segunda-feira, janeiro 29, 2024

"Friends in high places"


Durante a negociação do Tratado de Nice, que Portugal chefiou no primeiro semestre de 2000, uma das questões mais polémicas era o tema das "cooperações reforçadas", da "integração diferenciada" ou da "flexibilidade", como lhe queiram chamar. Trata-se da possibilidade de um grupo de Estados poder adotar certas políticas dentro da União, sem que os outros os sigam. Para simplificar: modelos similares à moeda única ou ao acordo de Schengen.

Graças à genialidade criativa de Josefina Carvalho, a diplomata portuguesa mais competente que alguma vez conheci em matérias institucionais europeias, e que por sorte então me coadjuvava na chefia da negociação, colocámos sobre a mesa um conjunto engenhoso de propostas sobre esse assunto. Portugal foi mesmo a "vedeta" dessa discussão, que António Guterres titulou à mesa do Conselho europeu. 

Lembrei-me disso, este fim de semana, no hotel de Seteais, que, há precisamente 24 anos, ocupámos para um exercício de reflexão de dois dias, envolvendo os negociadores de todos os Estados membros, e que tinha aquele tema no centro da agenda de trabalhos.

Por essa altura, algumas delegações revelavam particular interesse pelo assunto e ajudaram-nos a desenvolvê-lo. Uma dessas delegações foi a finlandesa, dirigida por um homem magnífico, com uma serenidade ártica, o embaixador Antti Satuli, um bom amigo infelizmente já desaparecido. Antti era coadjuvado por um diplomata muito jovem, entusiasta, inteligente e imaginativo, quase "latino" na atitude, que tinha com a nossa delegação uma relação de grande cordialidade e colaboração. Chamava-se Alexander Stubb. O tema da "flexibilidade" apaixonava-o. 

Em 2002, já eu estava colocado em Viena, envolvido em outras tarefas, recebi um pedido de Alexander Stubb pedindo-me para poder usar um artigo sobre o tema da "flexibilidade", que eu tinha publicado, em tempos, num jornal estrangeiro. Queria utilizá-lo num livro que ia publicar. Acedi com gosto e, meses depois, Stubb enviou-me o livro, editado em inglês, com uma carta muito simpática. Trocámos, depois disso, um ou dois emails e, como é da regra da vida, fomos perdendo o contacto.

Eu, contudo, não o perdi de vista. Ao longo dos anos, vi-o ser, sucessivamente, deputado europeu, ministro dos Assuntos Europeus, ministro das Finanças, ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro. 

No domingo passado, Alexander Stubb ganhou a primeira volta das eleições presidenciais na Finlândia, sendo muito possível que, daqui a dias, venha a ser o próximo chefe de Estado do seu país. 

Agora, por uma qualquer razão, veio-me à memória o título de um conhecido livro do jornalista britânico Jeremy Paxman: "Friends in high places"...

A NATO e a Revolução de Abril


Com o seu papel catalizador da reação ocidental à ação russa na Ucrânia, a NATO tem andado muito na baila. A possibilidade do regresso de Trump à presidência americana está a provocar algumas interrogações sobre o futuro da aliança de que Portugal faz parte desde 1949, em especial se se olhar para aquilo que foi o seu comportamento perante a segurança europeia, durante o seu primeiro, e até agora único, mandato. Logo veremos, até porque não há nada que, pela nossa parte, possa ser ser feito no sentido de alterar o rumo que as coisas vierem a ter.

Nestes 50 anos do 25 de Abril, deixo memória de um episódio que julgo curioso, ligado à NATO, passado entre agosto e setembro de 1974. Repito: há cerca de meio século.

Eu era então adjunto da Junta de Salvação Nacional, no palácio da Cova da Moura, ao fundo da avenida Infante Santo. Mal eu sabia que, 20 anos depois, e por um período de mais de cinco anos, passaria a tutelar aquele edifício, onde hoje continua a situar-se a sede da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus.

Pela pequena sala que nesse tempo partilhava com o então major, mais tarde general, José Manuel Costa Neves, que era chefe de gabinete de um dos membros da Junta, o general Galvão de Melo, passavam, com regularidade diária, muitos quadros superiores do MFA, vários elementos da sua Comissão Coordenadora, alguns deles membros militares do Conselho de Estado. Spínola já estava como presidente da República em Belém, Costa Gomes ocupava o andar térreo do palácio, que era o centro da manobra político-militar, desde 25 do mês de abril anterior.

Aqueles eram dias muito intensos, marcados pela emergência das primeiras grandes conflitualidades que atravessaram o MFA, com as diversas correntes militares a tomarem posições e a medirem forças, que haveriam de se tornar bem contrastantes na crise do 28 de setembro, dia que aliás não tardaria muito. 

O gabinete que eu partilhava fervilhava de conversas políticas. Eu, jovem oficial miliciano, por estar conjunturalmente incorporado nessa geografia de debate, passei a ter involuntário acesso a processos de discussão e decisão que estavam muito acima do meu estatuto militar e político. Mal me conhecendo, o José Manuel Costa Neves tinha optado por fazer plena confiança em mim e isso credibilitava-me para poder testemunhar trocas de impressões que, muitas vezes, tinham elevada confidencialidade e grande delicadeza. Tenho a plena consciência de nunca ter traído essa confiança.

Num desses dias, sentado à minha secretária, constatei que o tema da NATO era objeto de uma troca de impressões entre o José Manuel Costa Neves e outro elemento da Comissão Coordenadora do MFA. Comentavam que um outro oficial, que também integrava a Comissão Coordenadora e tinha assento no Conselho de Estado, anunciara a intenção de suscitar, numa próxima reunião desse Conselho, a questão de Portugal poder vir a abandonar a NATO, tese que defendia. 

Recordo que, ao tempo, o Conselho de Estado era um órgão político e para-constitucional da maior importância e visibilidade, no qual o presidente da República se apoiava. Os meus dois interlocutores estavam preocupados com o impacto que essa iniciativa do seu colega poderia viria a ter. À época, eu era uma espécie de "pré-diplomata": iria fazer concurso de ingresso na carreira diplomática nos meses subsequentes. Conhecedores da minha propensão para as questões internacionais, perguntaram a minha opinião sobre o assunto. Dei-lhes total razão, elencando motivos pelos quais considerava, não apenas inoportuna mas mesmo altamente delicada a abertura de uma discussão do tema, à luz dos nossos interesses estratégicos e da imagem de serenidade que a Revolução portuguesa se esforçava por projetar no exterior. 

