Os anglo-saxónicos usam a expressão "old habits die hard" para definirem a dificuldade que temos em nos libertarmos dos velhos hábitos, das rotinas da vida, privada ou profissional.
Hoje, fui almoçar à residência de um embaixador europeu em Lisboa, a seu convite. Foi uma conversa longa, sem agenda visível, em que ambos falámos um pouco de tudo: da política portuguesa, do seu país, das vicissitudes da Europa e de vários outros temas. Ele é um homem preparado, culto e atento. Deu-me a sua visão avalizada sobre vários assuntos, as suas impressões sobre pessoas, a sua leitura sobre questões em curso na Europa e o modo como o seu país as encara. Foram bem mais de duas horas de agradável e proveitosa troca de pontos de vista.
A embaixada em causa situa-se a cinco minutos do local onde vivo. Quando regressei a casa, peguei nos jornais da manhã, que ainda não tinha lido, e fui sentar-me num sofá. À medida que ia passando pelas suas páginas, invadiu-me uma sensação estranha. Sem perceber bem o que se passava, criou-se dentro de mim a perceção de que havia qualquer coisa de errado, de que, na realidade, eu deveria estar a fazer outra coisa e não aquela lúdica e leve leitura. Mas não percebi logo o que era. Passaram uns bons vinte minutos antes que eu tomasse consciência do que, na realidade, ocorria comigo.
Só então entendi. O que é que faltava? O "telegrama"! Como diplomata, habituei-me, imediatamente após um encontro sobre temas políticos numa embaixada, a ir de imediato tomar notas e relatar a Lisboa a minha conversa, as posições ouvidas, aquilo que me parecesse de interesse para Portugal. Ora eu tinha ouvido nessa conversa coisas interessantes, leituras fundamentadas sobre a posição daquele país sobre temas que nos respeitam. Tivesse esta conversa tido lugar num posto onde eu estivesse como embaixador e, com toda a certeza, por uns bons três quartos de hora, eu ficaria "agarrado" ao computador a fazer aquilo que, na ironia da carreira, se chama "um bem elaborado telegrama".
Mas não, nos dias de hoje, estou livre e bem livre dessas tarefas, até porque, nem por uma hora da minha vida, tive alguma vez a mais leve nostalgia desses meus antigos encargos diplomáticos. E, hoje, no momento em que realizei isso mesmo, entrei num súbito estado de bem-estar e "relief".
Penso que os meus antigos colegas da carreira diplomática, portugueses ou estrangeiros, entendem bem esta sensação, esta deformação profissional. Porque, ao mesmo tempo, acaba por ser um imenso prazer constatar que já não temos uma determinada obrigação, que nos livrámos dela. Como diria Pessoa: "Ai que prazer/não cumprir um dever/ter um livro para ler/ e não o fazer". Não se trata de não fazer nada: trata-se de fazer outras coisas, que nos podem conduzir a outros prazeres alternativos.
O meu colega Luís Filipe Castro Mendes, que também é colega de Pessoa na escrita poética, terá, a partir de hoje, uma sensação similar: ir fazer as coisas novas que lhe apraz fazer.
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