sábado, junho 16, 2018

Arte

Dois quadros ou dois filmes ou dois livros precisam de ser comparados? Por que diabo não olhamos a fabulosa arte de Cristiano Ronaldo em si mesma, na sua genialidade, no trabalho e dedicação profissional que tem por detrás, no brio e superação constante colocado no apuramento da forma física, na beleza do pontapé de bicicleta de há semanas, na geometria quase divinal daquele livre de ontem, na serenidade segura na hora da marcação do penalti? Por que é que temos de estar sempre a compará-lo com Lionel Messi, outro artista de grande nível, cujo rendilhado de jogo dá imenso prazer observar? A arte compara-se? Para quê?

O títular

Vivia fora de Lisboa, em quinta de casa apalaçada. Andava de anel de brasão, sempre a alardear uma suposta linhagem, a importância de um título qualquer que dizia que herdara. Quando se dignava vir à capital, chegava sempre atrasado a tudo para que era convidado. 

Um dia, alguns seus conhecidos interrogaram-se sobre aquele vício de falta de educação, muito desrespeitoso para com os outros. Foi então que alguém revelou: é que ele nunca usa auto-estradas, anda sempre por vias secundárias e, por isso, gasta mais tempo. Mas porquê? Para não pagar portagens? Nada disso, explicou a pessoa. Porque, um dia, viu numa portagem ”Retire o título” e, claro, recusou!

Dia de S. Ronaldo

Ontem, vi o Portugal-Espanha em diferido. Frequentemente, opto por não assistir, em direto, a jogos de futebol que sei que me vão provocar stress. Há muito pouco tempo, fiz uma exceção a esta regra e acabei a ter de tomar um Lexotan. Cada um é como é.

Ontem, ia eu a conduzir por uma estrada na periferia de Lisboa, a caminho de um jantar, quando fui ultrapassado por um carro, buzinando furiosamente. À passagem, vi o punho erguido do condutor, numa gesticulação que li como ameaçadora. Estranhei muito: eu nada tinha feito de errado. Os meus companheiros de viagem, estrangeiros, ilibaram-me de quaisquer culpas de condução. E lá continuámos. Verifiquei mais tarde que a ultrapassagem coincidira com o primeiro golo de Portugal.

Foi um belo dia de S. Ronaldo, a quem os espanhóis teimam em chamar Cristiano.

Dito


“... e foi assim que ele conseguiu dar a mão à palmatória sem dar o braço a torcer”. E, sem dizer como, virou a esquina

sexta-feira, junho 15, 2018

“Smile me!”


Passei por lá há minutos. Foi uma residência universitária, na lisboeta rua das Praças, entre a Lapa e a Madragoa. Hoje, a olhar pelos operários no descanso, de lancheira à ilharga, na soleira da porta, o edifício deve estar prestes a ser transformado em apartamentos de luxo, com uma bela vista para o Tejo.

Nesses anos 60 do século passado, ali se recolhiam dezenas de estudantes vindos da província, cujos pais tinham posses para os manter na capital. Com maior ou menor sucesso académico, claro.

O Alexandre era um deles. Transmontano, “bon vivant” e um coração de ouro, era (e é) um amigo “de primeira”. À época, estava sempre disponível para todo o tipo de aventuras noturnas. Recordo farras homéricas no Bairro Alto, um incontável São João em Évora, jantaradas bem regadas no “Calhau”, um restaurante que existiu na esquina traseira do Politeama, no “Rancho Grande”, esse por detrás do Paladium, ou no “Café Colonial”, na Almirante Reis, onde havia um bacalhau à Braz que o Zé Cardoso Pires, numa noite da “dois” no Procópio, crismou de “imbatível em Portugal & Colónias”. Como aluno, não deixou saudades aos professores, nem marcas de grande mérito pelas pautas. Entre o 10 e o 13, oscilavam as suas classificações. Estudava o mínimo, gozava o máximo e divertia-se quanto podia. E teve sucesso na vida, diga-se.

Um dia, levou-me a uma festa da Casa de Trás-os-Montes, na Feira Popular. A certo passo, depois de muitos copos, saídos de pipos vindos do Norte, vi-o de braço dado com um senhor que à época me pareceu idoso, rotundo, em troca galhofeira de graças. Reconhecendo o seu parceiro de conversa, adverti-o, em voz baixa “Tu sabes quem é esse tipo? É o almirante Quintanilha de Mendonça Dias, ministro da Marinha!”. O Alexandre não se assustou: “Ai é? Olha que é um bom copo!”. E lá continuou na conversa animada com o marinheiro, ambos já um pouco toldados. Tinham concluído que eram conterrâneos, imaginem!

