Há algo de estranho na maioria das sondagens que aí andam. No passado, a posição relativa dos vários partidos era a medida seguida. Hoje, o PS já não é comparado com o PSD, mas é medido face à soma do PSD com o CDS. Dir-se-á que isso é natural, dado que a coligação foi renovada. Só que esse método de análise esconde, por exemplo, que o principal partido da oposição está com uma apreciação popular muito acima do partido que indicou o primeiro-ministro que agora está em funções. Repito: não é inocente que as sondagens não comparem PS com PSD - isso faz-se deliberadamente para desvalorizar a circunstância do PS estar, em termos de sondagens, a uma distância do PSD que é quase histórica, nas últimas décadas. Os céticos desta leitura regressarão à luta, retorquindo: mas é ou não o somatório dos dois partidos da coligação que realmente conta para formar governo? Eu respondo: sim. Só que há um pequeno pormenor de que muito poucos falam: é que a coligação só pode governar se tiver maioria absoluta - e não há nenhuma sondagem, mesmo as mais otimistas, que aproximem, ainda que minimamente, a coligação do limiar dessa maioria absoluta, isto é, 44/45% dos votos. E aqui as coisas são muito claras: se a coligação não tiver maioria absoluta, não pode nunca formar governo, porque é óbvio que nenhum partido da atual oposição irá viabilizá-lo. Já o mesmo problema não deverá ter o PS se, por si só, não obtiver maioria absoluta, dado que, potencialmente, para ver um seu governo aprovado, lhe basta contar com a abstenção de partidos à sua esquerda. É claro que os mais céticos ainda poderão argumentar: o PCP e o Bloco não se aliaram à direita em 2011 para derrubar o governo PS de então? É verdade. Mas alguém acha que o fariam agora, para renovar esta maioria, imediatamente após terem feito uma campanha contra ela? Dei comigo a pensar nisto. Mas posso estar errado, claro.
quarta-feira, maio 20, 2015
terça-feira, maio 19, 2015
O Acordo poderia ter duas linhas...
Um amigo que muito prezo, escreveu um texto delicioso sobre o Acordo Ortográfico, sob o título em epígrafe, que lhe pedi que me deixasse publicar por aqui. Ele aí vai:
"Para
que fique bem clara a minha posição sobre o Acordo Ortográfico: percebo que este
dispositivo interesse aos Ministérios dos Negócios Estrangeiros para dar uma
imagem de cooperação entre os países de língua portuguesa. Se tivesse sido eu a
escrevê-lo, teria a seguinte formulação:
Artigo
único:
Reconheçam-se como válidas, em todos os
países da CPLP, as normas ortográficas em vigor nos restantes países.
Esta
formulação permitiria que o uso de qualquer variante ortográfica não pudesse
ser penalizado ou considerado ilegítimo em qualquer país de língua oficial
portuguesa ou em qualquer contexto de uso da língua.
Esta
não foi a opção de quem negociou o Acordo Ortográfico, tendo sido preferida uma
versão que tenta unificar a ortografia.
Quem
me conhece sabe que não consegue arrancar de mim nenhuma posição inflamada a
favor ou contra o Acordo Ortográfico. Sei que a ortografia é uma mera
convenção, que nenhuma versão da nossa ortografia foi coerente entre
transparência ou etimologia e que esta e outras versões de instrumentos de
normalização ortográfica têm problemas técnicos já assinalados por vários. Não
me parece que a versão 1990 seja pior ou melhor do que a versão 1945 – basta
pensar no uso do hífen. É apenas uma convenção – o facto de “hospital” se
escrever com em português e sem em italiano não tem
qualquer consequência.
Sempre
que sai uma notícia num jornal sobre o Acordo Ortográfico, surgem centenas de
comentários de leitores que, horrorizados, listam os horrores do Acordo
Ortográfico em mensagens pejadas de erros ortográficos.
Ouvia,
há tempos, alguém que tinha escrito “nada a opôr [sic]” vociferando que não
retirava o acento circunflexo, porque se recusa a escrever com o Acordo
Ortográfico, que sempre escreveu assim e não vai mudar!
O
mesmo, tal e qual, ouvi de alguém que, num programa de rádio, dizia: “não é por
causa dos brasileiros que vou tirar a cedilha de vocês”!
A
obsessão com a ortografia e tudo o que se diz sobre o seu impacto no mundo é a
consequência de uma escolarização em que as produções escritas são, tradicionalmente,
corrigidas em função de desempenhos temáticos e ortográficos. Coesão e
coerência, conformidade com sequências textuais ou explicitação de regras de
pontuação são dimensões da escrita a que a escola nunca prestou a devida
atenção, que justificam muitos problemas de escrita (e leitura) e que explicam
que se dê tanta importância à ortografia.
Tratando-se
apenas de uma convenção, a ortografia não gera penalizações. Se eu escrever a
minha lista de compras para o supermercado com inúmeros erros, ninguém saberá
e, mesmo que saiba, nada acontece. Só no sistema educativo é que há penalização
do erro e é interessante verificar que a introdução do Acordo Ortográfico no
sistema educativo se deu sem problemas.
Se é
verdade que a ortografia é uma mera convenção e que quem redigiu o Acordo visou
uma unificação da ortografia, também é verdade que qualquer pessoa minimamente
informada sobre as variantes do português deveria saber que as diferenças
fundamentais entre o português usado em Portugal, no Brasil, Angola, Moçambique
não estão na ortografia. Tente-se escrever um texto em conjunto com um colega
brasileiro e veja-se como se tropeça em cada linha. Há um evidente
desconhecimento da língua portuguesa na génese de algumas decisões políticas, o
que é confrangedor.
Passados
vinte anos sobre a criação deste Acordo, não são ainda evidentes os passos
claros que a CPLP está a dar para uma eficiente política de língua. Para dar
apenas um exemplo, ainda não se vislumbra uma política comum sobre o ensino de
português no estrangeiro.
Dito
tudo isto, alguns amigos que conhecem esta minha posição (ou ausência de
posição), perguntam-me se uso ou não o Acordo Ortográfico. Comecei a usar no
dia em que li um arrazoado de argumentos nacionalistas e de comentários
racistas sobre os restantes países da CPLP a propósito do Acordo Ortográfico.
