segunda-feira, outubro 07, 2019

O Partido Socialista



O PS ganhou. Não foi uma vitória pírrica, mas foi um resultado que ficou claramente aquém daquilo que a sua governação, nestes quatro anos, justificaria, em termos de reconhecimento político por parte dos portugueses. 

Pela qualidade daquilo que executou, pela sua solidez no plano financeiro e europeu, pela estabilidade “feliz” que proporcionou ao país, num diálogo construtivo à esquerda e com o presidente da República - tudo isso deveria ter conduzido a uma maioria robusta e, mesmo, absoluta. 

O que é que falhou? Muita coisa. Há na imagem que o PS projeta alguns toques que são interpretados como de arrogância, sendo que essa alegada arrogância tem mesmo algumas caras e nomes. É também isso que leva a que todos tivéssemos encontrado, nos últimos meses, muita gente, que se dizia apoiante de António Costa e do PS, a afirmar que preferia que o partido não tivesse uma maioria absoluta, num reflexo quase masoquista só compreensível pela falta de confiança naquilo que o PS faria com essa maioria.

Os socialistas também alienaram, nestes tempos, setores importantes de algumas corporações - médicos, enfermeiros, professores, etc - ou induziram dúvidas noutras, como a magistratura. E isso também se contou ontem em termos de votos. Se o fator incêndios já havia sido relativamente reabsorvido, o escândalo de Tancos foi gerido pessimamente e deu uma imagem muito negativa ao governo, com impacto evidente nas urnas, com os habilidosos “timings” do Ministério Público a ajudarem à festa. 

O PS é um partido que parece não perder uma oportunidade para conseguir perder uma oportunidade, e esta era verdadeiramente única: com a direita em frangalhos, nenhuma conjuntura, nacional e internacional, nos tempos mais próximos, dará ao PS melhores condições para conseguir uma maioria absoluta como as que teve na sua mão, no caminho para estas eleições. 

Agora, nenhuma Geringonça será viável exatamente nos mesmos termos, sendo que um apoio eventual do Bloco de Esquerda, auto-excluídos que os comunistas parece estarem do cenário, a vir a ser conseguido, poderá ter um impacto negativo na identidade ideológica do PS, muito para além do efeito que algumas reversões de 2015 circunstancialmente acarretaram. Resta ainda a incógnita do PAN, cujo apoio também pode ter um custo, em termos de credibilidade e de moderação social, bastante elevado. Não vai ser fácil negociar o futuro.

Porque vivi (com António Costa) num governo que teve de fazer penosas alianças “ad hoc” para se sustentar, não esqueço os abalos, na coerência global do executivo, em que tudo isso resultou, até com registo eterno no anedotário político nacional.

Tenho grande esperança que o instinto de sobrevivência não suplante, no PS, o sentido de rigor e fidelidade ao seu programa. Por mim, com toda a sinceridade, tenho extrema confiança no sentido de responsabilidade de António Costa.

domingo, outubro 06, 2019

Têvês

Ter representantes dos partidos como convidados pelas televisões é sempre uma “seca”: nenhuma novidade sairá da boca de nenhuma daquelas caras, que vão para ali debitar “tempos de antena”, dizendo o óbvio. Uns irão “explorar o sucesso”, outros irão disfarçar as derrotas.

Queremos ouvir a sua voz!


O voto é o momento mais democrático da vida de uma sociedade. O voto de cada um é igual ao voto de qualquer outro.

Intimamente, há ainda muito quem ache que o seu voto, por ser mais informado ou educado, não deveria valer o mesmo que o de pessoas menos conhecedoras ou desinformadas. Esse elitismo, de quantos entendem o seu voto mais “qualificado”, reflete um vetusto sentimento anti-democrático, que, entre nós, esteve subjacente à ditadura, que reservava o direito de voto a uns “happy few”.

Ora é precisamente o saldo de diversidade de perspetivas e sentimentos o verdadeiro “barómetro” da sociedade e do país.

Posso perceber que alguém chegue à urna de voto e decida não escolher entre as opções que lhe são propostas, por não gostar de nenhuma delas ou por se considerar menos informado para escolher. Percebo o voto em branco.

Posso perceber quem, numa reação mais afirmativa, decide riscar a globalidade do boletim ou deixar nele expresso, tornando-o inválido, o que lhe vai na alma (seria, aliás, pedagógico estudar esses ditos), num qualquer gesto expressivo de revolta. Percebo o voto nulo.

Mas não consigo perceber o abstencionista. O abstencionista é um irresponsável e um inconsciente. Não percebo quem, não tomando deliberadamente posição (o voto em branco ou nulo representam, apesar de tudo, uma expressão de respeito mínimo perante o sistema, ao levarem o cidadão a ir ao local de voto), se acha depois no direito de vir protestar pelo andamento das coisas públicas.