O Alexandre ficou famoso quando, um dia, foi expulso no meio de um exame. O professor era o José Maria Gaspar, à época alto dirigente do Benfica. A cadeira era “Política Social”. Discutiam-se os incentivos ao trabalho no “Ultramar”, em especial os métodos para evitar a instabilidade na fixação dos trabalhadores, que andavam de emprego em emprego, à busca das melhores condições. Na sua “sebenta”, José Maria Gaspar elencava uma dezena de medidas possíveis. Com a matéria “colada com cuspo”, como então se dizia, o Alexandre recordava-se apenas de duas ou três. O Gaspar insistia, mas da memória do Alexandre, embotada pela borga da véspera, não saía nada. Salvo, a certo ponto, esta “pérola”: “Bom, se o patrão lhes arranjar umas pretinhas para animar as noites, eles são capazes de não se irem embora!”. Recordo, visto da plateia, o momento de “suspense”, o braço estendido do Gaspar, a acompanhar o sonoro e irado “Ponha-se já lá fora, seu ignorante!”, connosco a sair da sala num roldão, atrás do Alexandre, em gargalhadas contidas até ao corredor, onde os mármores da ala nova da Junqueira fizeram ecoar em uníssono a nossa solidariedade com aquela magnífica (hoje politicamente incorreta, eu sei!) “trouvaille”.

Mas voltemos à casa da rua das Praças, por cuja porta, como disse, há pouco passei. Num desses dias da despedida da década de 60, num fim de tarde, o pessoal mais apto do lar de estudantes tinha conseguido “engatar”, na rua, um bando de inglesas que andavam de passeio por Lisboa. Escudadas umas nas outras, elas havia tido a ousadia de aceitar o convite para “visitar” o lar e “ver a vista do Tejo”, entrando naquele antro exclusivamente masculino. Eram muitas e a notícia correu célere. Foi chamado “em reforço” pessoal do Quelhas, da rua da Paz e de Alcântara, e logo montado um baile “à maneira”. As “bifas” alinhavam, de bom grado, já com uns copos à mistura. A noite prometia.

O Alexandre ferrou logo uma, uma ruiva saltitante. As coisas “foram andando” no adequado ambiente de “slows”, até que, num determinado momento de uma dança, ouviu-se-lhe, alto: “Esta gaja parece parva!”. A inglesa era simpática, muito sorridente e parecia bastante satisfeita, nos braços do Alexandre. Por isso, toda a gente estranhou o seu comentário, ele que era normalmente educado para com as damas. Mas ambos continuaram a dançar, embora o Alexandre estivesse com “cara de caso”. Minutos depois, voltou a queixar-se: “Não percebe nada, esta tipa!”.

Alguém procurou então esclarecer o mal-estar do Alexandre. E ele explicou: tinha pedido um beijo à inglesa e ela só se ria. E contava, desgostoso: “Eu digo-lhe ‘smile me’ e ela ri-se!” 

Não sei se, depois de alguém ter explicado ao Alexandre que devia ter dito “kiss me”, a tarde romântica luso-britânica se compôs. Só sei que a historieta ficou para sempre na (nossa) antologia de histórias de amigos. Como terá entretanto evoluído o Inglês do Alexandre?


(Dedico esta prosa ao meu amigo Manuel Amorim Carvalho, que conhece estes episódios melhor do que ninguém)

Liberdades



Quem quiser pode não gostar da fotografia que acabo de tirar do meu jardim. Não se livram, contudo, de que eu diga que têm mau gosto.

2500


O editor de Opinião deste jornal informou-me, na manhã de ontem, que a nova estrutura gráfica obrigava a que estas crónicas, imperativamente, não ultrapassassem os 2500 carateres (com espaços, como se diz na linguagem dos textos). Ele sabia bem por que me avisava: é que este escriba excedia regularmente esse limite teórico e avançava, à desfilada, por um número de consoantes e vogais que levavam a Gonçalo Cristóvão, ao final da tarde das quintas-feiras, a ter de lutar contra a lei física da impenetrabilidade.

Todo o cronista começa por ser leitor. E creio que todo o leitor sonha em ter à sua frente textos curtos, onde o essencial seja dito em poucas palavras. Na minha juventude, lia no “Le Monde”, numa pequena caixa na “la une” do jornal, as mini-crónicas de Robert Escarpit. Era um professor de Bordéus que conseguia, em 700 carateres, dizer o que era importante, sobre tudo e mais alguma coisa. Eu que, nessa altura, não sonhava em escrever no “Notícias” (como o JN era então conhecido no norte), fiquei sempre a sentir uma admiração profunda por quem era capaz de produzir essas crónicas sintéticas e, nem por isso, menos substantivas.

Quando vivi no Brasil, passei a ser apreciador diário dos magníficos textos curtos da sua grande imprensa. Na escola quase imbatível de um Nelson Rodrigues, escritores como Ruy Castro ou Carlos Heitor Cony enchiam-me as medidas, sem excederem as do jornal, com crónicas deliciosas, num Português “de lei”, temperado pela riqueza vocabular desses então alegres trópicos. Um dia, cruzei-me com Cony na Academia de Letras e perguntei-lhe qual era o segredo que usava para iniciar os seus textos: “‘Baixadô! Pense na frase com que pretende se despedir do leitor e logo verá que vai ter pressa em começar a escrever”. Levei a lição para casa, tento regularmente aplicá-la e quase sempre falho. A genialidade ainda não tem manual.

