sábado, junho 24, 2017

Ventura Terra


As corridas


A imagem é de 1958. À frente, Stirling Moss, atrás, Jean Behra. Acabariam assim no podium. A zona é a Timpeira, depois da sua histórica curva e na aproximação à ponte, no circuito internacional de Vila Real. 

Nesse tempo, as traseiras da minha casa ficavam quase sobre a meta, o que, por vários anos, transformou uma janela e o nosso terraço numa espécie de bancada alternativa, onde ia parar muita família e alguns amigos, tudo para "ver as corridas". Lembro-me (ainda guloso) da imagem da mesa de sala de jantar, atulhada de vitualhas e refrescos, para apoiar as tardes "desportivas". E de mim, impaciente, a rasar a mesa, em "treinos"...

As "corridas" mobilizaram sempre Vila Real, dos automóveis às motos. Há por ali uma forte cultura motorizada, que tem atravessado gerações, desde que, na primeira metade do século passado, uma personalidade, que deu pelo nome de Aureliano Barrigas, lançou esta iniciativa. Houve períodos diferentes no tocante à tipologia dos veículos, em alguns anos as corridas estiveram suspensas, mas tudo retomou de novo. Dois nomes da cidade, já desaparecidos e ambos meus amigos, ficaram ligados ao circuito vilarealense: Manuel Fernandes e Sidónio Cabanelas. Lembrei-me de ambos hoje.

O percurso do circuito agora é diferente, os automóveis também, mas o famoso WTCC, uma emocionante prova internacional, leva à capital transmontana, desde há três anos, muitos milhares de pessoas, neste fim de semana. Tenho pena de não poder lá estar, mas a ubiquidade é uma qualidade que ainda tenho de aperfeiçoar um pouco mais (mas lá chegarei!).

sexta-feira, junho 23, 2017

O S. João e o tio Óscar


Era uma figura baixa, rotunda, sempre muito esticado, elegante, de fato com colete e relógio de bolso, chapéu largo, ar grave. Oficial do Exército, presente nas campanhas de África da 1ª Guerra, casara com a mais bonita irmã da minha avó, que “raptara” das Pedras Salgadas para a Ramada Alta.

Já só o conheci na reserva. Viviam num andar com um cheiro confortável e indefinível, que ainda hoje reconheceria em qualquer lugar do mundo. Da varanda traseira envidraçada, onde se tomavam as refeições, via-se a estátua da Rotunda e o comboio para a Póvoa, que passava fumegante ao fundo. Para mim, ido da província profunda que então era Vila Real, aquelas luzes davam à cidade ares de incomparável metrópole cosmopolita, deslumbrando-me os sonhos de futuro.

Foi o tio Óscar quem me ensinou o Porto, melhor, quem me ensinou a gostar do Porto, nas temporadas que por lá passei com ele. Levava-me a passeios de elétrico até Matosinhos, subimos o elevador da ponte da Arrábida, calcorreei os jardins do Palácio.

Sendo ele portuense de gema, não me recordo de ter inclinações clubistas. Era um leitor compulsivo, organizado, mandava encadernar os livros na Mártires da Liberdade. Foi ele quem me deu a ler, pela primeira vez, Arnaldo Gama, uma escrita quase tão imprescindível como “Uma Família Inglesa” para se perceber o espírito da terra.

O tio Óscar colecionava “O Tripeiro”, começando o dia a ler “o Janeiro”. Depois do almoço, antecedido de um passeio “higiénico” a passo forte pela Constituição, descia Serpa Pinto, galgava Cedofeita até Carlos Alberto, rumo ao Rialto. Aí se juntava a um grupo de amigos, creio que “camaradas” também na reserva, até que chegava, “fresco” e sujando os dedos, o “Diário do Norte” e se iam fazendo horas para apanhar o 6, na Praça, com destino último Monte dos Burgos.

Aos domingos, o programa variava: iam almoçar à Messe, na Batalha e, se o tempo estivesse a jeito, passava com a Tia Maria a ver as montras de Santa Catarina e de Santo António. Parece que, com sol, às vezes, acabavam o dia num chá no Bela Cruz, junto ao Castelo do Queijo.

