quarta-feira, abril 13, 2016

Nós por lá

Paris foi sempre uma festa para a cultura portuguesa. Até há poucas décadas, as nossas vanguardas “bebiam”, com uma reverência quase acrítica, as ondas culturais parisienses. Antes de Berlim, Londres ou Nova Iorque se imporem como espaços de afirmação de padrões contemporâneos para as variadas artes e letras, o sonho criador português realizava-se quase exclusivamente nos “boulevards” parisienses. Para aí rumaram, em ondas temporais muito diversas, os mais dotados ou, pelo menos, os mais afortunados ou mais ousados, dentre quantos tinham real talento para por lá se destacarem.

É uma pouco simpática ironia ter de constatar que a França iria ser, também a par de um destino frequente de exílio, durante a longa ditadura do século XX, o grande porto de acolhimento de centenas de milhares de emigrantes económicos, saídos da pobreza a que foram condenados na terra onde haviam nascido, com o futuro bloqueado pelas guerras coloniais. Passando as “passas de Champigny”, muitas aldeias portuguesas transplantaram gentes para terras de França, confinando-se num registo próximo daquele a que o atraso cultural condenara as suas origens. Só a recuperação da liberdade em Portugal, em 1974, iria iniciar, nessa comunidade, um excessivamente lento movimento de mudança.

Triste é ter de convir que estes dois mundos só raramente se cruzam, vivem ainda hoje em compartimentos separados, por muito que alguma retórica otimista queira fazer transparecer o contrário. E – sejamos justos! – se alguma aproximação já teve lugar, ela foi originada nos setores mais esclarecidos da emigração económica, onde germinaram entretando algumas iniciativas voluntaristas de valia. Infelizmente, o Portugal oficial também nunca teve meios para ajudar a acelerar esta mudança.

Ao longo do último meio século, a Fundação Calouste Gulbenkian, através da sua extensão em Paris, levou a cabo um trabalho relevante de promoção da “alta cultura” (como noutro tempo se dizia) portuguesa, federando lusófilos franceses, influenciando meios académicos e intelectuais. Com naturalidade, ao longo de muitos anos, a Fundação acabou por se revelar mais próxima da nossa vanguarda intelectual, ainda que longe de a representar na sua totalidade, talvez pelo privilégio de atenção que sempre conferiu às áreas culturais mais clássicas. Uma coisa é certa: não foi nunca sua opção ir ao encontro dos outros setores da nossa comunidade.

As coisas mudaram, entretanto. Sem descurar a linha de trabalho anterior, mas numa curiosa “aliança” com gerações que emergem da “nova” comunidade, vivificada esta por profissionais que se destacam nos mais variados domínios da sociedade francesa, parte deles luso-descendentes de segunda geração, há que reconhecer que a Fundação desenvolve, nos dias de hoje, um trabalho muito
mais diversificado e criativo.

Neste cinquentenário da presença da Gulbenkian em Paris, a magnífica exposição da obra de Amadeo de Souza Cardoso, agora  exposta no Grand Palais, e que se soma a um conjunto de outros eventos culturais de grande qualidade neste ano de 2016, cumpre uma dupla função: ajuda a dignificar o nome de Portugal, através da revelação de um extraordinário talento que muito deve à influência cultural francesa, e, simultaneamente, tem como ambição funcionar como catalizador do orgulho que é ser português em França. E talvez seja mais um passo para acelerar o encontro dos vários mundos que por lá nos representam.

(Artigo que hoje publico no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, na qualidade de presidente do Conselho Consultivo da Fundação Calouste Gulbenkian para a sua Delegação em França)

3 comentários:

Anónimo disse...

Embaixador, não esquecer que ultimamente tem sido destino de "filósofos de trazer por casa" "que vivem nas casas dos amigos" e ex ministros que convidam ao duelo.

Anónimo disse...

fale da chandeigne
e de algumas interessantes gentes da segundas e terceira geracoes a quem portugal pouco liga

quanto aos morcoes ha tanto la como ca!

cumprimentos

Anónimo disse...

Nm sempre foi como escreve, caro Francisco. A memõria está a pregar-lhe partidas.

Astrance

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...