Aqui chegado, vejo que já tenho pouco mais de 600 carateres para usar neste texto. Equivalem a dois “tweets” e eu, embora com muito menos leitores do que Trump, tenho a pretensão de escrever para quem aprecia algo mais do que a sua incontinência teclada. Que posso dizer? Como já é tarde para falar do encontro em Singapura e, tristemente, cedo ainda para me congratular com a saída de Bruno de Carvalho do meu Sporting, fico-me por aqui, antes que o editor de Opinião do JN se veja obrigado a usar o “delete”. Terei, mesmo assim, sido longo demais? Talvez. Mas posso confessar um segredo? Não tive tempo para ser mais breve.

quinta-feira, junho 14, 2018

O gordo da turma



Hoje em dia, isso tem o nome de “bullying”. Na altura só era “chato”. Olhando para trás, podemos perceber como devia ser penoso ser-se o alvo da chacota coletiva. 

Nesses tempos antigos, o gordo da turma era quase sempre o gozado. E, sem exceção, tinha óculos. Havia quase sempre um mais velho que lhe dava regulares ”cachaços” ou empurrões ou lhe tirava a pasta ou lhe chamava ... gordo! Às vezes, havia quem o protegesse. Outras vezes, se lhe dávamos “uma mão”, com pena pelo seu isolamento, sentíamos que ele nos ficava imensamente grato. E até nos passava o “ponto”. Porque o gordo da turma, como não tinha mais nada para fazer (a não ser comer, claro!), estudava e tirava boas notas.

Sem a menor conotação ou paralelo com os acontecimentos políticos dos últimos dias (juro!), devo dizer que, quando olho para o líder norte-coreano, me vem sempre à memória o gordo da turma. Ele, o gordo de então, fosse ele quem fosse, porque houve vários ao longo dos anos, embora me não esteja a ler, que me desculpe a comparação. É que, como se dizia na minha terra, “não é por mal”...

“Deves ter uma quinta...”


Foi há pouco, no meio da Madragoa. 

O miúdo estava sentado no passeio, com uma maçã e uma faca nas mãos. A mãe, de dentro de casa, debruçada à janela, como que a posar nas fotografias que os turistas gostam de tirar à Lisboa dos bairros antigos: “Corta-me bem essa maçã! Não desperdices!”. O rapaz estaria a ser pouco cuidadoso, sem tirar fina a casca, poupando o que iria comer.

Estava eu a estranhar intimamente que ele não comesse a maçã com a casca, como eu faria na rua, na idade dele, quando, de repente, senti que a cena tinha qualquer coisa de “déjà vu”. 

Fui andado até que, como dizem os brasileiros, “caiu a ficha”. Lembrava-me. Era o meu pai, há muitos anos, que, quando me via, à sobremesa, descascar uma maçã sem cuidado, dizia sempre: “Deves ter uma quinta...”

Política da tecla


Na minha infância, em férias, ouvia dizer que uma irmã do meu pai, a tia Regina, que “tinha trabalhado na Intendência”, dactilografava de forma exímia, e havia mesmo tido direito a um prémio nacional, por rapidez de execução. Por anos, já reformada, vi-a colaborar com os irmãos nos respetivos trabalhos, usando uma máquina muito antiga e ruidosa, uma belíssima Remington, que tão bem ficava naquele escritório de Viana do Castelo. Recordo-me de tardes de “concerto” de teclado, no rés-do-chão da casa do Largo Vasco da Gama, preparando peças para o tribunal ou artigos para o “Comércio do Porto”.

O teclado da Remington, que ainda tinha sido do meu avô, o qual morrera já nos anos 20, era AZERTY, letras iniciais que contrastavam com o HCESAR da máquina que via o meu pai usar no seu escritório da Caixa Geral de Depósitos, lá por Vila Real, onde vivíamos. Já não me recordo da explicação que então me deram para a existência dessa diferença de teclados, que por muitos anos me intrigou.

Por uma qualquer razão, mas talvez por que o modelo fugia ao convencional, passei a adorar os teclados AZERTY. (Os latinos europeus usam AZERTY, os britânicos QWERTY e os alemães QWERTZ).

Contudo, a minha primeira máquina de escrever, comprada em Lisboa em 1971, numa casa de penhores da rua do Loreto, em segunda mão (“está como nova”, garantiu-me o homem do “prego”, e era verdade), foi uma Olivetti portátil, coberta a plástico azul, com teclado HCESAR. Tive-a por muitos anos e, sem exagero, escrevi com ela milhares de páginas - nas vidas académica, associativa e política, em cartas, artigos e traduções, e, em especial, nos trabalhos para a Ciesa-NCK com que ganhei bem a vida trabalhando imenso, à noite e em fins de semana, nesses anos 70, de paralelo com as minhas tarefas no MNE (era proibido, eu sei!, mas já prescreveu...). A Olivetti tinha um defeito: avariava-se-lhe muito o “i”, letra que, quando se partia, eu ia substituir a um quatro andar na Almirante Reis. Depois, um dia, em Madrid, numa montra, apaixonei-me por uma máquina elétrica e comprei-a. Era “estrangeira”, era linda, era diferente, era de teclado AZERTY... Já a mandei “às urtigas” e continuo a guardar a Olivetti com o nostálgico carinho com que me acompanhou para a Noruega e para Angola. Depois, em 1987, comecei a trabalhar com computadores e nunca mais parei. E a Olivetti lá está, jubilada, numa prateleira em Vila Real.