“Tens de vir cá pelo S. João! Não há festa no mundo como aquela!”, repetia-me, com orgulho, embora mais tarde eu não o estivesse a ver, pelas Fontaínhas, a levar com o alho-porro de rigor, nesse tempo em que ninguém tinha sonhado martelos de plástico. Era o seu amor ao Porto que o fazia alardear uma festa a cuja confusão, tal como hoje sucede a muitos portuenses, imagino que fugisse.

Foi essa imagem mítica do S. João do Porto que transportei comigo quando um dia fui viver para a cidade, já o tio Óscar tinha desaparecido. Tive pena de não lhe poder ter dito que ele tinha toda a razão: é uma das mais impressionantes festas do mundo.

Bom S. João para todos!    

quarta-feira, junho 21, 2017

Interesse público

Posso entender que um órgão de informação se permita elaborar sobre o presumível interesse do público que o lê, ouve ou vê. Algum "feedback" que receba dos seus leitores, ouvintes ou espetadores confere-lhe o direito de mandar "bitaites" sobre aquilo que quem os acompanha pode querer. Não é certo que acerte, mas é legítima essa sua especulação.

O que não admito é que alguém, saído de uma redação, sem a menor representatividade, se arrogue o direito de vir definir, ou a marcar arbitrariamente como baias da sua produção jornalística, o que ele acha que é o "interesse público". Já a formiga tem catarro! 

Todos sabemos que esse é, as mais das vezes, um simples alibi para "mandar às urtigas" a ética (que é sempre interpretada como dá mais jeito), a deontologia (numa classe que perdeu todo o respeito por um código de conduta minimamente consensualizado) e, pura e simplesmente, um pretexto fácil para publicar e mandar para o ar o que sabe que a avidez sensacionalista e "voyeuriste" de algum público melhor consumirá. 

Da mesma forma que a "opinião pública" é uma coisa diferente da opinião publicada, também o "interesse público" não é, simplesmente, o que interessa ao público,

Algum jornalismo que por aí anda sabe que, no fim da linha, contará sempre com o tropismo "libertário" de um sistema judicial que, "empanicado" desde o 25 de abril por uma interpretação laxista e temerosa da "liberdade de imprensa", sentenciará a seu favor, raramente em proteção dos ofendidos ou dos valores da privacidade.

Sei não ser politicamente correto estar a escrever isto - logo eu, que escrevo regularmente em jornais e revistas, que às vezes vou pelas televisões. Mas é o que penso.

E representa o que escrevi uma crítica ao sistema de Justiça? Claro que sim! A democracia não tem vacas sagradas.

Sozinho em casa

Sozinho em casa, a ver o Portugal- Rússia, ao som de Prokofiev (há anos que não ouço comentaristas), dou-me conta, pela primeira vez, que o meu léxico de interjeições impublicáveis (felizmente a vizinhança não ouve) não variou rigorosamente nada desde os tempos de adolescência.

A pátria

Depois de quinze minutos de espera: "O senhor desculpe o atraso, mas os meus colegas aqui dos telefones estão todos a ver o futebol. Sabe como é...". Sei, sei! É a "pátria em chuteiras", como dizia o Nelson Rodrigues.

terça-feira, junho 20, 2017

Especialistas


À legião de especialistas florestais e em prevenção que andam nestes dias pela nossa comunicação social atribuo a mesma credibilidade que, desde há uns anos, dou aos economistas que por lá pululam: uns terão razão, outros não. Eu não sei.

segunda-feira, junho 19, 2017

Os portugueses pelo mundo


A gravidade da situação que envolve os portugueses na Venezuela, as hipóteses de retorno da população qualificada que tem saído de Portugal nos últimos anos, a sustentabilidade da confiança que as remessas de emigrantes hoje traduzem - tudo isso são apenas alguns dos fatores que nos levam a refletir sobre a diáspora portuguesa no mundo. 

Para além das respostas conjunturais, no quadro de uma política de apoio aos portugueses expatriados, que tem vindo a ser construída por sucessivos governos, interessa pensar, a longo prazo, qual será a melhor estratégia externa para um país que tem parte importante da sua população no exterior.

É isso que vamos fazer amanhã, terça-feira, dia 20 de junho, às 18 horas, na Universidade Autónoma, na rua de Santa Marta, 56, em Lisboa. Será nosso convidado José Luis Carneiro, o atual Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.

Esta conferência é a penúltima do ciclo "Os interesses de Portugal no mundo" onde já ouvimos, nomeadamente, António Vitorino, António Monteiro e Luis Amado.