Fiz-lhes ver duas coisas. A primeira é que era óbvio que a ideia da saída de Portugal da NATO seria amplamente derrotada no Conselho de Estado, onde estava muito longe de existir qualquer maioria nesse sentido. A segunda é que o simples facto de ser um membro da Comissão Coordenadora do MFA, um militar, a suscitar a questão, facto que logo chegaria ao conhecimento público, iria criar uma polémica que o equilíbrio de tensões correntes dentro das Forças Armadas bem dispensaria. Além disso, no mundo internacional, que então olhava para Portugal com grande atenção, o surgimento desse debate pela mão de um oficial superior iria colocar uma imensa dúvida sobre as intenções políticas do MFA.

"Tu é que podias falar com ele", disse-me a certo passo o José Manuel Costa Neves. Explicas-lhe isso mesmo que agora nos disseste. Pode ser que o convenças!". O outro militar concordou.

Fiquei um pouco perplexo. De certo modo, era um atrevimento um jovem oficial miliciano, como eu era à época, ir arguir junto de um oficial superior, então com fortes responsabilidades político-militares, as implicações geoestratégicas que uma questão daquela delicadeza poderia ter. Mas voluntariei-me para a tarefa.

Note-se que o ambiente no seio do MFA era então muito diverso daquilo que se pode imaginar. Eu, como muitos outros milicianos que por ali andavam, tinha grande à-vontade e tratava por tu algumas figuras cimeiras da Revolução, as quais, acredite-se ou não, e salvo algumas notórias exceções, alimentavam para connosco uma atitude de grande camaradagem, marcada por uma imensa informalidade, bem distante da rigidez hierárquica que imperava nos quartéis de onde vínhamos. 

E assim se planeou uma conversa entre mim e esse oficial superior, logo para o dia seguinte. Recordo-me que ela veio a ter lugar no gabinete que pertencia ao coronel, depois general, Franco Charais, membro da Comissão Coordenadora, que estava ausente de Lisboa nesse dia. Lembro-me bem do local porque eu próprio vim a ocupar esse belo gabinete, revestido a azulejos, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, entre 1994 e 1995, antes de ingressar no governo.

Já não tenho bem presentes os pormenores da conversa que tive, mas ela terá espelhado o contraste entre um miliciano que pretendia mostrar-se realista (à época, eu estava longe de ser um moderado, mas era forçado pela razão a ser realista), que desenvolveu uma teoria favorável a equilíbrios geopolíticos que considerava importante preservar na conjuntura, perante um oficial, membro da um órgão de grande influência e visibilidade política, que então defendia uma postura de insensato radicalismo, próxima daquelas que alguma extrema-esquerda proclamava pelas ruas e paredes do país. 

Uma das peças do meu argumentário terá sido decisiva para frear o fulgor extremado do militar: lembrei-lhe que ele iria ficar numa clara minoria no seio da Comissão Coordenadora do MFA e, a partir dessa sua tomada de posição, passaria a ter menor audição junto desses seus pares, o que se tornava mais grave por se tratar de alguém que havia sido escolhido para o Conselho de Estado. Para além do facto de estar a atuar "sem rede" no âmbito do seu próprio ramo militar, porque ambos sabíamos que esse setor da Comissão Coordenadora do MFA era esmagadoramente desfavorável à sua posição. O homem ouviu-me com atenção, discutiu apenas alguns pontos e, para o que agora interessa, nunca chegou a suscitar a questão no Conselho de Estado. Eu tinha feito o que me tinha sido solicitado, que, neste caso, coincidia precisamente com o que pensava. A missão estava cumprida.

Uma nota final. Esse militar, depois de uma postura algo radical que ainda duraria alguns meses, acabaria por reverter por completo essa sua atitude política. Veio mesmo a ligar-se a uma deriva contra a Revolução, por meios sediciosos. É a vida! 

sábado, janeiro 27, 2024

Seteais




"No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro deserto e verdejante todo salpicado de botões amarelos; ao fundo o renque cerrado de antigas árvores com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e, emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta-escura coroada pelo Palácio da Pena, romântico e solitário no alto com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro…”

( Eça de Queiroz, "Os Maias" )

sexta-feira, janeiro 26, 2024

Isto

Um dia, se e quando viermos a ser uma sociedade decente, todos acabaremos por compreender que ser anti-semita, isto é, detestar os judeus, configura uma atitude criminosa perfeitamente equivalente a ser anti-árabe ou anti-islâmico. Até lá, somos o que somos. Os que o são, claro.

Ai PPD!

Nunca na vida me passou pela cabeça votar no PSD ou em qualquer partido de direita, mas confesso que, como cidadão, não deixa de me preocupar a crescente irrelevância da força política que representou, para a direita, aquilo que o PS foi sempre para a esquerda. É que essa deriva se faz em proveito da extrema-direita mais obscenamente xenófoba e racista ou, residualmente, de uma direita radical, populista e a-social, ambas representando o pior daquilo que a democracia portuguesa até hoje gerou. 

O espetáculo dos últimos dias foi, aliás, bem elucidativo. Perante o desfecho que, no caso judicial da Madeira, era mais do que óbvio, a liderança do PSD meteu os pés pelas contradições, tentando travar o insalvável, com uma total ausência de dignidade e frontalidade. Viu-se o resultado.

Isso veio somar-se, aliás, à extraordinária exibição do mais refinado oportunismo por parte de alguns dos seus militantes e deputados, que saltaram sem o menor pudor para o lado de quem lhes acenou com a possibilidade de um lugar à mesa do orçamento. Muitas pessoas ainda não interiorizaram bem o que isso revelou: que aquela gente, a começar pelo líder do partido da extrema-direita, que desde o início se passeia ou agora transita alegremente para ali, esteve, ao longo de muitos anos, a fingir que era democrata e que partilhava uma agenda cívica com um mínimo de decência, enquanto alinhava na militância ou esteve sentado na bancada parlamentar do PSD! O PSD não deve apenas ir dizendo, tentando convencer alguns, que não se coligará nunca com essa gente: devia estar a denunciar publicamente o seu repúdio perante as propostas dessa gente e da ideologia que lhe está subjacente. Por que o não faz?

A greve dos imigrantes


Há 14 anos, em França, um grupo de ativistas pelos direitos dos imigrantes lançou um movimento sob o lema "24 horas sem nós: um dia sem imigrantes". 

A ideia era simples: organizar uma greve de imigrantes naquele país, com vista a dar uma imagem de quanto a economia do dia-a-dia francês deles depende. Não tenho conhecimento do grau de sucesso da iniciativa e até duvido muito que ela se tenha concretizado de forma visível. 