Há cidadãos que não gostam daquilo que os que estão (pela vontade coletiva anterior) na gestão do Estado fazem ou não fazem? Então escolham outros em quem tenham confiança de que podem vir a fazer diferente. Ao não votarem, entregam o país àqueles que votam. Repito: depois não têm a menor legitimidade para se queixarem!

O abstencionista é um pária cívico, alguém que, no fundo, acaba por ser indigno da liberdade pela qual alguns lutaram, para que todos tivessem a mesma voz, por forma a, em conjunto, decidirem o futuro do país.

No dia de hoje, apenas me apetece dizer, a quem é de direita ou de esquerda ou de qualquer outro lado: Vote! Queremos ouvir a sua voz!

sábado, outubro 05, 2019

Dia de reflexão


Lisboa, 2012

Ferreira de Oliveira


Estes dias complexos, com acontecimentos mediáticos acumulados, não podem fazer-nos esquecer aqueles que, de uma forma discreta, durante eles se vão afastando da vida. 

Manuel Ferreira de Oliveira, que agora desaparece, foi um grande gestor português, uma figura de destaque do nosso mundo empresarial. Professor catedrático de Engenharia, tinha um impressionante currículo profissional, em especial na área dos petróleos.

Conheci-o no Brasil, há bem mais de uma década, num tempo em que ele presidia à GALP. Graças à sua prestimosa ajuda, e também a sua sensibilidade para as questões culturais, foi-me possível garantir uma interessante participação portuguesa nas comemorações dos 200 anos da ida da corte portuguesa para o Brasil, a qual, de outra maneira, não teria sido viável levar a cabo. Não esqueço isso, como não esqueço a sua permanente cordialidade e simpatia.

Há uns anos, nas Pedras Salgadas, falando com pessoas ligadas ao desenvolvimento que a companhia “Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas” havia prometido para a vila e que viria a frustrar, ouvi da boca de um responsável local: “Nem imagina as saudades que nós temos de Ferreira de Oliveira!” Eram as saudades do modo humano e compreensivo como Ferreira de Oliveira tinha, no passado, gerido a Unicer, proprietária daquela companhia.

Deixo aqui uma muito sincera nota de pesar aos familares do engº Ferreira de Oliveira.

O cardeal


Nunca falei com Tolentino de Mendonça, e só esporadicamente fui leitor do que dele vi escrito por aí. Desse pouco que li, somado a boas opiniões a seu respeito que me têm chegado, resulta uma imagem muito positiva da figura daquele que é o novo cardeal português. 

Olhando as coisas de fora, sinto que a instituição religiosa a que ele pertence, cuja importância continua a ser muito significativa na sociedade portuguesa, sai prestigiada por esta escolha do papa.

Viva a República!


Calem-se ou pagam multa!


Hoje, dia "de reflexão", não se pode falar das eleições na comunicação social. Nem nas redes sociais, presumo. Um país que acreditasse na maturidade dos seus eleitores já teria posto termo a esta ridícula política de "faz-de-conta", que trata os portugueses como crianças.

O meu voto

(“Nunca digas em quem vais votar! O voto é secreto!”, dizia-me alguém um dia, equivocado com o sentido da frase. O voto ser “secreto” significa que ninguém deve ser obrigado a revelá-lo, mas não impede que o anunciemos, se assim quisermos fazer).

Votei sempre ao sabor do meus humores políticos. A liberdade e a independência são isso mesmo.

Votei na CDE durante a ditadura. Depois, nas primeiras eleições livres, em 1975, votei MES (uns gloriosos 1,02%), claro! Repeti o voto no MES em 1976 (“progredimos” para 0,57!). Podíamos ter ido longe, se tivéssemos continuado!

Nas presidenciais desse ano votei Otelo (sim, esse mesmo!), tal como fez Jorge Sampaio e muito boa gente, sabendo bem que não ia ganhar (teve 16,5%), mas para afirmar a minha distância face ao pré-bloco central que avançara com Eanes (em quem vim a votar, com toda a naturalidade, em 1980, menos por ser então a seu favor e, muito mais, por contra Soares Carneiro e a AD que eu detestava).

Em autárquicas, lembro-me de que cheguei a votar APU, porque, tendo vivido em Santo António dos Cavaleiros, agradou-me a gestão municipal de Severiano Falcão, em Loures.

Nas eleições legislativas e autárquicas seguintes, creio que sem exceção até hoje, depois dos “gestos” no MES em 75/76, sempre que votei, votei no PS, ou no seu bizarro e falhado heterónimo FRS. Mas, algumas vezes, nem sei bem porquê, abstive-me.