Pensei que não queria ser identificado com aquele tipo de argumentação e nesse
mesmo dia passei a utilizar, sem grande dificuldade, a nova convenção
ortográfica (nunca senti aquela insegurança de que alguns falam, dizendo “Agora
não sei como se escreve”).
Passados
alguns meses, participei numa reunião em que, em defesa do Acordo Ortográfico,
ouvi um eminente académico tecer comentários absolutamente nacionalistas e a
rasar o racismo... Fiquei sem saber o que fazer e, pela primeira vez, me
deparei com a hesitação de não saber como escrever.
Cresce
em mim a vontade de reagir de forma adolescente e não usar o Acordo quando
escrevo àqueles que o defendem ferozmente e usar quando escrevo aos que são violentamente
contra. Mas, por vezes, tenho de escrever a ambos e, nessa altura, penso: isto
é apenas uma convenção, para quê gastar tempo a pensar no assunto?
Se
se tivessem ficado pelas minhas duas linhas, ter-se-ia poupado muito tempo...
João
Costa
PS:
Ao reler o texto, apercebo-me de que, por vezes, o Acordo Ortográfico não tem mesmo
importância nenhuma na forma como se escreve. E garanto que não foi
intencional.
segunda-feira, maio 18, 2015
Embaixadorias
O meu amigo Ascenso Simões publica hoje no jornal "i" um artigo sobre a nossa diplomacia. Nele escreve algumas coisas com que concordo e outras de que discordo. É a vida.
(Tenho com Ascenso Simões cumplicidades antigas. Na cidade de onde ambos somos originários, há 18 anos, partilhámos uma aventura política numa candidatura ao município. Ele para presidente da Câmara, eu para presidente da Assembleia Municipal. Fomos ambos derrotados. No meu caso, por Passos Coelho ... pai!)
Uma das ideias que avança no seu artigo, porém, não apenas merece apenas a minha discordância como convoca a minha profunda rejeição. Vou transcrever o que escreveu:
"A perda de valor da CPLP deve assustar os próximos governos, deve implicar uma nova parceria entre Portugal e o Brasil, por assumir parte fundamental da penetração, na Europa e nas Américas, do poder lusófono. Esta realidade deveria elevar a nossa representação em Brasília. Se as diplomacias de outros países revelam a permissão de agentes fora da carreira, tendo em conta o posto e a estratégia para cada região, Portugal deveria poder assumir a nossa representação no território onde mais falantes de língua portuguesa se revelam, através da consagração do lugar a um antigo Presidente da República ou um anterior primeiro-ministro".
Três comentários.
O primeiro para sublinhar, sem mais delongas, que a nossa "representação em Brasília" não tem estado ao nível das exigências de Ascenso Simões. Tomo a devida nota, no que pessoalmente me toca.
O segundo para registar que um qualificado militante socialista entende que o corpo profissional de que a diplomacia portuguesa hoje dispõe não está à altura das exigências de projeção da nossa política externa, pelo que seria necessário um "reforço", quiçá vindo de hostes político-partidárias. Constato assim que, do seio do PS, emerge, uma vez mais, o tropismo para a nomeação de "embaixadores políticos".
Um terceiro comentário. Ao localizar esta aparente exceção na "nossa representação no território onde mais falantes de língua portuguesa se revelam", Ascenso Simões mostra algum pragmatismo e alarga, com generosidade, o âmbito de recrutamento: de facto, qualquer político português possuiria o requisito linguístico indispensável para o exercício do cargo. Valha-nos isso!
Um quarto e último comentário.
Um antigo presidente da República? Sabe Ascenso Simões que a lei não permite que ninguém permaneça no serviço diplomático no estrangeiro depois dos 66 anos? Eanes, Soares, Sampaio e Cavaco já passaram esse limite etário, como sabe. Muda-se a lei? Vale tudo?
Um antigo primeiro-ministro? Balsemão também passou a fasquia etária, Guterres acaba de lá chegar. José Sócrates, por óbvias razões, parece excluído das contas de Ascenso Simões. Restam Durão Barroso, Santana Lopes e Passos Coelho. Venha o Ascenso e escolha... Fico curioso!
Dirão alguns que este post é inoportuno. Talvez seja, tal como entendo que o artigo o foi. Porém, comigo, já deviam ter aprendido: quem se mete com o MNE leva!
O Marquês, o Benfica e as televisões
A festa benfiquista no Marquês de Pombal redundou num espetáculo triste, com alguma violência e vítimas.
No entanto, estando longe de ser benfiquista, devo dizer que acho lamentável que a generalidade das televisões informativas tenham ajudado à "glorificação" da ação de alguns energúmenos que se dedicaram a estragar a alegria de outros.
Sei que o "dever de informar" impunha a cobertura dos distúrbios, mas talvez fosse igualmente ser dever das estações de televisão, numa noite tão importante para os adeptos do mais popular clube de Portugal, cuidar em dar conta da felicidade de muita gente que, por esse país fora, saudou, em ordem e com gosto, o bi-campeonato do Benfica. Passar horas a cobrir desordeiros de garrafas na mão e polícias a persegui-los pode ser um bom espetáculo televisivo, mas é um modelo de jornalismo que há esquece que há mais Benfica para além dos incidentes do Marquês.
No entanto, estando longe de ser benfiquista, devo dizer que acho lamentável que a generalidade das televisões informativas tenham ajudado à "glorificação" da ação de alguns energúmenos que se dedicaram a estragar a alegria de outros.
Sei que o "dever de informar" impunha a cobertura dos distúrbios, mas talvez fosse igualmente ser dever das estações de televisão, numa noite tão importante para os adeptos do mais popular clube de Portugal, cuidar em dar conta da felicidade de muita gente que, por esse país fora, saudou, em ordem e com gosto, o bi-campeonato do Benfica. Passar horas a cobrir desordeiros de garrafas na mão e polícias a persegui-los pode ser um bom espetáculo televisivo, mas é um modelo de jornalismo que há esquece que há mais Benfica para além dos incidentes do Marquês.
Carnide em festa
O Benfica ganhou o "campeonato". Sejamos justos: este ano mereceu ganhar. Mesmo se, aqui ou ali, foi ajudado por um "sistema" que hoje muito influencia, aconteceu agora ao clube de Carnide (a imagem é do largo principal do estimável bairro onde se situa a agremiação) o mesmo que, muitas vezes, ocorreu com o seu rival do Norte, isto é, ganharia mesmo se não tivesse tido essas ajudas.
