No tempo "da outra senhora", o lugar de governador civil, em especial na província, era um posto de alguma importância. Os ministros viajavam pouco, Lisboa podia ficar longe e competia aos governadores informar sobre a realidade local e representar localmente o governo. Porque os autarcas eram nomeados pelo partido único, cabia aos governadores - homens da estrita confiança do governo - um papel decisivo na seleção dos presidentes dos municípios e suas vereações. Daí a importância objetiva desses chefes dos distritos, que alguns relativizavam com maior ou menor simpatia, que a outros enfatuava o porte.
Em Vila Real, recordo-me das caras de vários governadores do Estado Novo. Deles me ficou a imagem de que se passeavam pelas ruas com alguma pompa, acompanhados de figuras, figurantes ou mesmo figurões locais, ungidos da vaidade de serem vistos a fazer parte do serralho do poder. O "senhor governador" era, sem exceção, o centro dessa coreografia, revelando o seu ascendente por um pormenor que, para mim, foi sempre significativo: se, durante o passeio, para sublinhar um argumento, ele decidia travar o passo, logo o rebanho à volta suspendia a marcha e atentava nas importantes palavras que sua excelência entendia relevar. E, ao seu estugar do andamento, todos os outros o seguiam. Se Roland Barthes passasse então em frente à Gomes ou na rua Central, retiraria dali um capítulo para os seus estudos de semiologia. No mínimo, dedicaria uma das suas "Mitologias" a essas curiosas figuras que compunham a teatralidade político-social da ditadura.
Porque me lembrei disto agora? Porque passei, há minutos, junto a um desvio para a aldeia de Moura Morta, entre Castro Daire e Lamego, e recordei-me que havia uma figura dessa aldeia que vinha com frequência a Vila Real e que, pela sua pose e ar majestático era conhecida na cidade, jocosamente, como o "governador civil de Moura Morta". Mas não tinha o exclusivo do apodo: um comerciante de Lordelo, às portas de Vila Real, aliás homem simpático e agradável, possuidor de uma "bela figura" e andar pausado, foi também, durante anos, conhecido como o "governador civil" de Lordelo. De certo modo, estas designações acabavam por ser um implícito reconhecimento do prestígio do cargo.
Com a chegada da democracia, os governadores civis deixaram de ter alguma "graça" - e que me perdoem alguns bons amigos que exerceram esse cargo. Com os autarcas a serem as figuras centrais do jogo político local, esses representantes do poder central foram sendo limitados nos seus poderes. O governo que aí anda decidiu mesmo acabar com eles. Não sou nostálgico, mas a entrada de um governador civil da "outra senhora" na Gomes era um espetáculo!
6 comentários:
Gostei especialmente da expressão «o governo que anda aí»...
O Antoninho de Moura Morta, o dito GC de Moura Morta, não era dessa...Era duma na Régua, que hoje está unida a Vinhós...A de Castro Daire é outra!
sim, eram personagens que ostentavam poder com encenação. a visita do governador civil para inaugurar ou visitar era algo pomposo. lembro-me do de évora, nos anos 50 ou 60 que, tinha como carro oficial um cadillac ou outro americano imponente. e da escolta policial quando se deslocava.
"Com a chegada da democracia, os governadores civis deixaram de ter alguma "graça"....." - mas ainda andaram por cá mais uns 35 anos....
Faz-me lembrar que há uns anos o governador de Coimbra não quis concorrer à Câmara pq não lhe garantia tempo livre suficiente para fazer o doutoramento.
Cumps.
A correcção de Mouramorta está feita, não insisto.
Mas a grafia do tempo era esta que uso, não a de Moura Morta. Da da Régua não sei, da de Castro Daire (que o povo dizia o Crasto, é como afirmo: Mouramorta...
E creio que é assim também que o topónimo aparece no conhecido romance de Aquilino, Volfrâmio.
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