Em presidenciais, votei sucessivamente em Salgado Zenha (na segunda volta, em Mário Soares), em Mário Soares, duas vezes em Jorge Sampaio, de novo em Soares (estando Manuel Alegre na contenda), depois em Alegre e, finalmente, em Sampaio da Nóvoa.

Constato que nunca votei à direita, mas costumo dizer que, em presidenciais, poderia tê-lo feito se o candidato fosse Francisco Pinto Balsemão (e desde que não me agradasse o nome da esquerda) e não excluo poder vir a votar na reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa, se o seu comportamento e equidistância se mantiverem de um modo que continue a apreciar.

Esta minha “transparência” (que percebo não ser muito comum) serve de prólogo a uma banalidade: no domingo, vou votar PS. Vou votar, essencialmente, em António Costa, porque é alguém que demonstra ser, a grande distância, a pessoa mais bem preparada para dirigir o país.

Teve a arte de escolher Mário Centeno, soube fazer uma opção inteligente pelo respeito pelos compromissos internacionais do país, ganhou respeitabilidade na Europa e (contra a minha opinião, mas quem estava errado era eu) fez uma aliança parlamentar com a “esquerda da esquerda”, sabendo repor justiça e humanidade nas políticas públicas, depois de uns anos para esquecer.

O PS de António Costa (e sublinho ser “este” PS, e não, necessariamente, um outro qualquer) é, na minha perpetiva, o partido mais equilibrado do nosso espetro político, combinando um forte sentido social com uma visão moderna da sociedade. Tem defeitos? Imensos! Mas acho que tem muito menos do que os outros.

Por isso, embora pessoalmente não o subscrevendo, gostava que alguns amigos mais relutantes seguissem o lema de Alexandre O’Neill: “Ele não merece, mas eu voto PS”.

sexta-feira, outubro 04, 2019

Freitas do Amaral - a solidão política

Diogo Freitas do Amaral foi sempre muito enfático ao refutar a ideia de que o seu percurso político tivesse sido marcado por qualquer incoerência ou ziguezaguear ideológico. Na sua perspetiva, a realidade envolvente é que foi mudando, tendo ele permanecido rigorosamente no mesmo lugar, o que acabou por alterar, aos olhos exteriores, a sua posição relativa face a alguns dos principais atores políticos. Não é claro que as coisas tivessem sido exatamente assim, mas há alguma verdade nisso.

É que há algo que parece evidente: no plano estrito das ideias, há que convir que a evolução de Freitas de Amaral se fez sempre num quadro de razoabilidade e moderação, que eram a sua indiscutível imagem de marca. Mas, obviamente, creio que ele próprio sempre entendeu que ser visto num dia ao lado de Durão Barroso e no outro de José Sócrates não deixava de ser impressivo, e chocante, para o observador externo. E essa era talvez a razão porque sempre sentia necessidade de se justificar.

A presidência

Tenho para mim que Freitas do Amaral sempre considerou que o seu imenso capital de experiência política era mal aproveitado pelo país. Tendo chegado à soleira de Belém em 1986, para depois ser tratado de forma vil por uma família partidária próxima por quem dera a cara, Freitas terá considerado que a hipótese de um “remake” com sucesso não estava afastada por completo.

Posso estar errado, mas acho que Mário Soares foi sempre o grande “culpado” pelo alimentar desse sonho. Como nas grandes batalhas militares em que os generais opostos acabam por gerar a estranha afetividade dos contrários, Soares e Freitas conseguiram ultrapassar a ferocidade, até verbal, da contenda de 1986, vindo a estabelecer entre si uma espécie de “entente”, mais do que cordial, que, na minha perspetiva, tinha a fidelidade comum à ideia da bondade do projeto europeu como o cimento de união.

O sonho da Presidência da República, a meu ver, esteve presente em Freitas do Amaral até à sua entrada, como independente, como ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates. O seu regresso às Necessidades, onde estivera quase duas décadas antes, criava-lhe um estatuto que ele entendia poder ser um degrau potencial para proporcionar a hipótese do acesso a Belém. Freitas terá medido mal duas coisas: a desafetação que o setor conservador do país tinha criado em torno do seu nome, visto como alguém que se “mudara” para o campo contrário, e o escasso apelo que uma sua candidatura poderia suscitar à esquerda, que nem o apoio de Soares e Sócrates era capaz de ultrapassar.

O partido

Difícil e dolorosa foi a relação de Freitas do Amaral com o partido que criou em 1974. O CDS havia sido um ato de coragem cívica, ao permitir um espaço institucional de acolhimento de quantos se não reviam no tropismo socializante da Revolução. Do mesmo modo, havia sido corajosa, e coerente, a decisão de fazer o partido quebrar o unanimismo na aprovação da Constituição, em 1976. O CDS e Freitas do Amaral pagaram, com essa atitude, um preço pesado, em termos de estatuto no campo democrático.