(Num lugar onde trabalhei, mas, como Cervantes abria o Quixote, “de cujo nome não me quero lembrar”, espalhei um dia, entre as secretárias, a “galga” de que a padroeira das dactilógrafas era Santa Tecla, nome de um monte espanhol frente a Caminha. Meses depois, ouvi a mentirola repetida e credibilizada por outra pessoa e nunca tive coragem de confessar ter sido eu o autor da patranha.)

Há pouco, ao ler as memórias de Pedro Rolo Duarte (“Não respire”, um excelente livro, infelizmente póstumo), vi a menção de que o HCESAR fora uma determinação da ditadura. Fui à procura e deixo aqui o preâmbulo do decreto do Estado Novo que decidiu essa “política da tecla”: “Não há que estranhar a intervenção do Estado nesta matéria, porque cabe na sua orientação de imprimir uma feição nacionalista a todos os ramos de actividade, disciplinando-os em benefício do país”. 

É nestes raros momentos que me sinto (apenas só um pouco, depois recomponho-me e logo melhoro) um bocadinho liberal.

terça-feira, junho 12, 2018

Singapura


O encontro entre Trump e Kim Jong Un é a propósito do desmantelamento do programa nuclear militar norte-coreano, do fim das hostilidades entre a Coreia do Norte e os EUA (convém não esquecer que, para Pyongyang, a guerra da Coreia oficialmente não terminou) e da segurança futura das duas Coreias, o que também passa pelo ”phasing out” da presença militar americana na península e pelas garantias que o Japão pretende obter nesse contexto.

Mas este encontro é muito mais do que isso. É também sobre o montante do multimilionário cheque que os norte-coreanos querem receber de Washington. Foi sempre isso que esteve em cima da mesa nas anteriores rondas de contactos, convém lembrar.

Deixo aliás uma imagem da visita apoteótica que Madeleine Albright fez a Pyongyang, em 2000, ao tempo do pai do atual presidente, de que estranhamente pouco se fala por estes dias, como se o diálogo em Singapura tivesse sido o início do degelo entre os dois países, desde a Guerra da Coreia.

segunda-feira, junho 11, 2018

Retrato de grupo com alguém sentado




A fotografia de Trump, sentado, tendo à volta os restantes líderes do G7, é magnífica, porque revela muito daquilo que foi o ambiente naquela reunião. 

Num registo diferente, lembrou-me uma cena passada na madrugada final da longa negociação do Tratado de Nice, em dezembro de 2000. 

Tinhamos passado dezenas de horas a debater os votos e os deputados europeus atribuídos a cada país. Uma discussão dura e complicada, em que António Guterres lutou até obter tudo, repito, tudo quanto considerou indispensável para a defesa dos interesses portugueses. Nem todos saíram daquela negociação tão satisfeitos como nós.

De súbito, lá para as cinco da manhã, quando tudo parecia apontar para um acordo “a quinze”, o primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt, pediu a palavra, para grande desespero de Jacques Chirac, que presidia à sessão, ladeado por um impassível Lionel Jospin e pelo MNE francês, Hubert Védrine, quase vencido pelo sono. O chefe do governo belga propunha que os conselhos europeus passassem a ter lugar, mais regularmente, em Bruxelas. E sugeria uma reabertura de alguns pontos, para além do ali acordado, aquilo que um ano depois viria ser a “declaração de Læken”. Chirac resistiu mas o líder belga, visivelmente pressionado pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Louis Michel, pediu uma suspensão da sessão. E foi para um “confessionário” (como no “argot” multilateral se designam os encontros restritos) com Chirac, com este acompanhado pelo indispensável secretário-geral adjunto do Conselho da UE, Pierre de Boissieu, o seu braço direito nesses dias negociais.

Minutos depois, vimos Chirac, fumegando de visível raiva, atravessar a sala, seguido de Verhofstadt. Com a sessão interrompida, os primeiros-ministros e os ministros tinham-se juntado em grupos. Um desses grupos formou-se à volta da delegação belga, discutindo os termos da proposta que obrigara àquela pausa. Eu estava por ali, discreto, para tentar perceber melhor o que os belgas realmente queriam. No centro desse grupo, sentado de costas para a mesa, estava o MNE Louis Michel. 

Chirac aproximou-se então e, confesso, quando vi a sua mão agitada no ar, pensei que ia bater em Michel, o único que estava sentado. (Daí a similitude com a fotografia do G7). “C’est vous! Vous êtes le coupable!”, gritou Chirac para Michel. Este tentou levantar-se, retorquindo qualquer coisa, mas o gigante Chirac, que parecia ainda maior perante a figura espalmada na cadeira à sua frente, não lhe dava espaço para recuperar a posição vertical. E a mão do presidente francês, com um dedo acusatório espetado, vogava já a centímetros da barba de um acossado Louis Michel. Chirac, na conversa com Verhofstadt, deve ter sabido que a exigência belga de última hora, que ameaçava a preciosa unanimidade que ele laboriosamente conseguira, era culpa do ministro dos Negócios Estrangeiros. 

Já não sei como as coisas acabaram, mas Chirac lá retomou a presidência da reunião, Michel não foi esbofeteado e nós pudémos, finalmente, fechar aquela interminável negociação.