"Cá dentro", não gosto que o Benfica ganhe nada, confesso. (Lá fora, fui fã entusiasmado do grande Benfica dos anos 60, "puxei" por eles numa final europeia frustrada em Stuttgard e não me recordo de ter vibrado nunca com as suas derrotas internacionais). Sei que não estou a dar nenhuma surpresa a ninguém com esta minha declaração de interesses. Como os meus amigos "encarnados" também sabem, para mim, entre o Porto e o Benfica, "venha o diabo e escolha". Mas se alguém tiver que ganhar, que não seja o Benfica, claro. O qual, às vezes, lá ganha.
Uma palavra sobre o treinador do Benfica. Jorge Jesus é uma figura patética, na expressão, na imagem e no que representa, naquela arrogância saloia, cabelo corado "à poeta", que, às vezes, irrita menos do que a pena e o ridículo que induz. Mas, uma coisa é bem certa: sabe imenso de futebol. É um grande treinador, há que reconhecê-lo, coisa que andei (erradamente) muito tempo para fazer. Ao seu lado tem um presidente do clube que é também um inenarrável "cromo", com um ar sempre a armar ao sério e ao "grave", a que, na minha terra, se qualificaria de ar de "polícia da Régua". (Já sei que o presidente do meu clube, um tal Carvalho, não é melhor e tem, além disso, o defeito acrescido de não pôr a equipa a ganhar. Mas sobre essa figura já falei quanto baste). Mas - e aqui volto a elogiar - o tal presidente-cromo demonstrou, em várias ocasiões, nomeadamente quando conservou Jorge Jesus no clube, contra tudo e contra muitos, que sabia o que fazia.
Por tudo isto, e em síntese, parabéns ao Benfica pela justeza da sua vitória, reconhecimento à qualidade do seu treinador e do seu presidente, um abraço aos meus amigos benfiquistas e aos habitantes de Carnide, bairro que muito honram. No dia de hoje estão contentes "que nem uns cucos", mas eu ficaria mais satisfeito se o não estivessem, desculpem lá! Aqui por Lisboa, irão para o Marquês comemorar. Sempre sob olhar, complacente e férreo, do leão, claro! Desse não se livram!
domingo, maio 17, 2015
Paris, Grécia
Há coincidências curiosas.
Ontem, ao final da tarde, fui atestar o depósito do carro numa bomba de gasolina na rua Domingos Sequeira, entre a Estrela e Campo de Ourique. Olhei então, com a habitual tristeza, a ruína do Paris-Cinema, que ali está há anos, sem solução urbanística à vista, já que é óbvio que a sua recuperação como casa de espetáculos estaria sempre fora de causa.
Entrei uma única vez naquela sala de cinema. Fará exatamente meio século, lá para outubro. Passei então duas semanas em Lisboa e, com um primo, fui lá ver o "Zorba", o filme com Anthony Quinn, Alan Bates e Irene Papas, uma mulher com beleza mediterrânica muito interessante, com um olhar simultaneamente rude e misteriosamente doce. Foi um filme que, à época, me impressionou imenso. E me fez conhecer, pela primeira vez a música belíssima de Mikis Teodorakis (ao lado de quem, uma vez, viajei entre Benghazi, na Líbia, e Atenas, apenas com coragem para lhe dizer como apreciava a sua música). Foi o "Zorba" que, se bem me lembro, despertou o meu primeiro interesse pela Grécia.
A coincidência está no facto de, há minutos, o "Zorba" ter surgido na televisão. Não consegui evitar rever o filme e, mais do que olhar de novo a sua trama, dei comigo, como sempre acontece com coisas que me marcaram (filmes, livros, situações), a recordar-me de como, neste caso há 50 anos, eu sentira o que vira. É enquanto estou a vê-lo que escrevo este post.
Sei que a Grécia não está na moda, embora creia que vai estar cada vez mais nas notícias, talvez dentro em pouco, pelas razões menos boas (no entanto, alguns palermas domésticos não deixarão de aplaudir a tragédia alheia). Foi com essa nuvem de algum desgosto que hoje apreciei o "Zorba". E a sua dança.
Deixo a foto do Paris-Cinema como foi no passado. Uma imagem antiga, porque a ruina que agora lá está parece-se cada vez mais com alguma Grécia dos tempos de hoje e, provavelmente, dos que aí virão.
sábado, maio 16, 2015
sexta-feira, maio 15, 2015
O tabu da homossexualidade
As revistas cor de rosa (e, desta vez, a cor é importante) vão tratar com curiosidade o casamento que hoje tem lugar entre o primeiro-ministro luxemburguês e o seu namorado, num país onde o vice-primeiro-ministro fez também já o seu "outing" como homossexual.
Os casamentos homossexuais, nos países onde eles são já permitidos, começam hoje a tornar-se vulgares e, em especial na Europa, diversos políticos têm vindo a assumir publicamente essa sua orientação. Estou certo que o chefe do governo luxemburguês tem clara consciência de que este seu caso vai ajudar muito a comunidade "gay" internacional e representará um passo mais na longa batalha de reconhecimento do direito das pessoas do mesmo sexo assumirem livremente as suas relações afetivas e, para elas, obterem um reconhecimento legal idêntico aos dos casais heterossexuais. Essa sua batalha passa, não apenas pelo fim de preconceitos, mas igualmente pela manutenção de uma constante pressão internacional sobre países cujas culturas - e até a legislação - ainda rejeitam a homossexualidade, algumas vezes considerando-a mesmo uma doença ou um grave comportamento desviante, identificado a crime.
Pertenço a uma geração em que a homossexualidade foi vista, durante muito tempo, como um desvio comportamental negativo, a que estava associado um elemento de culpabilidade e de rejeição social. Não aceite por muitos, apenas tolerada por alguns, a condição homossexual era - e ainda continua a ser, em muitos meios - alvo de uma chacota machista, das anedotas ao vocabulário identificativo. Sempre tive muito poucos amigos e amigas que se assumiam abertamente como homossexuais. Com a maioria dos restantes criou-se um "não dito", isto é, eles sabiam que eu podia saber que eles eram homossexuais, mas tinham a certeza que essa sua orientação sexual era, em absoluto, irrelevante para a nossa relação pessoal. Hoje, conto alguns entre os meus melhores amigos. Mas, repito, eles são amigos, não são "homossexuais que são meus amigos".