Os imigrantes são, entre todos os assalariados, aqueles que, por regra, têm maior precariedade no seu vínculo laboral, vivem numa dependência económica que os torna presas fáceis do seu patronato e, finalmente, raramente têm uma consciência política capaz de os conduzir a ações reivindicativas desse género.

Esta iniciativa teve, pelo menos, o considerável mérito de levar a uma reflexão: o que seria das sociedades europeias contemporâneas sem o trabalho dos imigrantes?

quinta-feira, janeiro 25, 2024

Elvas


Acabo de ser informado que, em reunião camarária de ontem, o município de Elvas decidiu atribuir-me o título de Cidadão Honorário da cidade, como reconhecimento pelo papel que, em 2012, terei desempenhado, enquanto embaixador português junto da Unesco, no processo que conduziu à elevação da cidade a Património Mundial da Humanidade.

Fico imensamente reconhecido por este gesto, que se cumula à atribuição da medalha de ouro do município de Elvas, em 2013, juntamente com o professor Domingos Bucho, académico e historiador responsável pela preparação do dossiê de candidatura, com quem tive o privilégio de trabalhar na reunião do Comité do Património Mundial, em São Petersburgo, na Rússia, em 30 de junho de 2012. Para quem estiver interessado, deixo o relato dessa aventura negocial. Basta clicar aqui .

Já assumindo a minha qualidade de elvense honorário, convido-os a visitar aquela que é uma das mais belas e monumentais cidades de Portugal. Se não conhecem, não sabem o que perdem! 

quarta-feira, janeiro 24, 2024

Sem cravos em Capacabana


Há meses, fui convidado para ir ao Rio de Janeiro, no próximo mês de abril, para falar da Revolução portuguesa de 1974. Ingénuo, e em princípio, aceitei com imenso gosto o convite e até me preparava para ficar uns dias mais na cidade maravilhosa. Depois, caiu-me em cima a realidade do ano que agora começou: reuniões empresariais umas sobre as outras e alguns compromissos mais, que vou dando como inevitáveis. E lá foi à vida mais um regresso a Copacabana! Por quanto tempo vou manter esta ilusão de que ainda tenho todo o tempo à minha frente? Um dia, se calhar, vou ter de começar a pensar nisso. Até lá, não tenho tempo.

Portucale


No domingo passado, ao jantar, no Porto, voltei ao Portucale. Da última vez, há poucos anos, tinha comido assim-assim. Agora, saí mais satisfeito, numa boa relação qualidade-preço. A lista é farta, o pessoal atencioso e a vista, claro, continua deslumbrante. 

Estrangeiros


Hoje, à margem de uma reunião, comentava-se o facto dos portugueses tenderem a ser muito simpáticos com os estrangeiros: se, em grupo, há alguém que não fala português mas fala inglês, a tendência é toda a gente se expressar em inglês, para não deixar a pessoa isolada. Alguém comentou: "Isso é tudo muito bonito, mas só no início! Depois de dois copos, toda a gente desata a falar português e o desgraçado fica sozinho, a sorrir das graças que não compreende". Eu não concordei. Pela minha experiência é ao terceiro copo. Mas, pronto!, a divergência não é grave! 

Marcello Duarte Mathias


O diplomata e escritor Marcello Duarte Mathias escreve hoje, no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, um artigo sobre o meu livro "Antes que me esqueça".

terça-feira, janeiro 23, 2024

Ali por cá


Chama-se Ali, é iraniano, vive por cá há dois anos e guia um Uber. Não conversámos sobre política, mas vi, pelo retrovisor, que lhe sorriram os olhos quando, a propósito das minhas poucas memórias do seu país, lhe falei de Farah Diba, a mulher do último Xá, uma senhora muito simpática com quem, por mais de uma vez, conversei em jantares em casa de uns amigos iranianos, em Paris. "Ah! A família Pahlavi!", reagiu, com o que me pareceu ser alguma nostalgia, embora admita poder estar enganado na minha perceção, formada no banco de trás do carro. Depois, passámos ao futebol. Ali era fã de Carlos Queirós, que treinou a seleção do seu país. Agora, ao que me disse, não há portugueses no futebol iraniano. Contei-lhe que, numa noite em Teerão, há vinte e tal anos, à saída de um jantar num "caravanserai", de uma mesa alguém perguntou de onde vinha o nosso grupo. Quando respondi que éramos portugueses, saltou logo de várias bocas dessa mesa: "Figo!". "Hoje seria 'Ronaldo!' ", disse-me Ali, com uma gargalhada saudável. À despedida, quis ter a simpatia de referir que Portugal tinha duas coisas muito boas: o clima e as pessoas. Só espero que o Ali, na sua vida por cá, não encontre razões para mudar de opinião. Sobre o clima, claro.

"Antes que me esqueça"


A editora informou que o meu livro "Antes que me esqueça" vai agora partir para uma terceira edição. Estão a caminho mais 1000 exemplares. 

Gosto de partilhar as boas notícias com os amigos.

Vizinhos do bem


Foi há pouco. A conversa ia animada, na mesa ao lado. Eram três jovens, na casa do vinte e tal anos: dois rapazes e uma rapariga muito bonita. Não recordo uma única palavra do que conversavam, em voz alta, num ambiente que apenas se pressentia ser de muito boa onda. Nós estávamos a cear no Snob, em frente um do outro. Conversávamos sobre os dias que aí vêm. A certa altura, passado o café, pedimos a conta. Ela foi colocada sobre a mesa e, quando nos preparávamos para pagar, o papel desapareceu. "Deve ter havido algum erro e foram retificar", pensámos. Não era assim: informaram-nos que os três jovens, que entretanto tinham saído, haviam pagado a nossa conta. E estavam a fumar, lá fora. Fomos ter com eles. O trio explicou: não nos conheciam, mas tinham achado graça à serenidade da nossa conversa a dois, ao facto de termos estado por ali a falar com atenção um no outro e, sensibilizados pelo ambiente de bem-estar que tinham deduzido existir entre nós, decidiram oferecer-nos o jantar. Ficámos sem saber o que dizer! O gesto era de uma simpatia tão rara, de uma generosidade tão tocante, que nos tinha feito ganhar a noite! Afinal, ainda há coisas muito boas na vida! 

segunda-feira, janeiro 22, 2024

Palavras

Uma professora universitária comentou o fabuloso "neologismo" que detetou num texto de um seu aluno: "plumenos". Trata-se de uma imaginativa forma de grafar "pelo menos".