Na foto, Trump não está a ser ameaçado de levar um par de estalos. Mas, estou certo, no grupo da foto haveria quem muito gostaria de lhos dar. Um grupo em que a única pessoa comum com a reunião de Nice é o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker.

Descobrimentos

Anda por aí um debate sobre o nome a dar ao museu que se pretende fazer em Lisboa sobre as viagens de Quinhentos. Perante a sugestão de que se chamasse “das descobertas” ou “dos descobrimentos”, logo surgiu uma opção “de recuo”, a propor o nome de “a viagem”. Acho mal.

As viagens tituladas pela coroa portuguesa, desde o ataque a Ceuta, foram quase sempre operações de conquista (com exceção das desertas ilhas atlânticas), com toda a violência que isso à época implicava. Afonso de Albuquerque foi um guerreiro sanguinário e os outros capitães das frotas e das naus não devem ter sido muito mais meigos. Pode imaginar-se o modo como foram tratados os árabes, os negros ou os indianos e outros orientais que lhes apareceram pela frente, nessas expedições para encher alforges e porões, tendo como alibi ideológico a expansão da cruz. A captura e uso de escravos, com a desenfreada exploração laboral e sexual, fez parte integrante da empresa ultramarina e Portugal foi dos Estados europeus que prolongou essa selvática prática até mais tarde. O nosso atraso histórico é, aliás, recorrente: um século depois, quando já quase toda a Europa tinha descolonizado, por cá ainda se falava do “Ultramar” e do “Portugal do Minho a Timor”.

O Estado Novo, prosseguindo, aliás, uma velha narrativa colonialista republicana, pretendeu dar a essa aventura além-Europa uma aura de santidade civilizacional. Usou “Os Lusíadas” como bíblia apologética e capturou oportunisticamente em favor de um patriotismo de regime essa parte da nossa História, consagrando-a de forma caricatural, em textos e momentos hagiográficos, de que a Exposição do Mundo Português (que já ecoava modelos alheios) foi o mais curioso exemplo. A minha geração deve ter sido a última que foi atulhada por uma historiografia gongórica, de que muita da estatuária que por aí anda é aliás tributária.

A notável aventura marítima foi o que foi. Foi fantástica no que representou de inventividade e ousadia, marítima e não só, e o mundo credita-nos isso sem o menor problema, penso mesmo que muito menos do que deveria, à luz do esforço feito por um pequeno povo, numa ambição quase planetária. 

Acho, contudo, sem o menor sentido - e até de uma despropositada arrogância histórica por parte da geração atual, que parece achar ter o direito de poder julgar as anteriores - estar a fazer juízos de valor sobre atos cometidos à luz de conceitos e princípios que estavam muito distantes dos nossos de hoje. Uma coisa é podermos reagir com horror a crimes cometidos na idade contemporânea, quando já vigoravam padrões de valores civilizacionais muito próximos dos atuais - como os assassinatos em massa promovidos pelos nazis, ou os crimes do colonialismo mais recente, já dentro do século XX. Outra coisa é andar a escolher seletivamente episódios ou práticas de um passado distante, assumindo culpas (repito, à luz dos princípios de hoje) por atos como a inquisição, o colonialismo ou a escravatura. É que, por essa ordem de ideias, estaremos, um destes dias, a pedir contas a alguém pela brutalidade das invasões bárbaras, antes da nossa nacionalidade. E esses ciclos nunca terão fim.

Voltemos às descobertas. São descobertas ou achamento, como se debateu no Brasil? Para Portugal, entidade invasora, detentora do olhar que enformou a sua perspetiva de titular desses atos, foram descobertas, de terras e de gentes que o poder português dominou - à força, claro, porque, que eu saiba, as operações de conquista foram sempre feitas pela violência, às vezes extrema e impiedosa. E, claro, com massacres, agressões de toda a ordem, desrespeito total pelos povos encontrados, por muito que, aqui ou ali, pudesse ter havido práticas menos constrangentes. Mas reconheçamos isso, com toda a frontalidade, agora sem ter de recorrer à ganga apologética que o discurso historiográfico da ditadura nos impôs, mas igualmente sem prescindir, nem por um segundo, de relevar o caráter fantástico e pioneiro da empresa das navegações, no que ela teve de avanço para o conhecimento e abertura do mundo.

Nós somos, como povo, o somatório dos vários segmentos sucessivos da nossa História. No terreno colonial, outros a sofreram para que, deste lado, o país de então pudesse beneficiar - na exploração dos recursos económicos e humanos, com uso de escravatura e trabalho forçado, ignorando e espezinhando as identidades dos povos, com práticas racistas em que o “outro” foi, muitas vezes, apenas uma “coisa”. Nesse aspeto, podendo a colonização portuguesa ter tido alguns matizes próprios, basicamente ela seguiu um padrão muito comum aos restantes conquistadores europeus. Foi o que foi e assim deve ser estudada, entendida e exposta, com total transparência histórica. 