Estão todos convidados.

Ainda os incêndios

Alguns dirão que é talvez cedo para falar nisto. Não concordo.

Desde há vários anos que, em todos os ciclos políticos, é feita uma imensidão de estudos, com debates de permeio, sobre a questão da prevenção dos incêndios. Não há Verão em que não ouçamos especialistas falar sobre o que se deve fazer, governos a legislar pelo Outono, um pesado silêncio no Inverno, e, depois, tudo a continuar na mesma (ou quase, a julgar pelos resultados) na Primavera e Verão seguintes.

Não esqueço, claro, a imprevisibilidade das condições climáticas bem como a dificuldade em tocar nas estruturas fundiárias, que limitam fortemente a capacidade de atuar com eficácia. 

Também não esqueço a bravura de quantos, todos os anos, arriscam (e às vezes perdem) a sua vida em horas seguidas de sacrifício, como é o caso dos bombeiros. 

É, contudo, tendo tudo isso presente que me permito fazer algumas perguntas: estaremos mesmo a fazer as coisas certas, a seguir o melhor caminho? Teremos, entre nós, nos nossos especialistas em prevenção e operacionais no combate aos fogos, toda a "massa crítica" suficiente para desenhar as melhores soluções para o futuro neste domínio? 

A questão que queria suscitar esta esta: não seria tempo, como ocorre noutras áreas, de recrutar especialistas estrangeiros credenciados para fazerem uma análise independente às nossas estratégias de prevenção e combate aos fogos, aconselhando-nos à luz de outras experiências com mais sucesso? Não seria de procurar aprender com quem faz melhor? A menos que alguém me garanta que ninguém faz melhor do que nós, o que eu não acredito.

Sei que pode parecer provocatório estar a suscitar isto, num tempo de trauma como o que vivemos, mas é precisamente "aproveitando-o" que o alerta se justifica. Não poderia ser esta ajuda externa uma via a explorar? O que perderíamos com isso? O orgulho dos nossos técnicos e especialistas? Com franqueza, acho muito barato para o preço que o país já está a pagar.

Esta não é uma questão política, de esquerda ou de direita, de governo ou de oposição, é apenas uma questão de bom-senso.

domingo, junho 18, 2017

Tudo é feito de mudança

Um país não é muito diferente de uma pessoa: num segundo, sai-se de dias em que tudo parecia correr bem para um tempo de fatalidade, perante a qual se revela a nossa impotência.

Palavras

Dizer que não há palavras para esta tragédia é uma banalidade. E é falso. Há palavras! De conforto e pesar para as famílias das vítimas, de louvor para o trabalho dos bombeiros, de compromisso de que se vai continuar a trabalhar para que, no futuro, seja possível evitar catástrofes desta dimensão. Mas há coisas que, infelizmente, temos de encarar com raivosa resignação: a natureza ultrapassa-nos. Podemos minimizar ou atrasar os seus efeitos, mas não a podemos controlar em absoluto. A natureza é quem tem sempre a última palavra.

sábado, junho 17, 2017

Manuel dos Santos


É muito triste a questão que agora envolve o deputado socialista europeu Manuel dos Santos, motivada por uma referência pessoal, com laivos fortemente discriminatórios, à candidata do PS à Câmara de Matosinhos.

Para quem não saiba, importa notar que este é mais um episódio na progressiva divergência que o deputado tem vindo a manifestar face à orientação da direção do seu partido.

Conheço Manuel dos Santos há muitos anos, tendo sido colegas de governo. Noutra rede social, já tinha discutido isto com ele. Não o convenci da minha posição de que as divergências se debatem no seio das estruturas dos partidos, não devem ser trazidas para a praça pública, num desforço conflitual que, nesse contexto, acaba inevitavelmente por ser aproveitado pelos adversários políticos (como já se está a ver).

Manuel dos Santos é de outra opinião e decidiu prosseguir a sua "guerra". E, agora, excedeu-se, não entendendo que certas graçolas que, há uns anos, talvez passassem impunes, hoje são sujeitas a um escrutínio condenatório muito forte.

Não é claro o que virá a seguir. Mas, seguramente, não será nada de simpático.

sexta-feira, junho 16, 2017

Helmut Kohl

Hesitei um pouco a escrever "ainda sou do tempo de Helmut Kohl". A expressão acarreta, consigo, uma ideia de coisa antiga. E, porventura, devo assumir que o é. 