Lembrei-me, então, da história de um outro não menos criativo aluno universitário que, para trazer à baila uma referência, escreveu numa prova: "2º alguns autores...".

domingo, janeiro 21, 2024

Redondos


Todos temos a mania de comemorar números redondos. Daqui a dias, vou lançar foguetes porque este blogue vai comemorar 15 anos. Durante esse período, todos os dias, sem exceção, foi por aqui publicado, pelo menos, um post: quase sempre um texto, às vezes uma fotografia. Se tivesse sido um post por dia, deveriam ter sido 5.475 publicações. Mas foram mais: há pouco, foi publicado o post nº 12.000. 

Tramaram o trema!


Há pouco, descobri este lamento, assinado pelo Trema, quando o Acordo Ortográfico, no Brasil, o mandou embora. Aqui fica:

"Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüenta anos. Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente estou fora. Fui expulso para sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!... O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio... A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. O dois pontos disse que eu sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé. Até a cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cara de pau que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final para trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões.... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K e o W, "Kkk" pra cá, "www" pra lá. Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo" de medo. Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas.E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!... Nós nos veremos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história. Adeus, TREMA"

Tem barbas!

Tem barbas o truque feito no jornalismo ou no debate político de se perguntar a um candidato se sabe o preço de um bilhete de metro. A Giscard d'Estaing, nos anos 70, foi colocada essa questão e ele não sabia. É grave? Claro que não, mas como golpe demagógico e populista tem um resultado garantido. Quem não conseguir ter isso na ponta da língua - ou o preço da carcaça ou do litro de leite - é tido por insensível face àquilo que apoquenta os mais pobres. Há dias, ouvi dizer que foi perguntado a Pedro Nuno Santos se sabia o custo do bilhete de comboio entre Lisboa e o Porto. Ele, ao que parece, não foi capaz de dizer. Devia ter respondido: "Esse truque já tem barbas, tal como eu".

sábado, janeiro 20, 2024

Uma história antiga


Descobri, neste blogue, este episódio, já com algum tempo.

Conversa, numa loja do Chiado, com um colega diplomata mais velho, já reformado.

- Como é que você resolveu o problema dos livros a mais, no seu regresso definitivo a Lisboa? perguntei eu.

- Nem me fale! Foi um inferno! Não houve espaço para todos eles. Tive de fazer uma seleção.

- É que eu estou num sufoco. Tenho milhares de livros em caixotes, num armazém. Ainda não sei bem como vou proceder.

Comentário irónico da mulher desse meu colega:

- Vocês nem se dão conta do lugar onde estamos a ter esta conversa. Depois queixem-se...

Estávamos a comprar livros na Bertrand.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

Liberdade para Câmara Pereira!


Neste sábado, pelas cinco da tarde (hora do chá com scones), todos ao Rossio, clamando pela liberdade de expressão de Gonçalo Câmara Pereira! Queremos ouvir a voz, as propostas, a doutrina de um dos pilares da AD! Nem que seja a cantar o fado (se tiver de ser, sacrificamo-nos!)

A diplomacia, segundo Álvaro Cunhal


"A política externa deve estar em mãos de gente hábil, de gente capaz de manobrar, de gente capaz de ter linguagens diferentes conforme o sítio onde fala, gente que compreenda que a diplomacia não é bem uma sessão interna de um órgão revolucionário, que a diplomacia de um país revolucionário que vive uma conjuntura internacional determinada e uma situação geográfica como nós vivemos, exige muita maleabilidade e em alguns casos muita ronha".

in "A crise político-militar, Discursos políticos/5, maio/novembro de 1975, Edições Avante!, 1977

quarta-feira, janeiro 17, 2024

Cavaco

O que pretende Cavaco com o artigo no Observador? Atacar António Costa? Mas alguém deixará de votar PS depois de ler Cavaco? Não deveria estar a pedir abertamente o voto no PSD, travando a deriva para o Chega? Já pensaram na razão por que não o faz? Montenegro que se cuide! Ventura ri, claro.

Vává


Passei há pouco no Vává. Que será feito daquele lugar? Nem arrisquei entrar!

Nunca fui muito do Vává, o mítico café e snack-bar da Praça dos Estados Unidos, lugar geométrico de encontro geracional de gente que fez muito bem às artes, às letras e à modernidade de um Portugal então parado no tempo. Os meus pousos lisboetas, por esses tempos dos anos 60 e 70, eram, um pouco mais abaixo, a Granfina (e o Nova Iorque, às quartas, quando a Granfina fechava) e, mais tarde, o Montecarlo.

Eduardo Guerra Carneiro, poeta vila-realense de um tempo anterior ao meu, com quem ainda tive o gosto de charlar em algumas noites no Snob (eu era mais Procópio), escreveu um dia isto sobre o Vává, no seu "Isto anda tudo ligado":

"Os guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira, como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade."

Chega

Militantes do Chega fizeram das suas numa sessão na Universidade Católica, agredindo um jornalista. Denuncia-se o ato? Para quê? Julgam que as pessoas se escandalizem e assim não votam no Chega? Mas ainda não perceberam que quem vai votar no Chega é gente que aceita isso?

Ao que leio, a sessão seria à porta fechada. Ah! Sim? Então a Universidade Católica está disponível para organizar sessões restritas do Chega? O PCP também pode fazer lá reuniões desse tipo?

terça-feira, janeiro 16, 2024

Lavoura

Estão a tomar nota das manifestações dos agricultores alemães? Não viram nada! Esperem pelas perspetivas dos impactos dos futuros alargamentos da União (é disso em que estão a pensar que eu estou a falar) na Política Agrícola Comum...

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Às armas?

Quem quer uma guerra? Os EUA? O Irão? Sunak arma em Churchill. Israel faz de morto. A União Europeia faz de conta. Duas coisas são verdade nas guerras: a culpa do desencadear de um conflito nem sempre é do outro e sabe-se como as coisas começam mas não se sabe como acabam. 

Outro tempo ? (2)


Fechou a Férin! Com esta notícia, até os ossos do Eça acabarão por recusar sair do remanso de Santa Cruz do Douro para a frialdade de Santa Engrácia.

Outro tempo ?


Soube ontem que fechou o "Outro Tempo Bar", o meu estimado pouso, para o tarde, em noites depois de concertos na Gulbenkian. Um lugar despretensioso e seguro, com um serviço delicado. 

Em dezembro, antes do Natal, fui despedir-me, com um jantar, do "Poleiro", a poucas horas dos irmãos Aurélio e Manuel Martins trespassarem a casa. Fui dali sempre um cliente fiel, desde a sua abertura, em 1985.

