Ela tinha aí mais um ano ou dois do que eu, então adolescente, mas parecia bem mais velha. Tinha uns olhos lindos de morrer e era "muito bem desenhada". Não me ligou pêva durante toda a conversa, em que ambos fomos quase sempre testemunhas silenciosas, mantendo um ar distante, de quem tinha manifestamente a cabeça noutro lugar.
Os pais, residentes em Santo Tirso, tinham ido visitar os meus, numa passagem por Vila Real. Eu e ela estávamos "por empréstimo" na sala, a decorar a ocasião social, fartos de histórias que não nos diziam respeito, chamando a elas pessoas de que só vagamente ouvíramos falar. Na inutilidade da nossa função decorativa, ela manteve-se sempre imune aos olhares concupiscentes que eu me recordo de lhe ter lançado. Foi uma hora perdida, para ambos. Com pena minha, claro.
À noite, ouvi os meus pais comentarem, entre si, alguma coisa sobre a jovem, por rápidas conversas entre portas que o casal tinha tido com eles. A família andava muito preocupada com ela, pelos seus atos de rebeldia, pela falta de disciplina, por já "olhar para a sombra", como então se qualificavam as raparigas que iam "saindo da casca". Isso rimava bem com os sinais de ousadia contida que eu lera no seu olhar, muito embora eu tivesse sido tudo menos o usufrutuário dos seus potenciais desvios. A verdade é que eu nunca mais a veria, pelo que deixei de pensar nela.
Passaram umas semanas. Nesse tempo, eu lia uma imensidão de jornais desportivos. Acompanhava tudo o que se publicava sobre ciclismo, futebol, atletismo e hóquei em patins - as modalidades que então me interessavam. Um dos temas que, à época, dominava essa imprensa era a inesperada transferência do vencedor da Volta a Portugal do ano anterior, da equipa de ciclismo do Futebol Clube do Porto para a do Sporting.
Um dia, foi anunciado que a mudança se consumou. O desportista apresentou-se no estádio José de Alvalade para envergar a gloriosa camisola do meu Sporting. Era a transferência do ano. O "Record", à época tendencialmente verde-branco, trouxe uma grande reportagem sobre a chegada do novo integrante. A ilustrá-la, na primeira página, lá estava o ciclista, "com a noiva". Era ela!
Os pormenores souberam-se mais tarde: tinha havido uma "fuga" dramática de casa dos pais, com forte comoção familiar. Estava-se já em "contra-relógio" para o casamento, por forma a concluir formalmente aquela difícil etapa da vida de ambos. No fim de contas, as coisas tinham algum sentido: ele, o vencedor da Volta, era um rapaz nascido em Santo Tirso, namorado da jovem, embora contra a vontade dos pais dela. A sua vitória, ao "sprint", era justa, a "camisola amarela" era merecida e era, aliás, da cor do sorriso com que fiquei ao ler o jornal...
4 comentários:
Magnifico exercício de humor e de língua portuguesa...Muito obrigado, Senhor Embaixador.
Essa última frase do sorriso amarelo para além de muito bem esgalhada é, e sei-o bem, bastante comum. Quase pandémica.
o josé pacheco levou a melhor...
Maravilhoso texto
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