No jargão das Necessidades, chamava-se EAA. Era a “repartição” da direção-geral dos Negócios Económicos dedicada às relações com os países da África, Ásia e Oceania. Um mundo! Fui lá cair em maio de 1976, depois de ter estado colocado alguns meses no Gabinete Coordenador para a Cooperação, onde se iniciavam as nossas relações de cooperação com as ex-colónias.
Acabado de entrar na carreira diplomática, em agosto de 1975, ao ser-me perguntado que colocação interna pretendia (o recente 25 de abril permitia essa gentileza formal), referi por escrito que queria ir para o serviço de cifra (que tratava das comunicações e exigia grande confidencialidade) ou para o que tratava das relações com a NATO (onde o secretismo era ainda maior).
Era uma aberta provocação da minha parte: tinha estado nomeado para o gabinete do MNE do 5° Governo provisório (o governo mais à esquerda da história portuguesa) e, antes disso, tinha andado por áreas radicais do MFA. Ao tempo, imediatamente pós-25 de novembro, era olhado nos corredores das Necessidades como um temível esquerdista, ideia ajudada pelo cabelo comprido, o farfalhudo bigode e a minha inicial relutância em usar gravata. Eu não tinha a menor ilusão de que ninguém me mandaria para nenhum daqueles dois serviços!
Na EAA, onde estive três anos, tive três chefes, com quem sempre me dei lindamente. Os dois primeiros foram breves, tendo o terceiro ficado cerca de dois anos. Este último era um homem suave, de voz baixa, sorridente, um estilo de chefe com quem era muito agradável trabalhar. Politicamente era bastante conservador, mas isso não destoava da tendência esmagadoramente maioritária na casa.
Notei que, logo que chegado, o novo chefe quis fazer um inventário escrupuloso do modo como as coisas funcionavam por ali. E elas funcionavam bem. Deve ter percebido que nós trabalhávamos bastante e de forma dedicada, que não havia o menor atraso, que a repartição não lhe ia criar quaisquer problemas.
Desde o início, porém, eu havia notado que manifestara forte curiosidade a meu respeito e de um outro colega - sobre a nossa vida, sobre os nossos gostos, etc. E registei que, por uns meses, esteve particularmente vigilante quanto ao nosso trabalho. Mas tudo sempre em modo sereno e educado. Depois, deu-nos completa autonomia, confiando plenamente em nós. E criámos um ambiente de trabalho excelente.
Passaram muitos meses. Um dia, eu e esse meu colega fomos colocados no estrangeiro, deixando o nosso chefe para trás. Pouco tempo depois, ele próprio seria colocado algures como embaixador. É sempre assim, na carreira.
Decorreram entretanto muitos mais anos. Já não sei onde e como, voltei a encontrar esse meu antigo chefe, de quem ficara amigo e que me fez então uma curiosa confissão: “Quando fui chefiar a EAA, foi considerada uma “missão de risco”. Porquê? Porque você e o outro colega estavam lá. Nem imagina os alertas que recebi! Que eram dois comunistas, gente perigosíssima, que era preciso vigiar com muito cuidado!” Para logo acrescentar: “Mal eu sabia que não iria ter o menor problema, que vocês eram funcionários dedicados e cumpridores, que tudo ia correr às mil maravilhas!”
Não resisti a perguntar-lhe: “E quando é que concluiu que nós não éramos comunistas?”. A resposta foi deliciosa: “Eu, de início, não cheguei a perceber se vocês eram ou não eram comunistas. Mas posso dizer uma coisa: por essa altura, no contacto convosco, cheguei a pensar que se todos os comunistas fossem como vocês, então os comunistas não eram assim tão maus...”
(Dedico este texto aos colegas da EAA: ao Mário Santos, "comunista" como eu, ao Ina Amaral Neto, que cedo desistiu de nos aturar e foi ganhar o seu, ao Malheiro Dias, que nos trouxe a alegria e o gesto largo das andanças sul-americanas, à memória do Ribeiro Gomes, companheiro inesquecível de comezainas e bebezainas e, "last but not least", à nossa benjamim e beleza inspiradora da repartição, a Ivone Carvalho, que, com outro nome, me apareceu por este facebook e me sugeriu este post)