As carreiras diplomáticas foram vistas, durante muitos anos, como acolhendo mais homossexuais do que outras profissões. Sem preocupações estatísticas, mas a avaliar apenas pelos casos que conheço, tenho hoje a ideia de foi sempre demasiado exagerada essa perceção pública ou, provavelmente, um certo estilo mais cosmopolita de vida terá conduzido os colegas de profissão com essa orientação sexual a serem menos preocupados em ocultarem as suas tendências. Mas já vai muito longe o tempo em que se considerava que a homossexualidade de um diplomata o expunha a chantagens e, de certo modo, podia convertê-lo num risco de segurança. O que não significa que a homossexualidade não possa ainda tornar-se num "caso" diplomático, como se verificou recentemente, com a não aceitação pela Santa Sé de um embaixador francês casado com outro homem. Mas, nesta circunstância, a questão religiosa, onde a evolução no tratamento do tema tem sido mais lenta, é a razão de ser.
Portugal vive hoje dias muito diferentes quanto à aceitação da homossexualidade e outras formas de expressão sexual, que os normativos multilaterais internacionais acolhem e protegem hoje de forma detalhada. As novas gerações portuguesas, ao que me é dado a observar, convivem com muito maior naturalidade com as diferenças na sexualidade e, muito em especial, estão cada vez menos sujeitas a formas de aculturação familiar que favoreciam a transmissão geracional dessa discriminação. Isso não significa que os homossexuais, entre nós, não tenham ainda um imenso caminho a percorrer para ganharem a sua plena liberdade e igualdade de estatuto. Esta é ainda a razão pela qual este post, que quebra pela primeira vez entre nós o tabu de falar abertamente da homossexualidade na carreira diplomática, vai, com toda a certeza, ser glosado pelos claustros das Necessidades.
De Acordo?
Às vezes, neste país em que a crise nos trocou os dias e insoniou as noites, nos cortou os salários e a esperança, nos ajouja de impostos, neste Portugal vendido ao desbarato, na grande feira liberal exportada de Chicago para Massamá –, às vezes, afinal, é por outra razão que não essa que se levantam os mais fortes clamores de revolta.
É como se a pérfida Albion nos tivesse impedido, de novo, o sonho do mapa cor de rosa, como se os “turras” voltassem a decepar colonos incautos, como se o pandita Nehru reafundasse o “Afonso de Albuquerque” nas águas mornas de Pangim. É a pátria ofendida que regressa, desta vez pela aguda gravidade de um acento perdido, consolando a orfandade de vogais que choram o fim de alguns circunflexos telheiros gráficos.
Vá lá que, por essa bandeira, não se sai à rua para escacar montras e cabeças, não se atulham Alamedas de clamores, poetas de peito feito não anunciam “Marias da Fonte”, não se descem Avenidas, de cravos irados e de braços dados, rumando a Rossios de indignação e vilas morenas.
Esse rumor cívico trepa, contudo, há muito, pelos posts de blogues soberanistas, excita-se nas laudas severas da estimável folha diária da Sonae, num feroz “no pasarán!”, verbaliza-se, com anónimo arrojo, no vernáculo das caixas de comentários. São a brigada do asterismo, os que anuncia, lá ao fundo do texto, a sua orgulhosa não adesão ao ultraje gráfico.
No passado, andariam pelas catacumbas do MUD, hoje dão a vida cívica por uma muda consoante. São netos dos nostálgicos do “ph” da farmácia, dos chorosos, tal como Pessoa, da graça do “y” que o cisne em tempos perdeu, dos que há muito se haviam sentido tramados pela falta do trema que germanicamente lhes ornava os “u”, separados do futuro por um elidido hífen.
Essa brava aldeia de Asterix escava hoje as últimas trincheiras legais, implora a ajuda da preguiça lusófona para a sua derradeira batalha, reza pela heterodoxia de Angola e desconfia do Brasil, essa vil potência do gerúndio e das vogais indecentemente abertas. Quem sabe se ainda os veremos a ter um candidato presidencial – um Octávio com “c” ou um Baptista com um “p” dos que algumas tias velhas ainda cuidam em pronunciar ao chá.
O Acordo Ortográfico entrou agora, definitivamente, em vigor. Quem o não quiser utilizar que o não faça. Mas será assim uma questão tão importante? Afinal, se bem repararam, no artigo que acabam de ler, nem por uma vez se divergiu da velha escrita. Não estão de Acordo?
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")
quinta-feira, maio 14, 2015
Só à chapada
- Já viste o vídeo das miúdas a esbofetearem o colega?
- Vi algumas imagens.
- Aquilo é chocante, não achas?
- Tens toda a razão.
- E todas aquelas bofetadas...
- Aí já estou um bocadinho mais dividido...
- O quê?! Não me digas que achas bem que tenham torturado o miúdo!
- Não é nada disso. Não sou é totalmente contra as bofetadas.
- Essa agora! Não esperava isso de ti...
- Não percebeste nada! Chocava-te muito que os pais dessem uma boas chapadas nas filhas que fizeram aquilo? A mim, não...
- ...
quarta-feira, maio 13, 2015
Memorabilia diplomatica (XXXIII) - Mercedes
Numa noite, nos idos de 80, o embaixador português em Angola saiu de um jantar em minha casa, no "compound" da Embaixada - onde eram os escritórios e muitos de nós então vivíamos -, e arrancou ao volante para a sua residência, no bairro de Miramar. Tentava chegar antes da meia-noite, hora do "recolher obrigatório", que quase sempre implicava a possibilidade de encontrar patrulhas armadas, de humores variáveis e imprevisíveis.
Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.
Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.
O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!
terça-feira, maio 12, 2015
Férias
Esta caloraça fora de tempo abre-me o apetite para as férias a sério. Mas, ao falar com algumas pessoas, ao dizer-lhes das minhas ideias para o Verão que aí vem, dou-me conta da imensa e simplória modéstia das expetativas que tenho.