Limitado, desde o início, pela lógica de proselitismo eleitoral no campo da direita (recordo que a semântica política era outra, à época), Freitas cedo percebeu que a capacidade de afirmação política do seu partido, em termos de governação, obrigava a delicados jogos de aliança. Se não tinha votos, o CDS tinha pessoas, era esse o seu património e era por aí que poderia consagrar-se. E Freitas fê-lo, exemplarmente, num acordo com Sá Carneiro.

A morte de Sá Carneiro e de Amaro da Costa, alter ego de Freitas, viria a decapitar um certo projeto da direita portuguesa, que a frustrada candidatura presidencial de Soares Carneiro potenciaria. Freitas afastar-se-ia mais tarde do CDS e o partido, nas suas diversas encarnações, passou a exorcizá-lo, através do endeusamento de Amaro da Costa, cuja memória passou a ser arremessada, com regularidade, contra a imagem de Freitas. A retirada do retrato do fundador do partido das paredes da sede, um ato de falsificação da História cometido no consulado de Paulo Portas, representa talvez o ponto mais baixo dessa “vendetta”, cuja ingratidão muito terá ferido Freitas do Amaral.

O Estado

Freitas nasce para o Estado com o 25 de Abril, ao ser convidado, sob o sobrolho cerrado de alguns, a integrar o Conselho de Estado. O seu estatuto académico, a imagem madura “avant la lettre” e uma certa “gravitas” concederam ao trintão Diogo Freitas do Amaral um estatuto que acabou por induzi-lo a criar um partido conservador democrático, explorando a necessidade que os militares sentiam de, feita a Revolução, construir o Estado, em moldes equilibrados que permitissem a aceitabilidade externa do regime.

O CDS de Freitas de Amaral não conseguiu, contudo, integrar qualquer dos governos provisórios, ao contrário do PPD (hoje PSD) e do PCP, bem como do partido heterónimo deste, o MDP-CDE. Só a vitória da direita, na viragem da década, levará Freitas e o CDS ao governo.

Freitas do Amaral mostrou, em todas as funções políticas que desempenhou, uma forte dedicação ao serviço público, um elevado sentido de Estado e uma qualidade de intervenção que nunca ninguém disputou com seriedade, para além das naturais divergências políticas. Refiro as duas passagens pela pasta dos Negócios Estrangeiros, de que fui testemunha próxima, mas igualmente no exercício do cargo de presidente da Assembleia Geral da ONU, um lugar que, não sendo executivo, tem uma delicadeza em termos de exercício que Freitas do Amaral soube interpretar com sabedoria, inteligência e uma forte cultura que era a sua, para prestígio de Portugal - afinal, o seu grande desiderato nos lugares por que passou.

O homem

Só bastante tarde, na minha vida, vim a conhecer pessoalmente Freitas do Amaral. Foi em 1999, em Nova Iorque, onde ambos tínhamos ido em trabalho. Depois de um jantar, pelas ruas, confessei-lhe que, nas presidenciais de 1986, eu chegara a temer que, a coberto da sua candidatura presidencial, “viesse por aí o fascismo”. Freitas do Amaral riu-se e disse esperar que eu tivesse ficado, entretanto, definitivamente convencido de que ele não era “um fascista”. Não era, disse-lhe que achava que ele era uma espécie de conservador inglês, nos tempos em que a maturidade já me permitia ter isso como um elogio. Nos dias de hoje, já nem sei...

Seria de novo em Nova Iorque, para onde eu entretanto fora viver, dois anos depois, que nos reencontraríamos. Alguns amigos políticos de Diogo Freitas do Amaral estavam furiosos com ele, por ter editado uma peça de teatro que foi lida como uma “deslealdade” face à memória de Marcelo Caetano. No almoço que lhe ofereci, revelou-me alguma mágoa com essas atitudes, que via como injustas.

Cruzámo-nos depois, uma ou outra vez, em Lisboa. Depois, em Brasília, em 2005, com ele já de novo como ministro, apreciei o modo assertivo como expunha a política externa do novo governo que integrava, numa atitude que mostrava, simultaneamente, um grande à-vontade no exercício do cargo mas também uma perspetiva muito nacional da função, diria mesmo que um pouco dissonante com o modelo “formatado” de diplomacia que prevalecia numa União Europeia, onde a máquina obedecia a uma linguagem cada vez mais comum. Fiquei curioso em ver o impacto futuro do estilo, mas Freitas do Amaral acabaria por ser obrigado, por razões de saúde, a abandonar o executivo.

Faz hoje precisamente uma semana, voltámos a coincidir, na mesma sala do serviço de um hospital, onde eu estava por uma coisa simples e onde ele tentava recuperar de um último esforço para superar a nova doença que agora lhe poria um ponto final na vida. Já não falámos.