Será que tudo o que era de "outro tempo" está mesmo a encerrar? Isso também será válido para as pessoas?

Pobre PPD !


O PSD estará de cabeça perdida? Isto uma campanha eleitoral que se veja? Não há ideias próprias, propostas próprias, além de dizer mal do que o PS fez ou não fez? Será que estamos a assistir ao suicídio em direto de um partido essencial ao equilíbrio do nosso sistema político?

domingo, janeiro 14, 2024

Voltando aos clássicos

Já Sérgio Godinho cantava no "Lá isso é" : "O fascismo é uma minhoca / que se infiltra na maçã / ou vem com botas cardadas / ou com pèzinhos de lã". É isto, não é?

Foi isto ?

Passei quatro dias sem ver um instante de televisão e parece que perdi uma reunião qualquer do Chega. Dizem-me entretanto que Ventura e o seu bando estão a captar cada vez mais gente ao eleitorado do PSD e que a "culpa" (claro!) é do PS, que tem as costas largas. Foi isto?

sábado, janeiro 13, 2024

Vinhos e cópias

No "Público" de hoje (jornal que assino on-line mas que, por vezes, também adquiro em papel, porque sim), Bárbara Reis fala-nos da pirataria de textos dos jornais, da circulação de conteúdos que são difundidos sem que quem os recebe e lê pague o que por eles devia pagar. 

Vou arriscar: de seguida transcrevo uma parte ínfima de um excelente artigo de Pedro Garcias, no suplemento "Fugas". Nesse extrato, ele anota o que era bebido nas mesas portuguesas ao tempo em que a AD dessa época foi criada. Por acaso, não estou totalmente de acordo com essas notas, mas acho um bom ponto de partida para discutir o assunto e o contexto em que ele é mencionado. Quer conhecer esse contexto? Compre o jornal. 



quarta-feira, janeiro 10, 2024

A crise Global


Ver um grupo de comunicação social que junta títulos como o "Diário de Notícias", o "Jornal de Notícias" e a TSF em crise não deve alegrar ninguém. Ou melhor, talvez alegre alguma concorrência mais amoral e os sádicos cultivadores da desgraça alheia. Desde logo, representa um drama para centenas de profissionais e suas famílias, que devem viver, por estas horas, uma imensa angústia quanto ao seu futuro. E posso imaginar que deva ser também um momento difícil para quem tem as rédeas de gestão do grupo, que, estou certo, seriam os primeiros interessados em que essa operação empresarial fosse um sucesso e não o descalabro que está a ser.

O que é que falhou? Como se chegou aqui? De quem é a culpa? Acho muito importante que isto se esclareça rapidamente, da mesma forma que entendo que tudo o que for possível deve ser feito para tentar preservar aqueles prestigiados títulos. Como? Não sei. Exprimo apenas o meu sentimento de pena em face do que se está a passar e a minha solidariedade com todos os atingidos por esta situação.

Entrevista a José Cabrita Saraiva, para o semanário "Nascer do Sol"


Com uma carreira na função pública de 42 anos, esteve colocado em Oslo, Luanda, Londres, e foi embaixador nas Nações Unidas (Nova Iorque), OSCE (Viena), Brasil, França e UNESCO (Paris). Hoje exerce funções de administração e consultoria em várias empresas do setor privado e não se imagina a viver fora de Lisboa. 

Durante a sua vida visitou mais de cem países e conheceu figuras decisivas do nosso tempo, como Bill e Hillary Clinton, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, Chirac e Sarkozy, Gorbachov e o atual ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. Mas quem mais o impressionou foi Mário Soares – «estava à vontade em todo o lado, parecia aqueles velhos diplomatas que não se assustam com nada» – e, a nível internacional, Lula da Silva.

Alguns desses encontros, entre outros momentos e memórias, estão registados no livro Antes que me Esqueça (ed. D. Quixote), ponto de partida para uma conversa à volta da diplomacia e das suas circunstâncias.

Conheceu muita gente importante. Chegou a conhecer o Kissinger, que morreu recentemente?

Não conheci o Kissinger, mas todos nós no fundo somos um pouco clientes do seu realismo cínico. Se olharmos para os tempos da história a que esteve ligado, verificamos que há momentos dramáticos para muitos povos em que ele teve um papel decisivo. Estamo-nos a lembrar das ditaduras latino-americanas, do sudeste asiático, etc. Em relação a Portugal, Kissinger tem dois tempos. Um é o momento em que ele é convencido pelo Carlucci [embaixador dos EUA em Portugal entre 1975 e 1978] de que afinal Portugal não estava perdido nas mãos do comunismo internacional e que era possível encontrar uma solução através de Mário Soares e dos moderados dessa altura. Outro, talvez mais trágico, é o momento em que Kissinger vai com Gerald Ford à Indonésia e no dia seguinte, ou 48 horas depois, devido a uma luz verde dada por Washington, há a invasão indonésia. É nessas conversas que os indonésios ganham a consciência de que os americanos não se oporiam a uma invasão, na lógica da Guerra Fria. A eventualidade de Timor-Leste cair nas mãos do comunismo internacional levava a que Kissinger tivesse a noção de que valia tudo. No fundo não é muito diferente da velha lógica do Roosevelt, que a propósito creio que do Somosa, na Guatemala (*erro: era Nicarágua), dizia – e temos de fazer a tradução com cuidado: ‘He’s a son of a bitch, but he’s our son of a bitch’ [‘Ele é um filho da mãe, mas é o nosso filho da mãe’] Na Guerra Fria é quem está do nosso lado que conta, e ele põe um bocadinho os princípios de parte. Nesta última fase, o momento mais complexo terá sido quando, no início da guerra da Ucrânia, em mais um acesso de realismo, ele terá dito que era preciso fazer um compromisso que passasse eventualmente por algum trade-off relativamente ao território. Mas é um personagem extraordinariamente interessante da política americana. E devo dizer que ele pensa muito bem, escreve muito bem, é delicioso lê-lo. Mas nunca o vi.

Falemos então um pouco da sua experiência. O seu primeiro posto foi…

Na Noruega, em Oslo, em 79. Entrei para a carreira diplomática um pouco por acaso. Era funcionário da Caixa Geral de Depósitos, estava no meio do serviço militar, e fiz concurso…

Atirou o barro à parede a ver se pegava?