Conheço alguns que passam o ano a fazer intermináveis listas e listinhas, porque têm de ir a alguns locais "imperdíveis", no rol de coisas que há que ver antes de morrer (às vezes de tédio). São "paisagens de sonho", desde pirâmides e calhaus a praias e desfiladeiros que o "photoshop" da "National Geographic" lhes fez despertar nos sentidos. Com algumas "madames" armadas de "nécessaires" da Vuitton, preparam-se para se estafarem entre aeroportos, hotéis e resorts da moda, de onde chegarão, depois, com olheiras e um aspeto de ovos cozidos, com elas sempre na angústia, dilemática e sofrida, do eterno conflito entre a gula e a celulite. Outros regressam atulhados de imensa cultura sazonal - quilómetros de paredes de museus, ruínas onde ainda estão para chegar os caterpillars do Estado Islâmico, paletes de musicais da Broadway ou de peças do East End, vistas a eito. Agora que o bom-senso tecnológico nos livrou já definitivamente daquelas sinistras noitadas nas "rentrée", com suporíferos "slides" ("olha nós a chegar a Petra!", "e aquele belo pôr-do-sol no Bósforo, lembras-te, querida?"), arrasam-nos na hora os iPads com o "Instagram" (com fotos dos "piquenos" ou dos "pequenos", dependendo do bairro onde vivem) ou as "criativas" poses de família no Facebook, ornadas dos monumentos identificativos, em cenário de fundo ("onde era aquela catedral, amor?").
Os mais especiosos reservam, com meses de antecedência, restaurantes "étoilés", onde, depois de engolirem microscópicas espuminhas e reduções, no centro de imensos pratões, que às vezes nem lhes souberam a muito, esportulam fortunas só para fazerem o "vezinho" de terem lá ido. A maioria não teve sequer o bom gosto de experimentar o "São Gião", em Moreira de Cónegos, as delícias do "Vallecula", em Valhelhas, ou o "Tomba Lobos", lá para Portalegre. E a muitos, para quem Vila Franca fica já às portas da Galiza, nunca lhes passou pela cabeça ir passear uns dias ao Douro profundo ou ao Gerês, só viram fotos do Piódão ou da Sortelha na "Evasões" e acham a ideia de ir ao Pico uma "possidoneira" sem limites. A estranja é que está a dar.
Invejo-lhes, com sinceridade, o entusiasmo e, em especial, a voluntarista "juventude" que os faz tentar esquecer a idade, "queimar os últimos cartuchos", como bem dizia o meu pai. Mas só isso. Por mim, sou muito prosaico. Anseio apenas por uma areia lisa, bem perto de Lisboa, sem ter de andar muitos quilómetros, para estar a "driving distance" da "mesa dois" do Procópio, quando tal me der na gana (nos dias em que a "Sedonalice" se dignar abrir a loja, claro). Suspiro já pelas longas manhãs na cama ou numa espreguiçadeira, a ler os jornais na net, pelas "madrugadas" da chegada à praia pelas três da tarde, pelo banho com o sol a declinar, pela conversa com amigos e um "gin tonic" no "Pereira", a anteceder jantaradas ainda melhor regadas, bem mariscadas e conversadas, a criar lastro para a longa noite onde se põe a leitura em dia. Jornadas que, claro!, alegram o nosso colesterol, os trigliceridos, os açúcares e o ácido úrico, os quais, como é de regra, quando "cheirar a setembro", se tentarão normalizar por espartanas dietas... entre refeições. Ou, se não se conseguir, como diria um amigo meu, "olha! são menos dois anos de lar de idosos..."
Nunca mais é agosto, bolas!
A mesa e o negócio
O debate em torno da promessa socialista de baixar
fortemente o IVA que incide sobre a restauração veio chamar a atenção para a
importância de uma das atividades económicas com maior impacto na criação
direta de emprego, como é testemunhado pelas recuperações sazonais que se
refletem anualmente sobre esses índices. O que se passou nos últimos anos neste
setor, fortemente fustigado pela carga fiscal e pela perda de poder generalizado
de compra dos potenciais clientes nacionais, representou um golpe fatal para muitas
PME do setor, com consequências no encerramento de muitos milhares de pequenas
unidades, um pouco por todo o país.
Em certas zonas, contudo, graças ao esforço denodado de
muitos operadores e a um notável trabalho das entidades promotoras do nosso
turismo, os impactos negativos conseguiram ser relativamente atenuados e muitos
restaurantes foram capazes de sustentar a sua atividade e, em alguns casos, a
melhor qualificar a sua oferta.
Olhando para as últimas décadas, somos forçados a constatar
que a crescente atratividade da nossa gastronomia se constituiu como um dos
fatores em que se alicerça parte significativa do novo turismo que procura
Portugal, o que também se liga ao reconhecimento, cada vez mais evidente, dos nossos
vinhos à escala global. Basta estar atento às grandes revistas internacionais
da especialidade, bem como aos suplementos da grande imprensa mundial, para
concluir que, dia após dia, o produto turístico português, sem perder a
tradicional oferta do sol-e-praia, e conjuntamente com a requalificação da oferta
cultural, está a atrair pela gastronomia um novo mundo de clientes.
As “estrelas” obtidas por alguns restaurantes e “chefes”
portugueses, que alguns ainda olham com pateta sobranceria, fazem hoje parte
integrante da subida do nosso turismo na escala internacional de valor. O
produto gastronómico português funciona igualmente como um meio para aumentar a
visibilidade da nossa cada vez mais sofisticada indústria agro-alimentar - dos
vinhos às conservas, do azeite aos queijos e outros produtos que, dia após dia,
ganham relevância no nosso setor exportador e, simultaneamente, criam e fixam
postos de trabalho em zonas do país até aí condenadas ao abandono e à desertificação.
Termino com uma nota de reconhecimento para duas figuras a
quem o país muito deve neste domínio. Refiro-me ao jornalista e crítico José
Quitério, cujo trabalho de quatro décadas em prol da cultura gastronómica
portuguesa e da qualificação da oferta em matéria de restauração foi
recentemente reconhecido pela Universidade de Coimbra, ao atribuir-lhe o seu
prémio anual, e ao engenheiro José Bento dos Santos, produtor vinícola e presidente
da Academia Portuguesa de Gastronomia, a cujo assinalável prestígio internacional,
a cumular uma vida dedicada ao aprofundamento desta temática, muito se deve o
facto de o nosso país ter sido recentemente escolhido para sede da
Secretaria-Geral da Academia de Gastronomia da União Europeia.