Dificilmente conseguiremos consensualizar uma discurso comum sobre a História. Aliás, não vejo qualquer vantagem nisso. No trabalho sério em torno do passado, importa apenas não esconder nenhum aspeto da verdade, devendo, contudo, estar sempre preparados para que essa leitura seja diferente, de acordo com as diversas perspetivas, também elas decorrentes da experiência de cada um. Divulguemos e exponhamos os factos, todos os factos.

No que toca ao museu sobre a aventura marítima e colonial portuguesa, acho, sem a menor hesitação, que deveria ser um “museu das descobertas”, da mesma maneira que devemos aceitar, com toda a naturalidade, que, do lado de quem sofreu uma invasão brutal do seu território, possa e deva ser feito um “museu da exploração colonial”. São as duas faces de uma mesma verdade. Pretender a reconciliação dos olhares, como que “hierarquizando-os”, nunca será aceite por todos, é um artificialismo que não conduzirá a nada. Em particular à tal verdade.

Feira II

Regressei ontem à Feira. O fim do dia estava pré-chuvoso, (agradavelmente) fresco, neste fim de outono que este verão nos saiu em rifa. Eu, que detesto o calor (coisa de gordos), achei que aquele era um belo tempo para fazer a pé toda a ala direita (para quem sobe o parque). E sozinho (porque visitar uma feira do livro acompanhado é quase tão mau como passear com alguém através de um museu). Quase só comprei coisas antigas, a preços magníficos, que espero poder ler, se tiver horas, pachorra e saúde. Acham caro, por três euros e meio, as cartas entre o Cerejeira e o Botas? Chegado a casa, ao abrir a porta, ouvi uma voz: compraste muitos livros? Disse que não, claro. E cheguei à sala com um saco. Mostrei as aquisições e, meia-hora depois, pé-ante-pé, abri a porta da escada e lá fiz entrar, com o mínimo de restolho, o segundo conjunto de livros. Eram só mais 14... A livralhada nunca se mede a metro, mas, entre compras de ontem e de hoje, acabo de verificar que são 88 cms de lombadas. Onde é que eu meto isto?

domingo, junho 10, 2018

A boa ação

O casal jovem estudava, com o cuidado de quem ponderava seriamente comprar, uma biografia de Karl Marx, com uma capa “warholiana”, de um autor que eu não conhecia. Estávamos na banca da Antígona, na Feira do Livro, ontem à noite. Enquanto o companheiro lia atentamente o índice, ela foi mirando a bancada. De repente, pegou no “O direito à preguiça” e disse para ele, sorrindo: “Este deve ser divertido!”. Resisti a comentar que aquele não era um livro propriamente “divertido”, mas disse: “O autor desse foi genro do biografado naquele”, apontando para o livro que ele tinha nas mãos. Ambos olharam para mim, surpreendidos. “Do Marx?”, perguntou ela. Eu confirmei e fiquei com a sensação de que os meus cabelos brancos podem ter credibilizado o comentário. Podia ter acrescentado que Paul Lafargue, o autor do interessante “O direito à preguiça”, acompanhado de Laura, filha de Marx, andou cá por Portugal uns dias, em proselitismo revolucionário, nos idos de 70 do século XIX. Mas não disse mais nada. Julgo ter ajudado a vender mais um livro da editora. Fiz a minha boa ação da noite.

sábado, junho 09, 2018

Bourdain ou a recusa do óbvio



Numa livraria inglesa, em Paris, no final de 2000, um amigo chamou-me a atenção para um livro, acabado de publicar, que analisava o ambiente menos conhecido do interior dos restaurantes de Nova Iorque, cidade para onde eu iria viver, dentro de meses. O meu vício pela gastronomia nunca me tinha levado a conhecer o nome do autor, Anthony Bourdain. 

Recordo-me de que li o livro aos poucos, sem uma especial atenção, mais pela curiosidade de ele me trazer a perspetiva de um “insider”, relativamente ao mundo que fica para além das portas bamboleantes de acesso às cozinhas dos restaurantes. E nisso o autor não nos desiludia: o glamour facial da restauração de luxo era ali desmistificado através das histórias sobre a cruel dureza, psicológica e física, de um métier da moda, de um negócio quase ciclotímico, nos ciclos de sucesso e desespero comercial.

Logo nos primeiros dias da minha estada em Nova Iorque, tive a curiosidade de visitar a casa onde Bourdain tinha imprimido entretanto o seu nome, o Les Halles. Tratava-se de uma “brasserie” no setor com mais vida urbana da Park Avenue. Para quem vinha da Europa, mesmo conhecendo o gosto de uma certa América por aquilo que por ali se acha ser a sofisticação francesa, o restaurante tinha algo de vulgar. Era apenas uma caricatura da Lipp ou da Closerie de Lilas, com o próprio nome a ecoar um mercado perdido de outro Paris. Comia-se bem, o preço não era excessivo para os hábitos locais, exceto os vinhos, que eram proibitivos. O menu era interessante, mas não imaginativo por aí além. Nunca vi por lá Bourdain e, confesso, comecei a interessar-me por outras experiências gastronómicas que Nova Iorque então oferecia. Mas ainda frequentei o Les Halles uma meia dúzia de vezes, quase sempre com amigos de passagem, saudosos da cozinha do velho continente. (Para a história: o Les Halles faliu em 2017, já sem Bourdain).