Sou do tempo em que o recém-empossado primeiro ministro António Guterres, chegado a um dos seus primeiros Conselhos Europeus, levantou a mão e, perante um impasse criado entre Jacques Chirac e Kohl, propôs uma determinada solução de compromisso. Eu (e estava errado) assustei-me com a ousadia, Chirac sorriu, complacente, com o atrevimento do "Antoniô", Kohl ficou com um ar esfíngico e ambos, sob o olhar algo surpreendido dos restantes parceiros, acabaram por ter de reconhecer a sensatez do que tinha sido aventado pelo seu par português. O qual, a partir desse dia, não tendo a altura física dos seus colegas do eixo Paris-Bona (Berlim viria mais tarde), demonstrou ter uma estatura europeia que ninguém ainda por lá esqueceu.

Sou do tempo em que, numa pausa de outro Conselho Europeu (ou num momento transformado em tensa pausa, pelos factos ali produzidos), vi um irado Helmut Kohl encaminhar-se, a passos largos, pelo meio da sala, para um seu homólogo, cujo nome não cuido em lembrar, que assumira uma atitude que lhe tinha fortemente desagradado, naquilo que ficou à porta de ser um inédito confronto físico no seio do mais alto areópago europeu. (Anos mais tarde, numa madrugada tensa de Nice, vi um furibundo Jacques Chirac avançar para um ministro dos Negócios Estrangeiros de um país vizinho, em termos que imitavam, à perfeição, a anterior cena, com a diferença de que o interlocutor que Chirac invectivava em tom forte estava encafuado numa cadeira de braços, da qual não conseguia fugir ao gesticular ameaçador do homem da Corrèze.)

Helmut Kohl morreu hoje. Nunca falei com ele mas conheço muito bem o seu papel na História da Europa e do seu país. E também sei, porque o ouvi a alguns que com ele privaram ou acompanharam de perto a sua ação, que foi uma personalidade a quem nunca foram indiferentes os interesses de Portugal, que soube entender as nossas razões, que nos ajudou, com compreensão, em momentos delicados da nossa adesão e participação no processo europeu.

Só por isso, dá-me gosto dizer que ainda sou do tempo de Helmut Kohl.

Macron ou a esperança



O processo político que se vive em França merece ser acompanhado com atenção. É curioso ver um sistema que, por várias décadas, funcionou numa lógica tradicional de alternância esgotar-se, no espaço de alguns meses, redundando numa solução atípica, muito personalizada, uma espécie de bonapartismo feito mais de esperança do que de coisas concretas.

É fácil concluir que os partidos tradicionais esgotaram a sedução das suas mensagens ou não souberam recompô-las com receitas programáticas capazes de convencer um eleitorado cansado de décadas de promessas não cumpridas, tituladas pelas caras de sempre. É da sociologia política primária concluir que o surgimento de alguém com uma mensagem otimista, uma figura politicamente pouco marcada, com um discurso mais tecnocrático do que ideológico, pode ter abalado esse equilíbrio rotineiro. Mas, na ausência de uma crise histórica profunda ou de um abalo político muito sério, fica ainda muito por explicar no fenómeno Macron. Ele não foi, como De Gaulle em 1958, resultado de uma “vaga de fundo”. Se François Fillon não se tivesse envolvido em algumas inesperadas trapalhadas, não o estaríamos hoje a analisar aqui.

A França é o país das ideologias, mas a nova situação política em que vive é precisamente marcada por uma aparente onda de “desideologização”, pelo retorno ao mito idílico do “nem esquerda nem direita”, um tropismo que, como é sabido, surge de quando em vez nos ciclos políticos, empurrado pela ideia de que o que é preciso é fazer as coisas certas, venham elas marcadas pelo ferrete de serem de esquerda ou de direita. Sem uma única exceção, a História provou que todas essas experiências redundaram em soluções conservadoras, e esta não será, com certeza, uma exceção à regra.

O tempo, porém, lá por França, está do lado de alguma esperança. Uma esperança que deu a Emmanuel Macron a vitória sólida sobre a candidata presidencial da extrema-direita, mas que não parece ter sido suficiente para mobilizar o voto, de forma muito empenhada, nas eleições legislativas subsequentes. Esta espécie gaulesa de “PRD” (os leitores com memória dos anos 80 portugueses devem lembrar-se) traz consigo a excitação da virgindade política mas também a imprevisibilidade de quadros ainda não testados na fogueira do quotidiano.