(Artigo que hoje publico no "Diário Económico)
segunda-feira, maio 11, 2015
Memorabilia diplomatica (XXXII) - Medicina diplomática
Há dias, a propósito do curso que estou a orientar para preparar os candidatos ao ingresso na carreira diplomática, alguém ficou surpreendido quando revelei que são aceites a concurso os titulares de qualquer cursos universitário. Questão é que as pessoas sejam capazes de ultrapassar as várias provas, desde um teste de cultura geral a exames exigentes de português e inglês, seguidos de provas sobre História Diplomática, Direito Internacional e Economia Política, com as questões europeias a assumirem natural destaque. O meu interlocutor ficou mesmo surpreendido quando lhe disse, não sem um certo gozo por esse ecletismo, que há hoje na carreira pelo menos um arquiteto e um médico. "Um médico?" e abriu a boca de espanto!
Foi a propósito disso que me veio à memória uma história divertida, passada algures no mundo, há já muitos anos, com um diplomata cuja nacionalidade não quero revelar e que, não sendo ele próprio médico, nem sequer sendo um evidente hipocondríaco, tinha sobre as questões de saúde algumas teorias que se situavam um pouco à margem da medicina convencional, e desde já aviso que isto é um "understatement". Para além de afirmar, com grande convicção, que o champanhe, "um bom champanhe", tinha efeitos muito positivos na cura do cancro, debitava sempre teorias muito pouco usuais, muito pessoais, sobre o efeito de certos produtos em certas doenças.
Era um homem só, solteiro, à época bem mais velho do que nós (já morreu há muito), uma pessoa com uma cordialidade educada que atenuava alguma distância que o seu modo de estar algo formal criava nas pessoas que com ele conviviam. Ouviamo-lo com delicada atenção e só aqui ou ali, quando a extrema bizarria das teorias nos fazia passar do sério, é que deixávamos escapar um comentário menos concordante. Um dia, porém, foi um pouco longe demais.
Em casa desse diplomata, um grupo estava a bebericar uma taça de champanhe - sempre o champanhe!, para ele a mezinha com alargadas virtualidades medicinais - quando alguém que estava presente referiu que estava um pouco constipado, fruto do clima desse país longínquo, que andava um tanto instável.
Nesse instante, o nosso homem, com um ar seguro, saiu-se com esta frase:
- Isso é um problema de intestinos! O champanhe ajuda muito a acabar com as constipações.
Lá vinha o champanhe, outra vez! Todos nós, seus convidados, olhámo-lo, surpreendidos, em particular um médico meu amigo, que ali estava pela primeira vez e que esboçou um pequeno comentário distanciador da estranha interpretação da sintomatologia da constipação que acabara de ouvir. Mas o homem não se desarmou.
- Ah! O meu caro amigo é médico! Desculpe, esqueci-me disso! É portanto um adepto das teorias da medicina moderna. Está no seu papel, é evidente! O que eu disse tem a ver com outras áreas da ciência que a sua medicina não acolhe, porque não dão jeito, não fazem o jogo dos laboratórios que nos encharcam de medicamentos e, claro!, que têm de fazer o seu negócio. Percebo bem que não possa sair dessa visão convencional da medicina...
Disse isso com um ar condescendente. E eu olhei para o meu amigo, temeroso de que se não contivesse perante o comentário, que tinha algo de provocatório. Mas ele manteve-se educadamente calmo. A brincar, a brincar, o jantar ainda não tinha sido servido...
O diplomata, "médico" por convicção, dispôs-se a dar uma explicação mais detalhada da sua teoria e, voltando-se de novo para o verdadeiro médico presente, deixou cair uma interrogação críptica:
- O meu amigo não subscreve, estou certo, o "princípio do alambique", ligado às constipações, pois não?
O médico "a sério" fez uma cara de surpresa. O "princípio do alambique"? Terá mesmo, por um instante, inquirido a si mesmo se lhe não estava a falhar alguma tese fundamental da medicina. E, perplexo ao limite, acabou por confessar que não, que não conhecia o "princípio do alambique".
Foi o que o nosso diplomata quis ouvir. Ganho já o terreno, recolocou-se no centro diretor da conversa e, com assumida generosidade, deu-nos a conhecer a "verdade":
- Ora bem! Como os meus amigos seguramente sabem, dentro de nós persiste, fruto das deficiências de "limpeza" do nosso sistema digestivo, uma certa percentagem de resíduos - as senhoras presentes que me desculpem o termo, mas trata-se de "excrementos" - que se vão acumulando ao longo de meses nos intestinos. Essa massa, se não for expelida a tempo, chega a um ponto em que começa a fermentar e, ao fazê-lo, decanta uns eflúvios. Esses gazes, que a fermentação tornou mais quentes do que o resto do corpo, começam a fazer um percurso ascendente através dos tecidos. Como todos sabem da escola, "o ar quente sobe". À passagem pelos brônquios e pela garganta, por exemplo, provocam inflamações - daí a tosse e as dores de garganta. Mas esses eflúvios vão continuar a subir e chegam à cabeça. O contacto com o cérebro é tudo menos pacífico e pode então provocar dores de cabeça e estados febris.
A sala estava em êxtase com a sofisticação desta delirante teoria. O meu amigo médico olhava para o diplomata sem saber bem o que dizer. Recostou-se no sofá, como que exausto com o que acabara de ouvir. Eu fixava-o para tentar que a "tampa" lhe não saltasse... Mas o melhor estava para vir.
- Mas eu ainda não acabei!, ameaçou o prolixo diplomata, enlevado na lógica irrecusável da sua teoria. Ora esse eflúvios, ao chegarem à cabeça, entram precisamente em contacto com uma das poucas partes do nosso corpo que, geralmente não está coberta, não é verdade? E, então, o que é que acontece? É aqui que entra o princípio do alambique. Como esses eflúvios entram em contacto com uma superfície mais fria, têm tendência a condensar, tal como acontece nos alambiques. E, como se sabe, a condensação converte os gases em líquido, o qual, naturalmente, precisa de escoar. E por onde escoa? Pelo nariz, claro! É por essa simples razão que, quando nos constipamos, há secreções líquidas que nos saem pelo nariz. Nunca ouviram recomendar às pessoas constipadas para manterem a cabeça protegida por um chapéu ou por uma boina? É precisamente por isso: quem andar com a cabeça quente, tem menos tendência a ter vontade de assoar-se.
