos álbuns do Quino, a amiga da Mafalda, uma nossa amiga saudosa...

perdoe-me o "trocadilho"... ai Liberdade

Jorge Pinheiro disse...

Nenhuma. Era só para comparar os "valores censórios".

manuel cunha disse...

De facto, esta atitude esquizofrénica de considerar o cidadão comum "maior e vacinado" para certas coisas, mas privado de bom senso para outras, ainda nos vai trazer muitos dissabores.

Helena Sacadura Cabral disse...

Muito obrigada, uma vez mais, por nos alertar para as paranóias que começam a grassar à nossa volta e que dão à palavra "liberdade" um sentido, por vezes, lamentável.
A liberdade aprende-se. Na prática. Não apenas no discurso. Destes, está o inferno cheio!

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