(Texto escrito a convite da SAPO no respetivo site)

A solidão política


A “Sapo” pediu-me um texto sobre Diogo Feitas do Amaral, por ocasião da sua morte. Pode lê-lo aqui.

Portugal


Há pouco mais de uma semana, num debate com Rui Ramos do Círculo Eça de Queirós, procurei sublinhar o caráter atrativo do nosso país para o investimento estrangeiro. 

Aqui está um retrato jornalístico dessa realidade, que só não vê quem não quer.

quinta-feira, outubro 03, 2019

Freitas do Amaral


Em setembro de 1999, eu saía de um hotel, em Nova Iorque, onde participava numa Assembleia Geral da ONU, para ir jantar com membros da nossa delegação. Cruzei-me com Freitas do Amaral, que ali tinha ido para um encontro de antigos presidentes da Assembleia Geral. Constatando que ele não tinha jantar programado, convidei-o a juntar-se-nos. Foi uma bela ocasião, em que aproveitei para “puxar” pelas suas recordações dos tempos do pós-25 de abril. 

A noite estava ótima, à saída desse restaurante na Madison. Viemos a conversar os dois até ao hotel e tive então a coragem de dizer a Freitas do Amaral, pessoa com quem verdadeiramente nunca tinha tido uma conversa serena a dois (mais tarde, falaríamos mais longamente, em várias outras ocasiões), que ele me tinha “pregado o maior susto político da vida”.

Eu tinha chegado a Portugal em fins de 1985, vindo da nossa embaixada em Luanda, e fiz uma imersão rápida num país político que estava num confronto crispado, nas eleições presidenciais de então. O discurso da candidatura de Freitas de Amaral, com laivos revanchistas, assustou-me bastante. Por detrás dos chapéus de palhinha e dos "loden" verde-garrafa, que marcavam a imagem dessa campanha, eu via então escondido um Portugal contra o qual, pouco mais de uma década antes, me empenhara, política e militarmente, no 25 de abril. 

Algumas das caras que rodeavam Freitas do Amaral eram para mim sinistras, representavam muito daquilo que eu detestava na direita portuguesa e, claro, não me mereciam a menor confiança democrática. (Em alguns casos, estava errado, reconheço hoje). Por semanas, criei mesmo a exagerada sensação de que uma eventual chegada de Freitas a Belém poderia significar o início de um regresso ao fascismo. Por isso, a vitória final de Mário Soares (eu que até votara em Salgado Zenha, na primeira volta), acabou por ser um dos mais felizes momentos políticos da minha vida.

Nessa noite de Nova Iorque, achei que tinha o dever de contar isto a Freitas do Amaral, que sorriu e me disse: “Espero que, com o passar dos anos, tenha percebido que eu nunca fui um fascista". Ele tinha toda a razão. Com serenidade e com a distância do tempo, reconheço em Freitas do Amaral um conservador, um pouco ao estilo britânico, mas sempre e indiscutivelmente um democrata.

Para quantos, à esquerda, nunca dele gostaram, acho importante lembrar três coisas, que às gerações mais novas podem hoje parecer despiciendas. 

A primeira é que foi preciso uma grande coragem para criar o CDS, no início da Revolução, como um partido que deu acolhimento, institucional e democrático, a quantos não se sentiam confortáveis na onda maioritária saída do 25 de abril. E que tinham toda a legitimidade para assim pensarem.

A segunda é que Freitas do Amaral, para surpresa de muitos, foi uma das vozes que, no Conselho de Estado, em 1974, se recusou a conceder poderes de exceção ao general Spínola, que lhe permitiriam encetar uma deriva autoritária contra o 25 de abril. Não foi o único, mas o simbolismo da sua voz foi muito importante.

Finalmente, nunca ninguém pôde imputar a Freitas do Amaral qualquer promoção dos movimentos anti-democráticos de direita radical, que espalharam ódio e bombas pelo país, nesses tempos revolucionários. De certas figuras incensadas do regime, algumas até de esquerda, não se pode dizer o mesmo.

Quero com tudo isto reiterar que não tenho hoje a menor dúvida de que Freitas do Amaral foi sempre um democrata - porque é o respeito institucional pela democracia, e só esse, o único critério que o define. 

Foi, além disso, uma figura intelectual e académica de destaque, que, no cumprimento das muitas funções de Estado que lhe coube exercer ao longo destas décadas, o fez sempre com empenhamento e grande sentido de serviço público para Portugal, e isso não é menos importante.

O percurso cívico de Freitas do Amaral, as suas opções pessoais em termos de afinidades políticas conjunturais, pode ser objeto de todas as críticas e quiçá de acusações de alguma incoerência, não obstante ele tê-las sempre rejeitado. 

Mas, no dia de hoje, no dia da sua morte, não tenho a menor dúvida de que, na galeria dos fundadores do regime iniciado em 1974, o seu retrato tem de figurar.