O silêncio que se seguiu a esta laboriosa e completa explicação foi talvez excessivamente pesado. Nenhum de nós ousava arriscar uma palavra, pelo respeito que o homem nos merecia, perante a bizarria da teoria. Eu olhava, em controlado pânico, para o meu amigo médico, que pressentia prestes a explodir, ou de riso ou de raiva. Alguns anos de diplomacia ensinaram-me a dizer coisas um pouco "redondas", para sustentar precisamente este tipo de situações:
- Muito interessante! Mas há certeza de que isso é mesmo assim? Como é que se explicam, por exemplo, as sinusites, que provocam um forte corrimento nasal?
O que eu fui dizer! As sinusites, estava bem de ver, não eram nem mais nem menos do que uma inflamação produzida no caminho ascendente dos eflúvios em direção à cabeça. Tudo estava explicado!
A conversa acabou, para grande alívio dos presentes, com a chamada urgente para a mesa, onde havia o risco de um souflé poder baixar, se perdêssemos mais tempo. Ou ganhássemos, tudo dependente da credulidade de cada um.
Já longe do local do jantar, trocadas umas boas gargalhadas sobre o momento "médico" que o havia antecedido, alguém se lembrou: "pensando melhor, a expressão inglesa "constipation", para significar problemas instestinais, é bem capaz de vir daí..."
(Dedico este texto ao meu querido amigo Manuel Serra, médico e estóico auditor da historieta que aqui lhes contei. Acho que ele vai divertir-se ao relembrá-la.)
E se a História acontece?
A retórica da História está cheia de momentos “históricos”,
passe o pleonasmo. Alguns acabam por sê-lo, outros desaparecem na espuma dos
dias seguintes.
No Dia da Europa, alguém me perguntava se, na data em que
foi assinado o Tratado da adesão às instituições europeias, em 1985, eu havia
tido a consciência desse dia ser o marco fundamental que acabou por ser, no
percurso da nossa modernidade como país. Nunca me tinha colocado a questão. E,
olhando-me à época, tive modestamente que admitir que não: com certeza que
achei muito importante o momento, mas não tive a presciência para aquilatar do
profundo impacto que a adesão iria ter no futuro de todos nós. O que também se
justifica pelo facto das Comunidades Europeias de então estarem a “anos-luz” da
densidade de políticas da atual União, em cuja construção, convém lembrar, nem
sempre fomos os atores de somenos que hoje somos.
Vem isto a propósito das recentes eleições no Reino Unido.
Da surpresa e da magnitude do resultado todos falaram. Sobre as incógnitas que
dele podem vir a resultar vários já elaboraram. E, no entanto, pode vir a
dar-se o caso da data de 7 de maio de 2015 acabar por ficar marcada como
“histórica” nos anais europeus. E não necessariamente pelas melhores razões.
Há já algum tempo, David Cameron, o reconfirmado chefe do
governo britânico, anunciou que, se fosse reeleito, organizaria, em 2017, um
referendo nacional sobre a permanência do seu país na União Europeia. Foi um
“truque” para apaziguar o endémico euroceticismo, e mesmo anti-europeísmo, que
sempre pairou sobre o Reino Unido, que tinha dado alento à criação do
eurofóbico UKIP.
O Reino Unido não é membro do euro, não faz parte da zona
Schengen e auto-exclui-se recorrentemente de várias políticas da UE. No Conselho
de Segurança da ONU (tal como a França) recusa-se a aplicar a solidariedade
europeia no concerto antecipado das decisões. Sem a menor dúvida, é, desde
sempre, um dos maiores beneficiários do Mercado Interno europeu, recebe fatias
importantes das ajudas comunitárias, quer em fundos estruturais (para as suas
regiões mais pobres), quer através da Política Agrícola Comum. Graças à genialidade
negocial de Margareth Thatcher, continua a usufruir de um anacrónico “rebate” –
um cheque dado pela União, a pretexto de uma mais do que duvidosa compensação
financeira, que os restantes Estados são obrigados ciclicamente a aceitar, para
comprar a “pax britannica” nos corredores de Bruxelas.
Preparemo-nos agora para assistir a uma espécie de pouco
subtil chantagem. Cameron já deixou claro que, para “vender” internamente o
“sim” – que não duvido ser do interesse objetivo do resto da Europa -, vai ter
de obter cedências em termos de “devolution”, isto é, vai querer repatriar para
a Câmara dos Comuns alguns dos poderes com que em Bruxelas se tem construído a
unidade europeia. Com esta atitude, alguns outros países, onde o euroceticismo
faz hoje também o seu curso, procurarão aproveitar o “comboio” para incluir
outras reivindicações idênticas. Não nos deveremos espantar se, nos próximos
tempos, vier a gerar-se uma tentativa de desmantelamento de algum do acervo que
fez o sucesso do projeto europeu. A começar pela livre circulação no espaço
europeu, questão da maior importância para um país como Portugal, que tem cada
vez mais uma parte de si próprio espalhado pela Europa.
Mas não é tudo. Para tornar o 7 de maio numa data histórica,
poderá estar aí, ao virar da esquina, a independência da Escócia. E então, bom
dia, Catalunha!
(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")
domingo, maio 10, 2015
Comidas & bebidas
Ontem, deixei no meu blogue "satélite" sobre restaurantes uma sugestão que deve agradar ao meus amigos que passam o tempo a queixar-se de que só lhes dou notas sobre locais mais ou menos sofisticados e carotes. Desta vez, trata-se de um lugar simples, acolhedor e com uma excecional relação qualidade/preço.
Consultem o "Ponto Come"!
A bandeiras da vitória
O final da Segunda Guerra mundial, cujos 70 anos se comemoraram agora em várias partes do mundo, foi um grande momento histórico na vida europeia.
Em Portugal, país europeu que, tal como a Espanha, foi poupado ao conflito, esse foi também um tempo de esperança. Com a vitória dos Aliados, criou-se em alguns a ideia de que as potências vencedoras poderiam forçar Salazar a uma democratização do regime.
Foi uma ilusão breve. À paz das armas seguiu-se, quase de imediato, a Guerra Fria, a tensão Leste-Oeste tomou conta da Europa e os nossos democráticos "amigos de Peniche" decidiram - e tudo isso está hoje bem documentado - não exercer qualquer pressão para que o regime português se abrisse. Portugal não seria admitido nas Nações Unidas (o que só ocorreria uma década mais tarde) mas, no entanto, não deixaria de ter assento como membro fundador da NATO, para a defesa do "mundo livre" a que passou institucionalmente a pertencer, mas que não se aplicava no país.