A imagem de Anthony Bourdain, num registo muito diferente, viria a surgir-me um dia numa televisão, num programa que se chamava “No reservations”. Aí coloquei uma cara e uma voz naquele nome. Mas, mais do que isso, surgiu-me subitamente a imagem de uma personalidade culta, atenta ao mundo, curiosa e interrogativa. O Bourdain do “Kitchen Confidential” estava ali no seu melhor, muito distante da barra comum do Les Halles. Contudo, foram poucas as vezes que vi esse programa, que agora verifico ter passado no Travel Channel.

Um outro dia, anos mais tarde, num zapping televisivo, reapareceu-me Anthony Bourdin. A agilidade fílmica da CNN dava outro enquadramento e ritmo a esta sua nova experiência televisiva. O modelo era diferente: menos intimista, mais cosmopolita, no limiar da antropologia cultural. Era muito interessante ver uma figura saída da cozinha convencional a passear-se por cenários quase “radicais”, das tascas de rua aos locais mais simples e estranhos. Devo confessar, para que não sobrevivam dúvidas, que raramente aquela exploração de culinárias raras me excitou os sentidos, particularmente ao ver Bourdain testar alguns produtos cuja bizarria fazia presumir sabores estranhos.

Mas os programas eram excelentes. Bourdin, como os seus livros entretanto haviam provado, era um homem culto, atento ao mundo, observador arguto das pessoas e dos costumes. Isso “casava” lindamente com a cultura CNN. É que, ao lado e por causa das culinárias, vinham os povos, a sua história, tudo embrulhado nas cores apelativas de quotidianos muito diferentes. Havia por ali muito de “National Geographic”, de história da cultura, na escolha hábil e sábia dos interlocutores, dos convidados e dos temas. Até Portugal lhe não escapou.

Anthony Bourdin deu-se ontem a morte num hotel perto de Colmar, uma geografia muito menos inóspita do que a esmagadora maioria dos lugares onde nos habituámos a vê-lo passear a sua curiosidade, para encanto de milhões que, como eu, eram beneficiários do seu gosto. Estou certo de que não foi tentado a testar as duas estrelas Michelin do JY’S, ali ao lado. Aos 61 anos, uma vida cheia desfez-se, subitamente, num golpe de mistério. Mas Anthony Bourdain nunca foi cliente do óbvio. 

sexta-feira, junho 08, 2018

Que Espanha vem aí?


Lá pela "nossa vizinha Espanha", ou pelos "nuestros hermanos", expressões do jornalismo sem imaginação, há agora um novo governo. É um executivo de oportunidade, no mais puro sentido do termo. Alguns, críticos, dirão mesmo que é um governo que cavalga uma onda política oportunista, e até podem ter alguma razão. Mas é o governo de Espanha e isto, para o país co-ocupante da península, é sempre a forte realidade com que há que contar.

A Espanha é um corpo político imensamente complexo e mutante. Incomparavelmente mais complexo do que Portugal, com uma dinâmica de mudança muito maior do que neste lado da península. Mantém, dentro de si, fatores potenciais de divergência muito fortes, parte dos quais ligados à sua heterogeneidade regional, outros fruto de clivagens sociais e políticas que, tendo raízes históricas profundas, devemos resistir sempre a ler viciadamente sob essa luz. 

Por isso, mais do que estar a "cavar" insistentemente nos referentes do antecedente, julgo que, para um país como Portugal, interessa olhar de frente para a Espanha contemporânea e tentar nela identificar os elementos que, no tempo mais recente, podem vir a ser os "drivers" do futuro do país, porque são esses que podem ter implicações importantes sobre nós.

No plano do novo arranjo governativo, há que notar ter havido uma preocupação no sentido de dar um sinal à Europa de que, naquilo que releva dos compromissos assumidos, Madrid seguirá "business as usual". No fundo, trata-se de seguir o bom exemplo de Lisboa, local onde, às vezes, a Espanha, sem o admitir, se inspira para alguns dos seus passos internos. 

Nesse terreno europeu, há, contudo, uma interrogação que persiste: será que o PSOE teve tempo e arte para negociar, como foi feito na Geringonça, que alguns companheiros de percurso se comprometessem a "olhar para o lado", enquanto o realismo prevalecia? É que, do que se conhece do compromisso político obtido por Pedro Sánchez, fica a ideia de que a “pressa” em tirar o PP do poder sobrelevou o cuidado no detalhe, o qual, contudo, pode ser a chave do sucesso, ou não, da governação futura. A Espanha tem uma importância no quadro europeu que não se compadeceria com atitudes equívocas neste âmbito, particularmente num tempo em que a Itália é já uma dor de cabeça maior e suficiente.

Olhando a composição do novo governo espanhol, e seguindo quantos conhecem os novos ministros, fica a sensação de que Sánchez quis desenhar um executivo forte, com nomes testados em setores vários, como que a compensar a sua própria inexperiência governativa. Ao ler-se esses comentadores, a impressão global que ressalta é francamente positiva. 

