quinta-feira, abril 14, 2016

A Europa infiel


                                         

"Está tudo acabado entre nós!". Às vezes, fico com a sensação de que a frase clássica pode, de um momento para o outro, ser pronunciada entre os dirigentes europeus, tão distantes parece serem já os projetos que se cruzam nesta que um dia foi uma "casa comum" e que, nas horas que correm, mais parece um "pátio das cantigas", com vizinhas envolvidas numa sonora bulha verbal, cada vez mais despudorada e aparentemente sem recuo.

Que se passou na Europa, que aconteceu entre nós, como é que, num espaço curto de alguns anos, passamos a olhar o vizinho com desconfiança, tomamos sempre como alheia a agenda dos outros, somamos, no dia a dia de Bruxelas, razões para nos acantonarmos, de novo nos descobrimos soberanistas? De espaço de esperança e de algum sonho, convertemo-nos, num tempo muito curto em termos de História, numa mera folha de Excel, para a qual convocamos a demagogia egoísta, nos entrincheiramos em inventários de interesses próprios, como se o projeto fosse sustentável pelo seu simples somatório, como se não houvesse contradições a gerir e a acomodar.

Quem traiu a Europa? Quem foi (mais) infiel ao projeto que nos unia, à cultura de reconciliação e usufruto de diferenças que era (foi?) a nossa riqueza? Quem repudiou a solidariedade, quem aduba hoje sentimentos mesquinhos, atitudes de superioridade de grupo, uma espécie de "racismo" que só uma réstia de cobardia, que não de vergonha, não deixa emergir em todo o seu chocante despudor? 

Anda por aí um juízo de facilidade que, em síntese, reduz a crise europeia ao efeito dos últimos alargamentos. Alguns observam o comportamento de alguns desses novos parceiros, a sua crescente distância face ao paradigma do anterior projeto, a sua bem maior gratidão ao outro lado do Atlântico e, pura e simplesmente, pensam de si para consigo: "esta gente não devia ter entrado na Europa!". 

E, no entanto, "essa gente" são opiniões públicas que expressam os seus temores e anseios, titulados por quem lhes não faz um mínimo de pedagogia sobre os imensos custos da "não-Europa", por líderes que se limitam a ecoar algumas dessas ideias estranhas e simplórias, de quem só vê o futuro até à próxima esquina da História. São esses povos os culpados por tê-las, por escolherem dirigentes que se limitam a ser câmara de eco dessa cultura de retração? A Europa que "já cá estava" poderia ter feito outra coisa diferente que não fosse acolher esses países, essas culturas, esses medos, essas desconfianças? Não e sim.

A Europa "de cá" não podia dizer "não" a quem lhe batia à porta, seduzida pelo projeto de liberdade e desenvolvimento que, por décadas, andou a gritar para o outro lado do muro. Mas, "sim", essa Europa podia ter feito diferente no modelo por que optou para acolher os novos membros do clube.

A Europa traiu o seu futuro ao ter cedido, por cobardia estratégica, ao deixar que o seu padrão ético que levou décadas a estabilizat fosse corrompido por facilitismos, por cedências sucessivas, por precedentes cumulados, talvez na convicção pateta de que, com o tempo, tudo "iria ao sítio". Foi a "realpolitik" dos que verdadeiramente contam na decisão que forçou, deliberadamente, para debaixo do tapete, o que se sabia serem as fragilidades da estrutura legal de alguns candidatos, o "apartheid" que outros já praticavam face a minorias internas, as barbaridades já evidentes nos "checks-and-balances" institucionais, as tentações de controlo dos meios de comunicação que estão na matriz de alguns de alguns demagogos ou iluminados. Tudo isso era (e é) mais do que conhecido em Bruxelas e Estrasburgo e, no entanto, a hipocrisia dos sorrisos e das fotos de família, do rotineiro "perp walk" do Berlaymont ou do Justus Lipsius, com as bandeirinhas das estrelinhas em fundo, tudo continuou (e continua) a disfarçar. Não há consenso para medidas radicais? Chamem-se "os bois pelos nomes", faça-se um corajoso "naming names" e acabe-se com a hipocrisia dos esgares faciais. 

Há que dizer que a terapia preferida por alguns, de forma mais ou menos explícita, passaria agora pelo recuo, tido como confortável, ao núcleo fundador do projeto. É uma ilusão estúpida, como se a França de Le Pen, os populismos holandeses, a Bruxelas de Molenbeek e outras Europas que também fazem parte desta Europa tivessem alguma coisa a ver com os "avós fundadores", de Di Gasperi a Adenauer. Recordo sempre uma noite tumultuosa de debate europeu em que um "grande líder" mandou praticamente calar um dirigente luxemburguês, lembrando-lhe que, se houvesse uma nova guerra na Europa, o seu país não teria espaço para acomodar todas as sepulturas. É este o "espírito europeu" dos "seis" a que se pretende regressar?

A Europa é hoje uma grande mentira mais ou menos bem encenada, muito arrumadinha no palco dos interesses, com os seus bastidores em cacos. Quem a traiu? Todos levámos longe demais o teatro do entendimento ideal, todos fomos militantes do sorriso complacente. Para não comprar chatices hoje, hipotecámos o futuro e desvirtuámos quase por completo um projeto bem original. Será tarde, agora?
Confesso que não sei, mas sinto que a nossa infidelidade ao projeto comum pode ter, um dia, como preço, virmos a ouvir a tal frase: "está tudo acabado entre nós!" O que virá a seguir só se pode suspeitar.