"Livres" foram também as eleições legislativas desse ano de 1945. Melhor ainda: "tão livres como na livre Inglaterra", como hipocritamente afirmou com solenidade, na Assembleia Nacional, o déspota de Santa Comba. Como era de regra, só pôde concorrer uma única lista de deputados, pelo que a União Nacional - tal como ocorreria durante os 41 anos de vigência da Constituição da ditadura - ocupou de novo todos os assentos de S. Bento. Depois, foi o que se viu. Os subscritores das listas do Movimento de Unidade Democrática (MUD), que haviam tentado organizar-se para o sufrágio, foram perseguidos, acabaram demitidas da função pública dezenas de figuras eminentes da comunidade académica e um novo ciclo de forte repressão política abateu-se sobre o país.
Para justificar o seu ziguezaguiar entre a Alemanha nazi e os Aliados, Salazar tinha crismado, ainda durante a fase final da guerra, o conceito de "neutralidade colaborante", qualificador do facto - que, aliás, ocorreria quer Portugal quisesse quer não - de ter aceite a concessão das facilidades militares nos Açores às forças aliadas. O cinismo não o impediria, contudo, de decretar três dias de luto nacional, por virtude da morte de Adolf Hitler.
Mas a verdadeira "neutralidade colaborante" foi aquela que o Reino Unido e os Estados Unidos (a França era, à época, um poder menos relevante) aplicaram à situação interna portuguesa. Campeões da ingerência, tal como a União Soviética, em vários espaços e países das zonas de influência ditada pela partilha do mundo que haviam decidido em Ialta, os Aliados revelaram-se hipocritamente "neutrais" face à ausência das liberdades (por cuja bandeira se tinham batido) em Portugal. E, por isso, acabaram como objetivos "colaborantes" com a ditadura, que demoraria três décadas mais a derrubar.
E, por falar em bandeiras, deixo uma fotografia que me é cara, porque curiosamente mostra a fachada da casa onde hoje resido. Trata-se da manifestação junto ao edifício que à, época, era a Embaixada britânica em Lisboa. Foi no dia subsequente à vitória aliada, faz hoje 70 anos. Nela poderão ser vistas os estandartes dos países vencedores da Segunda Guerra mundial. De todos? Não. Há uma bandeira que não podia ser exibida e, por essa razão, se notarem bem, há quem segure apenas um pau, sem pano... Adivinhe quem quiser!
sábado, maio 09, 2015
Viva a greve dos pilotos!
Por muito que detestemos as razões de um qualquer grevista - seja desta cáfila egoísta de pilotos, seja dessa mafia que são os maquinistas da CP ou quaisquer outros oportunistas de igual laia -, por muito que a sua atitude prejudique os utentes, o erário da empresa ou qualquer outro interesse, a preservação do inalienável direito à greve, apenas atenuável pelo mecanismo legal dos serviços mínimos ou da requisição civil, terá sempre um preço muito "barato", porque esse é o preço da democracia. E essa não tem preço! Percebam bem isso, por favor.
Um novo Renascimento
Frequentemente, os cidadãos europeus tendem a esquecer que a ação política que sustenta a vida das suas instituições é apenas o modelo enquadrador de um projeto multidimensional de vida e civilização, fruto de um compromisso entre as diversas expressões nacionais de poder. Um projeto cuja sustentação depende da continuidade da adesão dos cidadãos a um imaginário que se renova no quotidiano, alimentado pela dinâmica do processo de construção europeia.
Porque se impõe mediaticamente, a coreografia dos atores políticos surge,
muitas vezes, aos olhos da opinião pública, como uma espécie de substituto
daquilo que é, na realidade, a essência desse projeto: os objetivos, os
valores, as expetativas, isto é, a narrativa em torno de uma ideia de paz e
desenvolvimento, interiorizada pelos cidadãos.
De um conceito mobilizador, que foi capaz de organizar institucionalmente a
esperança e edificar um inigualável período de bem-estar e de apaziguamento de
tensões, a Europa pareceu, nos últimos anos, ter perdido o elã coletivo que a
motivou, surgindo mesmo, aos olhos de alguns, como o bode expiatório das suas
frustrações e desencantos.
Em muitos casos, o espírito crítico abandonou a sua indispensável função
promotora de alternativas para se situar para além da linha da preservação do
modelo, às vezes contestando mesmo a validade da sua própria permanência no
tempo.
A Europa e quem nela acredita não podem deixar vencer-se por um qualquer
pessimismo, por um derrotismo de conjuntura que amorteça a vontade de garantir
um futuro àquele que é, sem a menor dúvida, o maior e mais completo caso de
sucesso, em toda a História, em matéria de cooperação internacional. Colocar em
causa este fantástico adquirido seria uma imensa irresponsabilidade.
Mas o mero voluntarismo não é suficiente para garantir a vitória de uma
ideia. Há que convocar para ela a vontade dos cidadãos, assegurar a sua adesão.
Para tal, não devemos persistir numa mera repetição do mantra rotineiro,
devemos trabalhar o discurso com base na evolução da própria realidade.
Uma nova e mobilizadora narrativa europeia tem assim de ser construída e
deve assentar em dois pilares que se complementam.
Por um lado, deve conseguir envolver os cidadãos, em especial as novas
gerações, na revisitação dos seus fundamentos culturais coletivos, explorando
as virtualidades das novas tecnologias e da vida sustentável, a imensidão de
plataformas de incentivo à criatividade, as dimensões das práticas sociais
solidárias, gerando uma afetividade ao projeto europeu, produto de uma adesão voluntária
às suas imensas virtualidades e potencialidades. Deve, no fundo, trabalhar para
um Novo Renascimento.
Esse registo deve também assentar na exploração das dinâmicas resultantes
dos novos “territórios” comuns que a Europa conquistou entretanto para os seus
cidadãos, introduzindo, progressivamente, uma reflexão de matriz europeia nos
espaços públicos, nacionais ou continental. Há que dar passos na construção da
Europa “como cidade”, uma polis com
alma própria, identificável pela sua projeção civilizacional autónoma.
Trata-se, assim, de organizar o discurso em torno de um Novo Cosmopolitismo.
"A propósito"
Na noite deste sábado, às 23 horas, com Carlos Moedas, António Vitorino e Carlos Coelho, estarei na SIC Notícias a falar do Dia da Europa, que hoje se comemora.
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