Macron é uma figura que não descura a coreografia, que traz estudada ao milímetro. Surge com uma vitalidade pausada e de um rictus de firmeza - uma “espécie de Sarkozy decente”, como dizia alguém –, parecendo ter algumas ideias bem claras, nomeadamente no terreno europeu, onde a afirmação da França é mais do essencial para o projeto coletivo. Com o tempo se verá melhor se o “macronisme” veio para ficar ou se ficará na história francesa como um epifenómeno passageiro.

Lisbon (2)

Ontem escrevi aqui um post sobre o mau serviço prestado no setor comercial, em especial na área da restauração, por empresas que empregam trabalhadores estrangeiros que não sabem expressar-se em português.

O post dirigia-se, obviamente, à responsabilidade dos empregadores, a quem pagamos os serviços e nunca, como é evidente, aos próprio trabalhadores, que são o elo mais fraco do problema e que se limitam a aceitar o trabalho que lhes é proposto.

O texto foi algumas vezes treslido, por iliteracia, má fé e outras intenções cujo inventário se poderia fazer. Chegou-se a afirmar que ele era xenófobo e racista, não obstante nele se dizer o seguinte: "Faço parte de quantos gostam muito de ver Portugal um país de acolhimento para trabalhadores estrangeiros. Tenho orgulho quando os ouço dizer que gostam de viver por cá, que se sentem aqui bem. E espero sinceramente que fiquem, porque o nosso destino de porto de chegada sempre ajudou a abrirmo-nos ao mundo. O mesmo mundo que também continua acolher-nos, não o esqueçamos."

Ora isto é tudo muito simples e claro: quem trabalha na área dos serviços em Portugal, lidando com público, deve saber falar o português necessário para o exercício capaz dessas funções. É ao empregador, que é o nosso interlocutor na relação comercial desse serviço, que compete a responsabilidade de seleccionar as pessoas com essas habilitações mínimas. Quem as não tem pode e deve efetuar outro tipo de tarefas para as quais essas habilitações ou qualificações não sejam necessárias.

É assim tão difícil perceber isto?

quinta-feira, junho 15, 2017

O tempo e a diplomacia


"Vais conseguir tempo para ler esse livro?" A pergunta tinha algum sentido e até era bem benévola, à vista dos quase vinte volumes que eu acabara de comprar, ontem à noite, na Feira do Livro. E, de facto, não tive resposta para ela. "Sei lá!", era o que me apetecia responder, apanhado no embaraço habitual que sinto quando entro em casa ajoujado de livros. É claro que podia dizer, como o outro, que só há uma coisa melhor do que ler um livro, que é comprá-lo! Mas essa resposta já está "gasta" cá em casa...

A monumental biografia do Barão de Rio Branco, a grande figura tutelar da diplomacia brasileira, de Álvaro Lins, é um clássico que eu já devia ter adquirido há muito. Encontrar esta 2a edição (a edição original é de 1945), de 1965, em estado novo, por pouco mais de cinco euros, foi um "achado" a que não resisti. Claro!

Álvaro Lins é uma figura intelectual brasileira muito interessante. O seu "Missão em Portugal" (que era proibidíssimo entre nós e que me recordo ter consultado, pela primeira vez, na Biblioteca Pública de Nova Iorque, em dezembro de 1972) é um relato do extraordinário período em que foi embaixador em Portugal, tendo Humberto Delgado refugiado na sua embaixada, com toda a negociação posterior com as autoridades portuguesas. Mas a biografia de Rio Branco é tida como a sua obra maior, para além dos estudos sobre Luís de Camões.

Quando cheguei ao Brasil, em 2005, corria o boato de que o secretário-geral do ministério das Relações Exteriores, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, obrigava os funcionários com pretensões na carreira a lerem esta biografia.