“Fascismo nunca mais!”


O fascismo, que agora aí anda travestido de várias coisas, não morreu, como é óbvio, com o 25 de abril. Nos tempos seguintes à Revolução, houve momentos tensos em que, nas ruas, foi necessário fazer algumas “barricadas” políticas aos saudosistas do tempo da “outra senhora”. 

Quem me contou esta história não me soube identificar, com exatidão, um desses momentos que terá justificado que pessoas viessem para a rua manifestar a sua indignação por uma qualquer circunstância que, aparentemente, podia significar algum risco de regresso a esse vil passado.

Nessa ocasião, uma jovem anunciou em casa a sua ida a uma manifestação de protesto público. Disse à avó, uma senhora idosa, de uma geração social mais propensa a atitudes conservadoras, o que ia fazer e por que o fazia. Com alguma surpresa, constatou que a senhora partilhava em pleno da sua indignação e, mais do que isso, se dispunha mesmo a acompanhá-la à manifestação. E lá foram as duas.

Houve discursatas, como é da regra destas coisas. A jovem olhava para a avó, ficando satisfeita por vê-la pontuar com a cabeça a sua concordância com o sentido daquilo que, por ali, era defendido.

A certa altura, dos discursos passou-se às palavras de ordem. A senhora não alinhava no coro coletivo mas acabou por se destacar fortemente no seio da multidão. É que, logo que toda a gente acabava de gritar, em coro, “Fascismo nunca mais!”, a avó completava, sozinha mas em voz bem alta e audível, com um indignado “De todo!”

quarta-feira, outubro 02, 2019

Chirac e os seus pares


A morte de Jacques Chirac, e um sentimento de perda que, com ela, atravessou a França, suscita uma reflexão sobre a relação desta com os seus presidentes, desde o fim do regime parlamentar. 

Charles de Gaulle, um militar que havia sido herói político de uma guerra que a França perdeu, mas que ele teve artes de transformar em vencedora, viria mais tarde a ser o recurso de excelência de um país a que o processo descolonizador havia induzido graves tensões institucionais. O seu papel de “pai da pátria” trouxe consigo um carisma que nunca mais se repetiria.

Saído De Gaulle, a elite política e económica francesa sustentou-se nas rédeas do país por mais 12 anos, nos mandatos de Georges Pompidou e de Giscard d’Estaing. Ambos brilhantes, o primeiro um intelectual oriundo da banca, o segundo um financista de perfil orleanista, partilhavam, contudo, uma escassa ligação afetiva à França profunda. 

A esquerda conseguiu romper a hegemonia conservadora, elegendo um “vieux routier” político de perfil cínico e majestático. François Mitterrand pilotou muito bem a França no tempo complexo do fim da Guerra Fria, foi protagonista central dos novos equilíbrios europeus, adaptando-se bem a uma V República que antes tinha como inimigo jurado. Depois de De Gaulle, consagrar-se-ia como o grande presidente da França.

E surgiu Chirac. Nem muito brilhante nem muito intelectual, era imensamente francês na sua ligação ao “terroir” e aos seus agricultores. Enobreceu-se na reconciliação histórica com algum passado da França, foi a barreira da decência contra o pai Le Pen, esteve no sítio certo face aos americanos, isto é, ao seu lado depois do 11 de setembro e contra eles na agressão ao Iraque. Pelo caminho, envolveu-se em pecadilhos financeiros que parece fazerem parte do ADN político da França.

As subsequentes fragilidades dos mandatos de Nicolas Sarkozy e de François Hollande também justificam, para muitos, alguma saudade de Chirac. Sarkozy foi um “Nixon à francesa”, inteligente, mas com a ambição a gerir-lhe os princípios. Hollande foi apenas um “bom tipo”, um falhado herdeiro de Mitterrand, a que, na melhor das hipóteses, a História dará um pé-de-página piedoso.

A França parece apreciar ser representada por quem, ao mesmo tempo, goste genuína e quase chauvinisticamente dos franceses, lhes transpire orgulhosa e exageradamente as qualidades e, na medida do possível, os consiga fazer sentir menos culpados pelos seus defeitos. Chirac era exatamente isso. Não tenho a certeza de que Emmanuel Macron o seja.

terça-feira, outubro 01, 2019

Saída do cinema


Caricaturas da História


Durante a Guerra Fria, da cinematografia e da literatura de espionagem que nos chegava, o inimigo era facilmente identificável: os comunistas. Antes, os “maus da fita” tinham sido os nazis alemães, depois passaram a ser os “vermelhos”. O maniqueísmo facilita imenso a vida.