(Artigo que publico no último número da revista "Egoísta")

4 comentários:

Reaça disse...

Um bom epitáfio.

Mas enquanto durou foi bom.

Quem venha a traz feche a porta, que a nossa porta nunca se vai fechar, temos sempre a TAP para emigrar e o mar para navegar.

Anónimo disse...

Para mim há muito que esta "europa" está terminada. Passou a ser apenas uma superestrutura burocrática, que já não representa nada nem ninguém a não ser aqueles "franksteins" que por lá se vão passeando. Vou mais longe, aquilo mete nojo.

Anónimo disse...

A UE acabou. Não passa de um bando de burocratas bem pagos a soldo do capital Neo-liberal. Oxalá tenha uma vida breve e tudo se volte à estaca zero, cada um por si, com a sua própria moeda e sem...UE. Já pensaram no que sucederia a todos aqueles que se banquetearam e vivem hoje à "sombra" de umas boas reformas à custa da tal Europa? Quem lhes pagaria de futuro essas reformas? Saberão eles/as que há gente por essa UE fora que recebe côdeas pelas reformas, pensões e salários, enquanto no BCE, Comissão, etc, se engorda?
Oxalá o fim da UE chegue -um dia!

Joaquim de Freitas disse...

No dia em que os Americanos criaram a vitrina de Berlim Oeste para impressionar os povos de leste, da superioridade do sistema capitalista, numa clara intenção de “fazer as contas” com a URSS (desde o fim da guerra) começou ai a desintegração do sonho europeu. E não falo daquele que De Gaulle nomeou de Brest a Vladivostock! Falo só do outro sonho, do Atlântico ao Oural. Esta sim, poderia ter sido a grande Europa. Mas os Americanos tinham receio deste bloco. (Sobretudo quando De Gaulle pôs a NATO na rua, fora de Fontainebleau!) Apressaram-se a destabilizar a URSS, por todos os meios, criaram o mito do perigo soviético, afim de justificar a NATO. E esta está agora às portas de Moscovo, a toda a volta da antiga URSS, da Finlândia à Turquia, passando pela Polónia e a Ucrânia, e mesmo na Ásia às portas da Sibéria.

A Europa caiu como um fruto maduro nas mãos dos EUA. A UE e o Euro, minados pelo submarino inglês ao serviço dos EUA, minado pela subserviência da Alemanha e mesmo da França, transformaram o nosso sonho num pesadelo. Na política estrangeira o seguidismo da UE foi total. O Iraque (só Chirac reagiu), o Afeganistão, a Líbia, a Síria e mesmo o Kosovo, que permitiu de desmantelar a Jugoslávia e de fazer um presente à Alemanha, entregando-lhe a Eslovénia. E mesmo na Ucrânia onde os neo nazis receberam o apoio da EU !

A UE, tendo apoiado Bush na sua marcha fatal para o desmembramento do Iraque, com o corolário da Síria e da Líbia, recebe agora a recompensa nos milhares de migrantes que fogem as guerras que desencadeamos, EUA, NATO e UE !

E os EUA não dizem nada nem ajudam a resolver o problema, ao financiarem certas milícias islamistas nestes países.

Então a Europa faz naufrágio. Todos os sonhos se esvaíram. E teremos sorte se o Tratado Comercial EUA-EU não for assinado antes do colapso final. Porque seria “ la fin des haricots”!
Quando Rumsfeld, o velho “pisse vinaigre” dizia que a velha Europa estava acabada, tinha razão! Só que para ele, a Nova Europa começava em Varsóvia e acabava na Geórgia, passando pela Ucrânia e os países baltas! E os Polacos, traidores à UE, de quem recebiam rios de dinheiro, iam comprar aviões aos americanos, com o nosso dinheiro.

A Europa foi finalmente abandonada ao poder das oligarquias, que se acordam bem com as oligarquias do outro lado do Atlântico.

O grande mercado faliu, porque os capitalistas esqueceram que para desenvolver o mercado é preciso distribuir melhores salários à grande massa daqueles que ainda têm necessidades a satisfazer. Curiosamente, começam a acordar agora concedendo alguns aumentos aos salarios minimos ! Risivel!Os outros, há muito que o dinheiro foi dormir nos off-shores e outros paraísos planetários.

E os EUA, vêm agora num sobressalto de “honestidade” e “transparência” mostrar-nos os documentos que roubaram no Panamá! Para nos ajudar! Só que não há nenhum americano nas listas! Porquê? Quando se sabe que os jornalistas são pagos pelas fundações americanas e Soros, compreendemos o objectivo.

A UE morre de promiscuidade com os especuladores do mundo inteiro, porque abriga no seu seio muitos paraísos fiscais, porque não tem uma política estrangeira que lhe permita, por exemplo, condenar na ONU os massacradores do Povo Palestiniano, que lhe permita fornecer o esforço necessário para combater realmente Daesch, porque a Turquia é um saco sem fundo de problemas para a Europa, mas é ao mesmo tempo um aliado na NATO. A Europa prefere bombardear os Curdos que os Islamistas, que assassinam os cristãos. Os Russos fizeram mais num mês contra os Islamistas, que o Ocidente num ano! A Europa perdeu a sua alma!

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...