Não sei se isto é verdade, mas eu não me importaria que, entre nós, a hierarquia diplomática obrigasse alguns funcionários diplomáticos a certas leituras que os ajudassem a perceber que o que fazem, por aqueles claustros das Necessidades e pelo mundo, se insere numa história muito longa que deve servir de ensinamento de fundo a toda a sua ação de representação do país. E que tem sempre de haver tempo para bem aprender esses tempos.

quarta-feira, junho 14, 2017

Lisbon


Há uns tempos, deu-me para ir jantar a um clássico restaurante de bacalhau, na Baixa lisboeta (esse mesmo!). Quando quis saber um pormenor sobre um certo prato, o empregado, muito sorridente, hesitou, atrapalhado, por não perceber a minha pergunta. Quis saber de onde era: do Nepal. O seu inglês não era famoso e, visivelmente, só estava fadado para servir aquele tipo de turistas que apontam para uma fotografia com preço à frente, no menu plastificado. 

Porque o impasse continuava, porque eu (já em inglês) continuava a querer saber algo que ele não compreendia, chamou um colega para falar comigo: esse era do Sri Lanka. O inglês era melhor, mas, tendo-me já entendido, não tinha a informação que eu queria. Ainda pensei que pudesse vir por ali alguém do Butão...

E lá chegou um português (ficou satisfeito quando lhe disse que era parecido com o Ricardo Araújo Pereira, mas logo esclareceu que tinha um irmão lá em casa, esse sim!, quase sósia do ator). E tudo se resolveu, mais ou menos. (Para o que aqui não importa, comemos "bem malzinho", como a minha mãe piedosamente dizia, quando se saía de uma péssima refeição num restaurante).

Há dias, na noite de Santo António, já depois da meia-noite, abancámos numa esplanada da Rua Augusta. Os empregados eram maioritariamente do Sri Lanka. Simpáticos, sorridentes, disponíveis, não falavam peva de português. Entendemo-nos naquele "inglês de aeroporto" em que é difícil discutir se uma água é das Pedras, do Vidago (quem é de lá perto diz "do Vidago", quem não é diz "de Vidago"), de Campilho ou de Cavalhelhos. Pronto, a noite era de festa!

Lisboa está transformada numa cidade para turistas, para gente "de fora". Tudo bem, mas não exagerem! Não me apetece sentir estrangeiro na Baixa, como, por outras razões, me sentia em Albufeira, no século passado! 

Faço parte de quantos gostam muito de ver Portugal um país de acolhimento para trabalhadores estrangeiros. Tenho orgułho quando os ouço dizer que gostam de viver por cá, que se sentem aqui bem. E espero sinceramente que fiquem, porque o nosso destino de porto de chegada sempre ajudou a abrirmo-nos ao mundo. O mesmo mundo que também continua acolher-nos, não o esqueçamos.

No entanto, é importante que quem, no setor turístico, deve andar nos dias de hoje nas suas "sete quintas", com as enxurradas de "camones" (recupero aqui a expressão elegante dos taxistas), perceba que há um país de gente que vive por cá e que tem o direito a ser servida na sua língua (original ou aprendida).

O papel da rainha


A rainha de Inglaterra não tem como não aceitar um governo que o parlamento lhe proponha. Assim, a rainha vai ler, dentro de dias, um discurso elencando as medidas do futuro governo, sem que possa recusar uma só palavra que seja desse texto que o executivo lhe colocará nas mãos. A rainha de Inglaterra, com os anos que o sistema leva, converteu-se naquilo que vulgarmente se designa como "uma rainha de Inglaterra"...

As poucas monarquias que subsistem na Europa - quando foi instaurada a nossa República, só a França e a Suíça não tinham regimes monárquicos - decorrem da descendência de soberanos que, num determinado momento histórico, assumiram gestos que foram lidos como fatores de reforço da respetiva identidade nacional. A partir daí, as eventuais pulsões para a instauração da democracia republicana foram travadas por um acordo implícito: os soberanos e seus descendentes mantêm-se como símbolos da unidade nacional mas, em contrapartida, prescindem de terem a menor interferência na vida política, em alguns casos funcionando exclusivamente como meros "notários" do processo democrático que, à sua margem, gere o país. Enquanto eles e os seus sucessores não se constituírem como um problema, a sua sustentabilidade nos palácios dourados não será posta em causa.

No caso britânico, assim é e, desde que assim continue a ser, nenhuma pressão significativa parece existir para a reimplantação da República (já houve um regime republicano por lá, note-se).