Os “bons” eram sempre os ocidentais, com os seus serviços secretos eficazes e inteligentes, leais às suas pátrias, corajosos, dispostos a sacrificarem-se pela liberdade global dos povos. Eram, em geral, ingleses e americanos, representados na pantalha por “beautiful people”. Os poucos que, do lado de cá, se colocavam ao serviço do outro lado, por fanatismo ideológico ou por fraqueza material sempre devida a falha de caráter, eram tidos como desprezíveis traidores. Apenas alguma melhor literatura foi capaz de ir um pouco mais longe numa análise mais sofisticada de motivações.

Os “maus” eram uma caricatura sempre fácil de fazer. Quase sempre feios (o que facilita o reconhecimento imediato), ou bonitos mas nesse caso gélidos, eram tributários de uma hierarquia impiedosa, peças de uma máquina sinistra, gerida apenas numa lógica de finalidades, onde “valia tudo” para atingir os seus sinistros objetivos. Quando, num rebate de consciência ou por outra razão mais comezinha, algum desses “maus” se decidia passar para o lado “bom”, nunca o qualificativo de traidor se lhe aplicava: juntar-se ao lado “certo” da História isentava-os do labéu. A ordem dos valores tinha consequências semânticas.

O fim da Guerra Fria confundiu, por algum tempo, os desenhadores da História conveniente. O que sobrara da implosão da União Soviética, da Rússia aos restos do Cáucaso e da Ásia Central, passou a ser apresentado como um completo caos, em que preponderavam déspotas sucessores do comunismo, oligarcas e o sub-mundo do crime organizado, não se percebendo bem onde cada uma dessas coisas terminava. Eram películas cinzentas, sem sol, onde um mundo de miséria e ruínas urbanas dava razão póstuma à teimosia ocidental que abalara o Kremlin e, em Berlim, derrubara um muro. 

O 11 de setembro abriu uma nova frente de diabolização: permitiu dar aberta legitimidade à islamofobia, que rapidamente passou a ser um dos fatores centrais na equação das forças do “mal”. Veio depois o Estado Islâmico, bem como as metástases terroristas, e, com a guerra na Síria, juntou-se finalmente ao grupo o Irão, hoje destacado como uma das forças essenciais do “eixo do mal” que preocupa o ocidente, leia-se Washington. Pouco já deve faltar para a China surgir como o novo “satã”.

Dei comigo a pensar isto ao fim de alguns milhares de páginas de alguns “thrillers” da moda, que por aí se vendem como manteiga e que eu tenho consumido como diversão, nestes tempos em que só quero “sopas e descanso”. E também concluí, com facilidade, que há uma entidade que, com escassos “mas”, sempre com muita dose de admiração, surge nesses confrontos, nuns casos abertamente incensada como a fonte do “bem” estratégico, noutros realisticamente assumida como útil subcontratante para algum “dirty work” que o mundo ocidental (leia-se, de novo, Washington) decide não ser ele próprio a executar. Essa entidade, que os cuidados primários de credibilidade política aconselham sempre a que se trate com pinças, é Israel.

Esta é uma análise simples, reconheço até que simplista.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Do meu inglês a Forsyth


Recordo-me de que, em casa dos meus pais, lá por Vila Real, os escassos livros numa língua estrangeira (e não eram, de facto, muitos) que andavam pelas estantes estavam escritos em francês. O meu pai era um francófilo assumido, dava “explicações” (gratuitas, por gosto pessoal), aos estudantes da família e filhos de amigos.

O modelo de ensino em Portugal consagrava uma subalternidade da língua inglesa, e a sociedade portuguesa viveu isso de forma muito clara até à viragem dos anos 60 para 70. Só o posterior impacto da economia nas relações de poder entre os Estados ocidentais iria acabar por colocar o inglês (em grande parte, devido aos americanos) no posto de comando (até ver, definitivo) das línguas à escala global. E Portugal não fugiu a esse tropismo.

O inglês, só ensinado a todos entre os 13 e os 15 anos, eram duas aulas por semana que, pelo menos, num desses anos, tiveram a graça de serem dadas por uma professora jovem e gira, que era um estímulo, embora não necessariamente didático, das hostes adolescentes. Por essa pouca aprendizagem, à saída do liceu, eu tinha um inglês muito hesitante, “de aeroporto”, de léxico reduzido, que dava para ler a “Time” ou a “Newsweek” e para dizer o essencial nas viagens que cada vez mais procurava fazer. Mas ficava muito aquém do domínio que tinha do francês, que eu “tinha a mania” (expressão do meu pai) que falava bem melhor. E falava.