Já tenho falado com a minha mulher sobre isso. Eu já escrevia sobre questões internacionais n’A Voz de Trás-os-Montes, em Vila Real, aos 18, 19 anos. Ainda outro dia encontrei esses textos. E o meu pai era um francófilo e assinante do L’Express. Depois, entre um dos meus tios e o meu avô havia muita conversa sobre política internacional, virada para a guerra. E eu fui-me interessando. Havia concurso e pensei: ‘Eu sou capaz de fazer aquilo’. Há um elemento diletante nisto. Na altura, de manhã fazia umas horas numa empresa de publicidade e trabalhava comigo um personagem que chegou a ser famoso nos media portugueses, o locutor Pedro Moutinho. Quando eu lhe disse que ia fazer concurso para o Ministério [dos Negócios Estrangeiros], o Pedro disse: ‘Ó Francisco, você é de famílias com posses?’. E eu disse: ‘Não, eu vivo do meu ordenado’. ‘Então não pode ir para o Ministério. O Ministério é só para gente rica’. A verdade é que o meu salário, quando eu entrei, era mais baixo do que o que eu tinha na Caixa Geral de Depósitos. Portanto devo ter feito uma opção algo lúdica, no sentido de ‘deixa experimentar se sou capaz’. E devo dizer que os primeiros tempos não foram fáceis.

Porquê?

Quando entrei em 1975 o Ministério era uma casa basicamente conservadora. Mas ao mesmo tempo era uma casa muito liberal – talvez porque as pessoas viajem muito, tinha um grande cosmopolitismo. Eu tinha estado no MFA, tinha estado muito envolvido politicamente e com uma posição bastante radical. Andava com uma bigodaça e um cabelo imenso e as pessoas devem ter pensado: ‘Este tipo não está bem aqui’. Mas arranjei uma maneira de escapar: trabalhava muito e, sem modéstia, acho que trabalhava bem. Foi assim que eu subi à corda.

Foi assimilado?

Fui assimilado, numa casa que à partida não era a minha – o meu pai era gerente da Caixa Geral de Depósitos em Vila Real e eu vim estudar para Lisboa, portanto, não tenho ligações familiares nem sociais…

Porque existem linhagens no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Existiam mais no passado. E acho absolutamente normal que o filho de um diplomata tenha a tentação de seguir a carreira. Ainda hoje há muitos filhos de diplomatas na carreira e têm feito ótimas carreiras. Mas eu diria que o concurso de 1975, aquele em que eu entro – e o primeiro em que entram mulheres –, é o momento da abertura social do Ministério. Não é que não houvesse já pessoas de níveis sociais diferentes. Mas eu diria que um certo eixo Lisboa-Cascais, e certas famílias de uma aristocracia às vezes já um bocadinho erodida, predominavam no Ministério. Eu vinha com uma marca, que nunca procurei iludir, de esquerda. E a esquerda não é o território ideológico natural do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mesmo hoje, penso eu.

Então vai para Oslo.

Vou para Oslo, depois vou para Luanda.

Geograficamente não é nos antípodas, mas em termos civilizacionais…

Oslo tinha sido um banho de civilização. Dali parto para Luanda. Luanda com recolher obrigatório, com os hotéis a não funcionarem, não havia restaurantes, não havia lojas, não havia nada. A minha casa em Luanda era muito fraca, a vida era uma complicação. Mas eu e a minha mulher fomos extremamente felizes em Angola. Se calhar só tenho esta perspectiva agora, mas foi muito enriquecedor também em termos de nos dar um banho de realismo. E esse realismo tem uma dimensão política, isto é, nós percebemos que as coisas não são bem como se pintam. Por essa altura, ou uns tempos antes, entre os comunistas, apesar das divisões – os que eram favoráveis à União Soviética e ao PCP, os que eram favoráveis aos movimentos maoístas, etc. – havia uma coisa que estava numa espécie de Olimpo, que eram os movimentos de libertação. E justificava-se até muitas coisas que corriam mal por estarem no princípio.

E percebeu que afinal não era bem assim? Perdeu essa ingenuidade?

Quatro anos de Luanda ajudam-nos a pôr os pés no chão. E ajudam-nos a perceber que essa tal ingenuidade tem que desaparecer. E devo dizer que estes banhos – aí no livro conto também uma viagem à União Soviética, a Ialta, com a minha mulher, nos anos 80 – são momentos de confronto com um mundo… Eu nunca fui convidado para o PCP, talvez as pessoas achassem que não tinha vocação de seguidismo. Mas fez-me muito bem ir a Berlim Leste em 79, fez-me muito bem ir a Ialta em 80. Você tem um confronto com uma sociedade em que, intimamente, diz: ‘Eu não quero viver numa coisa parecida com isto’.

É uma vacina?

E, passando para Angola, é a dose de reforço da vacina. É o momento em que, mesmo aqueles que vêm de uma tradição marxista, como era o meu caso, de repente têm uma espécie de reconversão, no sentido de dizer: ‘Afinal, com todos os seus defeitos, a democracia burguesa é o sítio onde eu me sinto bem a viver’. Depois pode estar mais à esquerda ou mais à direita. Mas esta noção de poder dizer o que lhe apetece, de poder escrever à vontade, de poder sair à vontade, isto é uma coisa que não tem preço. Aliás, a gente olha agora para o mundo e percebe que esse é o lado certo. Independentemente de depois poder ter as suas ambiguidades.

Imagino que esses contrastes deem um cosmopolitismo que não é só o das grandes metrópoles, mas o cosmopolitismo que de certa forma lhe permite estar à vontade também em sítios menos ‘civilizados’.

É verdade, embora eu não seja dado, digamos, ao cultivo afetivo de coisas ‘étnicas’ ou de coisas ‘bizarras’ no plano cultural e da vida. Tento compreendê-las, mas não tenho paixão por isso. Sou muito urbano.

Muito europeu, também?

Muito europeu. Desde miúdo andei pela Europa. Fui à boleia da rotunda do Relógio até à Noruega.

Com que idade?

Com 19 anos e depois com 21, antes de me empregar na Caixa Geral de Depósitos. E fui aos Estados Unidos com 21 anos, nas primeiras férias que tive da Caixa Geral de Depósitos. Ninguém ia passar férias aos Estados Unidos. Também comecei nessa altura a nascer para a cultura anglo-saxónica – em minha casa era tudo francófilo, os meus livros eram em francês, as minhas referências eram francesas – e foi aí que comecei a abrir aos Estados Unidos e à cultura americana, à história política, aos Watergates, comecei a interessar-me muito por isso. Mas de facto há um cosmopolitismo que nós ganhamos e que é estar naturalmente em qualquer sítio. E perceber que estamos sempre – particularmente os diplomatas – numa posição secundária. É-nos dado o privilégio, em determinados momentos, de assistir a determinadas situações. Mas somos atores secundários. E não podemos ter a tentação de trair a lealdade e a fidelidade da função que nos é dada. As personagens que fui encontrando, os reis, os primeiros-ministros, essas coisas todas, percebemos que tudo roda, tudo muda. A parte diplomática dá-nos um papel, diria, de lugar na bancada para esse mundo. A certa altura, no final da minha vida – e este livro, no fundo, é o somatório de tudo isso – fui fazendo uns retratos à luz da minha própria maturação. Do princípio ao fim eu vou evoluindo e vou crescendo no olhar. E, se calhar, às vezes nalgum cinismo. Depois, a circunstância de ter passado de algum radicalismo marxista para a posição social-democrata que tenho hoje também me apaziguou comigo mesmo.