Daqui a dias, a rainha de Inglaterra vai ler o programa do governo que Theresa May lhe colocará em frente. Parece que essa sessão, no entanto, foi atrasada, face ao calendário previsto. Porquê? Porque a rainha não lê esse texto num papel qualquer: o longo discurso é manuscrito, a tinta, numa espécie de pergaminho. Ora a tinta leva quase uma semana a secar no pergaminho e o próprio texto do discurso ainda não está finalizado. Só estabilizado este é que os calígrafos apurarão as penas e a seca do pergaminho se iniciará, por mais de cinco dias.

As liturgias têm um preço. A rainha e o pergaminho fazem parte dessas liturgias, com Brexit ou sem ele. Essa é a "graça" das monarquias, para quem gosta do género. Por mim, dispenso-o e vivo muito bem com este regime republicano semi-presidencialista que, na ciclotimia do humor dos eleitores (quase sempre exaustos da experiência anterior), nos leva a eleger ora figuras patibulares ora "charmeurs", com intectuais ou militares éticos à mistura.

Com todo o respeito que tenho por aquilo que tem sido a escolha implícita dos britânicos, viva a nossa República!

terça-feira, junho 13, 2017

Ao Rui "Manuel"

É um dos mais reconhecidos e prestigiados diplomatas portugueses, em cuja carreira ascendeu até ao topo. Inteligente e culto, tem um humor rápido e uma ironia subtil. É o Rui Quartin Santos, um embaixador que, nos dias de hoje, goza uma merecida jubilação.

Conheci-o em Nova Iorque, nos anos 70 do século passado, quando um dia por ali passei como "correio de gabinete", uma função de transporte de documentos de elevada confidencialidade, que, ao tempo, era executada casuisticamente pelos diplomatas mais jovens. Voltando uma tarde a esquina da 5a Avenida com a rua 58, tendo-me eu queixado do "wind chill factor" naquele gélido inverno, ele retorquiu-me, seriíssimo: "É verdade, mas nada que se compare com a esquina da Loja das Meias com a rua Augusta, lá por Lisboa, que está cotada, sem contestação, no topo dos registos meteorológicos mundiais de ventanias..." (Na altura, a Loja das Meias era ali). Por esses tempos, o Rui divertia-se também a relatar as míticas expressões de "inglês mais-ou-menos" atribuídas a um colega nosso, que falava aos nova-iorquinos da sua mulher-a-dias designando-a por "my wife-a-days"...

Mas é sobre um dos mais conhecidos "vícios" do Rui que eu quero aqui falar, porque o assunto veio hoje à baila num almoço de amigos, neste dia de Santo António.

Vou dar um exemplo concreto, para mais facilmente se entender o assunto. Imaginemos que o Rui analisava um debate recente na Assembleia da República. O seu comentário poderia ser uma coisa como esta: "Faz muita falta por ali o Francisco Anacleto. A vida seria muito mais difícil para o António Luís se o tivesse como opositor." Perante a nossa eventual estupefação, face à menção daqueles nomes, o Rui esclareceria que se estava "naturalmente" a referir ao Francisco (Anacleto) Louçã e ao António (Luís da) Costa. É que o Rui especializou-se, desde há décadas, em saber os segundos nomes de imensa gente, criando um glossário onomástico que ficou clássico nas conversas dos claustros do ministério. "Ó Francisco Manuel! Que achaste do discurso de ontem do Jaime José? O António Vitor disse-me que gostou imenso!". Foi sempre assim, durante anos, sendo que, neste caso, o "Jaime José" seria Gama e o "António Vítor" seria Monteiro.

Já não vejo o Rui há bastante tempo, mas, conhecendo-o, tenho a certeza de que não deixou de manter aquele seu curioso "vício", que aliás ecoa uma prática antiga que nos habituámos a detatar nos romances clássicos russos. Quando o encontrar de novo e ele me tratar, como sempre faz, por Francisco Manuel, não deixarei de lhe chamar "Rui Manuel" ou "Rui Bernardo" ou "Rui Valentim", porque o Rui, useiro e vezeiro em chamar à colação o segundo nome dos outros, não tem, ele mesmo, nenhum segundo nome próprio, o que abre um espaço quase infinito à nossa imaginação.

Um abraço para ti, caríssimo Rui, para o caso de alguém te mostrar este escrito que inspiraste.

"It"s the economy..."

"It"s the economy, stupid!", foi a expressão cunhada por James Carville, na campanha de Clinton em 1992, para identificar o e...