Mas, no íntimo, por esses tempos, ia criando a crescente consciência de que precisava de melhorar a minha aprendizagem da língua. No inverno de 1972, numa semana de férias que passei em Nova Iorque, deu-me para ir a um teatro “off Broadway”, assistir a uma peça conhecida de Tennessee Williams. Saí da sessão furioso comigo mesmo: não tinha percebido quase nada dos diálogos em palco. Regressei a Portugal determinado a corrigir isso. Mas como estava então com o curso universitário suspenso, empregado num banco, nem de longe me podendo permitir sonhar em fazer um dispendioso curso de “imersão total” em Inglaterra, onde aliás nunca tinha ido, tinha de ser modesto nas ambições que acalentava.

Contudo, a verdade é que o meu “curto” inglês acabaria, afinal, por ser suficiente para “passar” na prova de línguas de acesso ao MNE. Não muito tempo após a minha entrada para as Necessidades, fui, em 1976, um dos primeiros funcionários a solicitar uma pequena ajuda financeira, prevista no estatuto mas que nunca tinha sido utilizada, para custear aulas externas de língua inglesa. Tenho na memória ter assistido a aulas em grupo num primeiro andar do Centro Cultural Americano, na avenida Duque de Loulé, em horário pós-laboral.

Um dia, à conversa, comentei com um amigo que continuava a ter bastante dificuldade em ler obras de ficção escritas em língua inglesa. Lia, sem quaisquer problemas, história, biografias, “current issues”, mas, sempre que pegava num romance, perdia-me cedo e acabava por desistir.

Esse meu querido amigo, António Pinto Rodrigues, que já se foi há muito (e com quem escrevi e editei, em 1975, o livro “O Caso República”), deu-me então um conselho valiosíssimo: “Começa a ler um livro que, à partida, tenhas a certeza de que te vai interessar. Passa à frente as palavras que não te disserem nada, não pares, não uses nunca dicionários nem tomes notas de palavras, mantém firmemente concentrado no mesmo ritmo de leitura. Verás que, ao final de umas horas, o livro captou-te e te habituas, em definitivo”.

O António era casado com uma americana meia-brasileira, a Dee, e imagino que isso tenha ajudado ao inglês dele. A mim, foi esse seu conselho que me abriu, em definitivo, o caminho de acesso para alguma ficção anglo-saxónica. Valha a verdade que, noutras obras de criação literária de língua inglesa, mais complexas e elaboradas, continuo a recorrer a traduções em português.

Mas a que propósito vem isto, perguntará o leitor? É muito simples: o meu amigo António deu-me nessa altura, como exemplo de coisas a ler, com garantia de interesse assegurado, os “thrillers” de Frederick Forsyth, que estavam a ter imenso sucesso, onde a espionagem se misturava com a aventura política. Aceitei a sugestão e, de facto, fiquei logo “apaixonado” pelo estilo. A partir daí, li creio que quase tudo o que ele publicou, em termos de obras de ficção. Ontem, no quarto do hospital, que acaba por ser uma bela sala de leitura, terminei, em escassas horas, o que julgo ser o seu último romance: “The Fox”.

E?

E não gostei! A fórmula está visivelmente cansada, no género há hoje quem escreva bem melhor, o recurso a referências especializadas, utilizado para dar mais plausibilidade às histórias, funciona já como um truque pouco convincente, tudo isto dentro de um texto recheado de inferências pouco credíveis, de “jogos de sombras” muito batidos.

Forsyth foi-me muito útil há meio século - e estou-lhe eternamente grato por isso. Com o tempo, contudo, foi-me desiludindo - ou talvez tenha sido eu quem se tornou mais exigente. Seja por que razão for, este foi, seguramente, o derradeiro romance de Forsyth que li.

domingo, setembro 29, 2019

Esquerda - direita


- Há que reconhecer que foram anos muito difíceis para a direita. Foi sujeita a um grande desgaste, manteve-se sempre com grande dificuldade. Chegou a ser doloroso.

- Tudo bem, mas olha que, com esse panorama na direita, há que “tirar o chapéu” à esquerda. Aguentou forte e feio e, no fundo, toda a estabilidade, nos últimos anos, a ela se ficou a dever. Agora, de certa maneira, a esquerda começa a pagar por isso. É nela que todas as tensões se refletem.

- Teremos de ver como é que a direita se vai comportar. Reconstituída, pode ser que venha a ter um novo futuro. 

- Eu por mim, confesso, agora, quero é esquecer a direita, que ela me não cause preocupações, já me deu cabo do juízo por muitos anos. No imediato, a minha preocupação é a esquerda. Não quero ver nela surgir uma crise grave, porque é com ela essencialmente que conto, nos tempos mais próximos, para isto andar para a frente.

Esta conversa, com um amigo, depois da operação a que a minha perna direita foi há dias sujeita, no joelho, nunca aconteceu, claro.

sábado, setembro 28, 2019

Canadianas


Alguém me sabe explicar por que razão estes elegantes auxiliares de marcha, de que me não vou livrar tão cedo, se chamam “canadianas”?

Encore Pivot