Já não tem aquela visão da luta de classes, portanto.

Não, não tenho. E mais do que isso: já não tenho a noção de que qualquer coisa que eu faça pode mudar o mundo. Talvez um voto de quando em quando ajude. Mas tenho a noção de que estas coisas têm uma dinâmica que nós não controlamos.

Existe um pouco a noção de que os diplomatas são pessoas que andam refasteladas em bons hotéis e em bons restaurantes a discutir os problemas do mundo mas sem terem verdadeiramente poder para os resolver.

Sempre fui bastante comodista e sempre procurei andar em bons hotéis. Há uma expressão que agora é muito utilizada, que é sair da sua zona de conforto. Eu estou lindamente bem na minha zona de conforto e lutei muito para lá chegar, portanto não me apetece sair dela. A minha zona de conforto é aquela que eu criei, que paguei, que saiu do meu trabalho. Sim, tenho a noção de que a vida diplomática dá às vezes essa ideia um bocadinho glamorosa de andar nos alcatifados e nos tapetes, com os reis, e os jantares e cocktails, não sabendo as pessoas que um cocktail ou um jantar com gente chata à volta é uma coisa absolutamente inenarrável. Mas imagino que alguns, particularmente aqueles que querem aceder à carreira, podem sentir-se tentados por aquilo a que o Medeiros Ferreira chamava ‘os sinais exteriores da carreira’. Hoje aceito com imensa relutância alguns convites diplomáticos de embaixadas, já dei para esse peditório.

Porque é uma estopada?

Às vezes não é. Às vezes são pessoas muito simpáticas, muito agradáveis. Mas, como eu não tenho futuro no terreno político, no terreno oficial, não preciso de estar a expandir esse networking, a troca dos cartões, etc. Já não tenho vida para isso.

Não tem uso?

O meu curriculum já parou e já dá para a nota necrológica. [risos] Acho que há um momento a partir do qual até nos libertamos disso e é um bocadinho um sentimento de alívio. Dito isto, há pessoas na carreira que têm maior apetência e ainda mantêm esse tipo de ligações. Eu cito no início do livro uma frase do De Gaulle que é um bocadinho aquilo que aprendi na vida: ‘É preciso saber deixar as coisas antes que as coisas nos deixem’. Para que nós amanhã não sejamos atirados para fora. Há uma história que eu julgo que não conto no livro, que é de um velho embaixador de uma grande embaixada portuguesa que estava já reformado em Lisboa, numa altura em que fui chefiar o protocolo durante 15 dias porque havia ali um problema. E o velho embaixador, figura prestigiadíssima, dos melhores nomes que a carreira teve, entra-me no gabinete que eu ocupava transitoriamente e diz-me: ‘Vem aí a visita do Presidente da República de […]. Não se esqueçam de mim para um lugar à mesa no jantar da Ajuda’. Tratei-o impecavelmente bem, acompanhei-o à porta, trouxe-o cá abaixo ao pátio, e disse para mim mesmo: ‘Espero ter aprendido a blindar-me contra a ideia de que alguma vez sou capaz de ir ao Ministério pedir para estar no jantar de Estado do Presidente da França ou da Rainha de Inglaterra’. Quando nos deixamos tomar por essa patine protocolar, cerimonial, de relações um bocadinho fátuas, é o fim. Acho que consegui escapar a isso.

Normalmente os diplomatas têm a palavra fácil, sabem fazer aquela conversa de salão – um bocadinho de história, um bocadinho de literatura…

Não sei se ainda sabem, mas sabiam.

Esse tipo de conversa é muito comum no meio diplomático?

É aquilo a que os franceses chamam langue de bois [língua de pau]. Ou, para usar outra expressão, são tipos que conseguem não dizer nada em várias línguas. Às vezes essa conversa tem que se fazer. Como diplomatas, somos seres sociais que estão ali, não em representação própria, em representação do Estado. E, se queremos dar continuidade àquela relação, temos que ser capazes de dizer alguma coisa que não fira o interlocutor. Ouvir barbaridades faz parte também. E ouvi-las com uma cara…

Impassível?

Aqui há tempos, em Lisboa, num jantar social de altíssimo nível a que eu tive de ir, uma senhora ao meu lado explicava-me: ‘Como sabe, nos países do sul da Europa só as ditaduras é que funcionam, não são países preparados para ter um regime democrático’. Como é que eu saio disto? Disse-lhe: ‘Isso é uma teoria interessante, valia a pena até…’ Sai-se pela ironia, não há outra maneira. Caso contrário vou dizer à senhora: ‘Você é uma parva, isso é um disparate!’.

Há uns meses estive em Bruxelas, e ouvi uma discussão surreal em torno da redação de uma recomendação. Tinham tanto medo de ofender este ou aquele, que às tantas o texto já não dizia nada.

Eu refiro isso no livro, às vezes discute-se noites inteiras por causa de uma palavra. É a chamada ‘agreed language’. Se a palavra é aceite, todos os documentos a partir dali vão ter essa palavra. Quem vê de fora acha: ‘Está tudo maluco, estes tipos estão a tratar coisas completamente sem sentido’. Mas no mundo da diplomacia multilateral pode ter algum sentido. O que não significa que às vezes não estejamos ali a perder tempo.

Na União Europeia existe uma burocracia complexa e…

Existe uma burocracia muito complexa e mais do que isso: como todas as burocracias, existe para se sustentar a si própria e para não ser destruída. Conheci um velho embaixador que dizia: ‘Sempre que se cria uma organização internacional, a primeira coisa que eles criam é um fundo de pensões’. [risos] E é um bocado verdade.

Está a dar a impressão de que é uma coisa quase parasitária.

