quarta-feira, julho 05, 2017

Elogio das manhãs cinzentas




O dia acabou por se "ajeitar", como se diz na minha terra. Mas, ontem, ao sair de casa, de manhã, pairava sobre Lisboa um céu de cinza, um leve vento fresco, mesmo alguma humidade.

A nossa memória guarda coisas longínquas e, nesse instante, o que é que me veio à cabeça? Imaginem lá! Algumas "belas" manhãs de agosto, em Viana do Castelo, na minha infância.

O meu pai, nos verões, zarpava com a minha mãe e comigo, por umas três semanas, para Viana. Desde o dia imediato à nossa chegada até à véspera do regresso a Vila Real, as manhãs na praia do Cabedelo eram "sagradas".

Para mim, aquilo era um excesso de praia, atividade que, se matutina, nunca me entusiasmou por aí além. Era preciso levantar bem cedo, caminhar até à avenida, toalha sob o braço a embrulhar o calção de banho, embarcar numas camionetes a cair de velhas, vermelhas, da Auto-Viação do Minho, partir para a praia através da ponte e do Cais Novo. O cheiro "mecânico" daquelas viaturas está-me ainda no olfato, o arrascanhar do "meter da segunda", a meio da curva de 180° de entrada para a ponte, é um ruído que também me ficou.

Chegados ao Cabedelo, lá para as nove e meia, era habitual começar-se o dia de vilegiatura com um vento desagradável, arenoso. Eu procurava o refúgio da barraca, o meu pai forçava um passeio e, no seu termo, havia sempre um sinistro banho! A água, por ali, sempre foi frigidérrima, detestável, mas o meu pai obrigava-me a mergulhar, pelo menos uma vez. À medida que fui tendo direito a opinião, argumentava já com as constipações que aquilo podia criar (tentando por aí a cumplicidade da minha mãe), mas o meu pai contrariava-me com os efeitos salutares dos "pirolitos" de água salgada. Era uma guerra perdida, da qual só consegui "desertar" já na adolescência. Com sorte, havia pelo meio uma escapela ao "Raio Verde", para um Rajá, uma Invicta Cola ou um Ginger Ale (em Vila Real, sei lá porquê!, ainda não havia Ginger Ale). Aproximada a hora de almoço, lá vínhamos nós no percurso inverso, com banho a correr, porque a minha avó exigia tudo sentado, impreterivelmente, à mesa, à uma hora. Se bem me lembro, era uma canseira!

Porque é que a manhã de ontem me trouxe, então, uma memória positiva? Porque me recordou alguns dias em que, bem cedo, ao abrir-se a janela que dava para Santa Luzia, o meu pai constatava que estava tudo enevoado - e, em alguns dias (gloriosos!), até chovia!

O meu contentamento íntimo era então inversamente proporcional à irritação do meu pai, para quem a perda de um dia de praia era algo de terrível. Eu olhava-o, ansioso, da cama, temendo apenas ouvir o "isto ainda pode abrir...", que às vezes o levava a arriscar cruzar a neblina, connosco atrás.

Para mim, os dias ideais eram, então, aqueles em que ele concluia que "isto hoje já não se compõe!". Ouvir isso era uma benção: dava-me mais uma hora ou duas de cama e era a garantia de um dia de brincadeira lá por casa, com os meus primos, da "torre" (as águas furtadas) à "loja" (uma cave que conserva o cheiro a humidade desses tempos).

A imensa casa da minha avó é agora uma escola de música. Consegui, há tempos, visitá-la. E lá fui encontrar, na "loja", o cheiro, bem como a janela sobre Santa Luzia, que me deu tão deliciosos dias de névoa e preguiça.

5 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia.

Nas suas escapadas ao "Raio Verde" levava o livrinho do Julio Verne para ler nos intervalos dos refrigerantes? Imagino que Eric Rhomer ainda nao andava as voltas com o guiao do filme que relalizou baseado em Julio Verne.

E Ja agora, averiguou se o dono da loja lia e apreciava Julio Verne?

Aqui o dia esta claro, vem calor ate dizer basta e humidade previsivel para o fim do dia.

Saudades.
F.Crabtree

Anónimo disse...

Belo texto sobre dias que a nova geração não pode compreender... Para mim era S. Martinho do Porto, também sempre de manhãs sem sol, mas, como o mar era um lago, havia a liberdade para as crianças, sem qualquer perigo. Os adultos ~´o apareciam lá para o meio dia. Entretanto jogos muitos em quilómetros de areia molhada e, para quem quisesse, banheiros disponíveis para nos ensinarem a nadar. Bons tempos, quase sempre com nevoeiro. Mais para o fim da tarde e à noite, a frustração de nunca os rapazes nos deixarem aprender e partilhar o bilhar, na rua dos cafés.
A propósito de novas gerações, àmanhã às 14,30, em Agronomia, o Tiago, filho do César Oliveira, defende a sua tese de doutoramento. Ele é engenheiro florestal, especialista de fogos. Não é «achador» (agora toda a gente acha qualquer coisa sobre o que não sabe...). O tipo de pessoa que devia ser ouvida. Acho eu... Se não tiveres outros compromissos, ficas a saber. Beijos. São Jordão

Carlos Fonseca disse...

Comecei a gostar de ir à praia desde que me lembro. No caso, a da Figueira da Foz, entre meados de Julho e meados de Setembro. O tempo não seria muito diferente do que o senhor tinha em Viana do Castelo. Mas havia uma diferença: salvo nas férias do meu pai, que eu achava sempre curtas, quem me obrigava a mergulhar, não uma, mas três vezes, (e à minha irmã também) era o banheiro Galizão - nunca poderia esquecer o nome do "torturador" -, que também alugava as barracas. E por cada mergulho recebia um escudo.

Mas, depois do banho, a praia era uma festa com amigos e conhecidos. E foi naquele mar áspero e gelado que aprendi a nadar. E que tive os primeiros namoricos. Mesmo depois de os ventos da vida me terem empurrado para Lisboa, era para mim "obrigatório" passar duas semanas de férias na então chamada praia da Claridade, com a minha malta.

Que belos tempos|

Anónimo disse...

Desde que me conheço sempre senti na praia a liberdade de nadar e mergulhar com a máscara/tubo vertical para respirar fora de água.

Foi fácil nas águas da Corimba (Samba) e Belas (hoje Futungo), sem horas fixas para ir e vir do mar, cortadas apenas por sandes e fruta até ao fim da tarde.

Hoje com a idade, ainda tenho a nostalgia desses tempos, quando vou à agua no verão algarvio.

Portugalredecouvertes disse...

Esses mergulhos obrigatórios parecem mesmo um horror quando se conhece a temperatura da agua do mar ! mas muita gente se lembra dos bons tempos!
eu conheço por ter visitado essas praias, a maneira estranha que o sol tem de se esconder por detrás da neblina, e como parece brincar com os ocupantes da praia,
e não é raro vermos os veraneantes aos saltinhos de rochedo em rochedo
e ao mesmo tempo a tentarem descobrir onde estão os seus familiares e amigos, pois tao espesso pode ser o nevoeiro antes de o sol abrir !

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...