Restará saber se este governo terá a solidez política para enfrentar os embates que aí vêm, seja nas delicadas tensões autonómicas, seja nos sensíveis impactos sociais das restrições ditadas pelos compromissos em Bruxelas. No primeiro caso, há uma incógnita enorme: que terá Sánchez prometido a algumas autonomias que possa tê-las levado a dar luz verde à sua indigitação? O que dirá a nova Moncloa a Barcelona? No segundo caso, o primeiro teste ao novo presidente do governo vai ser a questão do orçamento, matéria em que o PP, numa “révanche” muito politiqueira, já se afastou da posição que assumira enquanto ainda governo.

Em Santa Cruz – expressão com que, nas Necessidades, designamos o palácio homólogo em Madrid -, Portugal cruza-se com uma cara nada estranha, um ministro de Filipe Gonzalez, o catalão Josep Borrell. Antigo presidente do Parlamento Europeu, e bem nosso conhecido – recordo-me que foi um difícil negociador da questão do regime dos rios peninsulares, que só se fecharia com um governo PP... -, Borrell é aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “a safe pair of hands”, isto é, alguém a quem a diplomacia espanhola pode ser entregue com toda confiança. Competente, sabedor, consciente de todos os riscos. Uma caução de responsabilidade num governo que vai estar sob constante prova. E a que só podemos desejar felicidades, até porque é na prosperidade da Espanha que reside grande parte da nossa sorte – no sentido de destino, claro.

Bourdain e Les Halles


Morreu Anthony Bourdain. Bem novo. Era uma figura simpática e culta que nos surgia nos programas sobre culinárias do mundo, apresentados na CNN. Não lhe seguia minimamente o gosto por novas e exóticas experiências gastronómicas, mas apreciava o modo sábio e descontraído como convivia, simultaneamente, com a simplicidade e a sofisticação. Já tinha lido o seu famoso “Kitchen Confidencial”, que tinha acabado de sair, quando fui viver para Nova Iorque. E, mal lá chegado, fui logo, nos primeiros dias, almoçar ao seu “Les Halles”, uma “brasserie” não muito cara e com uma bela carne, situada na parte menos “trendy” da Park Avenue. Leio agora que faliu, há menos de um ano. Para além de pessoas, morrem-me cada vez mais mesas.

(Dois amigos, que creio que não usam o facebook, falaram-me hoje do “Les Halles” pronunciando “lèzales”. Ora bem: em francês as duas palavras leem-se separadas e não se ligam. Não tive coragem de notar-lhes isso. Recordo-me de um político português a quem, um dia, em Paris, expliquei que o nome do antigo presidente francês não era “françoázolande” e que esse seria o nome de uma “prima” dele, presidente, que acaso se chamasse Françoise... Não me pareceu ter apreciado excessivamente a correção.)

Carlucci


Há dias, uma televisão convidou-me a dar um testemunho, por ocasião da morte de Frank Carlucci, o embaixador que os americanos enviaram para Portugal, alguns meses depois do 25 de abril. Agradeci, mas não aceitei. 

Faço parte de uma geração que, por algum tempo, viveu com a imagem regular de Carlucci na nossa (à época única) televisão. Aquela figura de rictus estranho, com umas patilhas de forcado, foi então uma espécie de vedeta nacional. Eu já era diplomata e tenho bem presente a sua importância na sociedade política portuguesa. 

Segundo alguns historiadores, Carlucci terá convencido o chefe da diplomacia do presidente Nixon, Henry Kissinger, de que a deriva revolucionária portuguesa, subsequente ao 25 de abril, não condenava necessariamente o país a converter-se numa república socialista radical, que este via como uma espécie inevitável de “vacina” para a Europa ocidental. Para o embaixador, havia a opção de apoiar os líderes dos partidos moderados, tentando, com a ajuda de regimes pluralistas europeus, promover a instauração da democracia no país. O facto de isso ter assim sucedido é tido por muitos a crédito de Carlucci.

Por este facto, Carlucci transformou-se, aos olhos de alguns, num “herói” da democracia portuguesa, uma espécie de “santo padroeiro” do 25 de novembro. E os descendentes políticos dessa gratidão apresentaram, na Assembleia da República, votos (diferenciados) de pesar pelo passamento do político americano. Esse voto tem de ser respeitado. Quero, porém, deixar aqui claro que, se acaso fosse deputado, não me teria associado a ele, abstendo-me ou saindo da sala. Porquê? Porque não aplaudo cínicos.

Frank Carlucci apoiou os democratas portugueses, não pelo sentido humanista decorrente de uma opção a favor da vida política em liberdade no nosso país, mas exclusivamente porque esse era o interesse geo-estratégico americano de ocasião. Mas não será isto um preconceito? Não creio. Em outras ocasiões, a História prova que o mesmo Frank Carlucci deu apoio, claro e deliberado, a golpes políticos conducentes à instauração de ditaduras e regimes opressivos noutras partes do mundo. Com orgulho declarado e sem o menor remorso.

Aliás, não é necessário ir muito longe para constatar essa duplicidade: a mesma administração americana que enviou Carlucci, para substituir um diplomata que não tinha “visto chegar” a Revolução cujas consequências pretendia combater, era precisamente a que até então se mostrara plenamente confortável com o regime ditatorial de Marcelo Caetano.

Desejo assim que Carlucci descanse em paz. Nada mais.

Encore Pivot