Há um país cuja diplomacia respeito muito, mas cujos princípios práticos eu não respeito muito, que é o Reino Unido. O Reino Unido era contra as organizações, contra as estruturas, porque tinha a noção de que as estruturas institucionais têm uma vocação para ser uma espécie de um monstro que se auto-alimenta. E esses monstros adoram esse tipo de linguagem redonda de que falávamos, que não tem por onde se pegar. Quando estive como secretário de Estado, e ia ao Parlamento Europeu responder a deputados, o secretariado-geral do Conselho preparava-me as respostas e eu raramente respeitava o que ali estava. Eles ficavam desvairados, porque saía da langue de bois e saía daquele mecanismo de palavras redondas – ‘eventualmente’, ‘no caso de’ e tal.

Que nunca se compromete.

Nunca se compromete e, chegando ao fim, aquilo dá para tudo. A linguagem europeia é um perigo. Agora, a Europa trata de coisas muito sérias e trata outras de forma pouco séria. Quando fui secretário de Estado dos Assuntos Europeus, eu era soberanista, basicamente, porque tinha a noção de que sendo Portugal um país cujos interesses médios dificilmente se projetavam no processo de decisão europeia, queria ficar com a maior quantidade possível de cordelinhos na mão. Porque países como a Bélgica, a Holanda ou o Luxemburgo têm interesses iguaizinhos. Nós não. Estávamos à margem fisicamente, geograficamente, financeiramente, legislativamente e até mentalmente. Portanto eu dizia: ‘Quanto mais tarde partilhar a minha soberania, melhor’. Mas depois sou apanhado por algumas pessoas que se mostraram mais abertas – e aí são mais os políticos do que os diplomatas. O meu antecessor no lugar de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, o Vítor Martins, é muito mais europeísta do que eu. Quando cheguei, dei-me conta de que herdava uma teoria com a qual convivia mal, e sou eu próprio que começo a europeizar-me e a perceber ‘se calhar eles é que têm razão’.

Converteu-se?

Fiquei, digamos, na soleira do federalismo. Mas nunca dei o passo verdadeiramente para a Europa federal. E acho que neste momento não há condições para isso. O cidadão português, quando vota, vota num deputado que elege um governo e a quem pede responsabilidades é a esse deputado e a esse governo. Não é a Bruxelas. E por isso estar a tomar decisões a nível europeu para depois o governante português dizer ‘Peço desculpa, eu não fui ouvido nem achado’ cria um problema de deslegitimação dos poderes nacionais.

Encontrei nestes textos várias referências a leituras e à aquisição de livros. 

Aqui não há livros. Estão lá em baixo. A minha mulher, que é baixinha, entra no escritório e não me vê, tem que espreitar por trás das pilhas de livros. Eu tenho uma tese sobre a sexualidade dos livros, acho que os livros se multiplicam. De vez em quando saem daqui umas carradas para a biblioteca de Vila Real, onde já estão uns milhares. E há em Vila Real, na casa onde o meu sogro viveu, uma cave com 100 caixotes – não são 99 nem são 101, contei-os outro dia, são 100 – por abrir. Fotografias, discos, alguns dossiês, se calhar contas antigas. E livros e livros e livros. E também aquilo a que o Jaime Gama chama ‘não-livros’. Como Pássaros da Moldávia, aqueles coffee table books que na vida diplomática nos oferecem muito, e esses a Biblioteca de Vila Real não quer [risos]. Vivo atulhado de livros, vivo a comprar livros todos os dias. Será até ao final da vida. A única coisa a que eu não tenciono resistir é a comprar livros.

O problema é que é muito mais rápido e fácil comprá-los do que lê-los.

Até lhe digo mais: comprar um livro é uma coisa que dá um prazer às vezes superior à leitura!

Imagino que seja útil para um diplomata ter uma certa cultura livresca. Se vai à Rússia não pode dizer que não leu o Guerra e Paz.

É verdade. Mas não sei se as novas gerações são capazes de acompanhar isso. Havia uma cultura média, a que o meu pai chamava ‘cultura de almanaque’, que as pessoas tinham e que nos permite estar à mesa… Há uma história que se conta de uma mulher de um diplomata que ficou ao lado de um escritor, e perguntou-lhe: ‘O que é que está a escrever?’. E ele: ‘Uma autobiografia’. ‘Que interessante! E é sobre quê?’

[risos] Tem de haver um mínimo?

Exato. Não sei se hoje esses mínimos são cumpridos. A minha geração, que acabou o seu curso nos anos 60, princípios de 70, tinha uma espécie de curiosidade renascentista sobre tudo.Às vezes um bocadinho pela rama. Mas íamos a todas: cinema, literatura, semiologia, depois apareceu a linguística… Isso, para uma conversa social, é um mundo ideal. Não faço ideia se as novas gerações são capazes disso. Mas se calhar eu também sou incapaz de manter uma conversa com alguém que… Às vezes vejo os cartazes daqueles festivais de música e daquela lista de bandas não conheço ninguém. Fico angustiado. Outro dia veio cá aquele grupo, Coldplay. Quando pus no Twitter, fui insultado por não saber o que era o Coldplay.

Tal como há temas preferenciais nesses encontros sociais – como o vinho ou o novo filme que está no cinema – também há temas proibidos? Estou a pensar, por exemplo, no futebol e se o golo foi ou não fora de jogo.

Há um tema proibido socialmente, e não apenas na carreira diplomática: as questões religiosas. Também é de evitar as questões políticas, assim como conversas muito fracturantes. E algumas grosserias, algumas anedotas mais ‘pesadas’. A vida diplomática é muito parecida com a vida social da média-alta burguesia. A conversa é à volta dos livros que estão, dos filmes que estão, às vezes de coisas mais levezinhas. Há uma história que por acaso não conto aí, de uma bielorrussa lindíssima que eu conheci num jantar no Quirguistão e em que ela diz: ‘Eu quero ficar ao lado do embaixador de Portugal, que eu quero discutir um grande, grande escritor português’. E eu: ‘Claro, com certeza’. E pensei: será o Lobo Antunes, o Saramago?

E quem era o escritor?

Paulo Coelho. [risos] E posso garantir-lhe uma coisa: o Paulo Coelho foi durante todo esse jantar um grande escritor de língua portuguesa. Assumi a cem por cento. Devemos evitar atitudes muito radicais e confrontacionais. Embora às vezes a parte política seja mais complicada. Mas há um ponto interessante: a diplomacia é uma espécie de esperanto global muito marcado pela cultura europeia, que é aquela que define todas as regras do protocolo, o funcionamento das embaixadas, etc. E isso também nos ajuda a circular com alguma comodidade. Apanhando os códigos, estamos à vontade em qualquer sítio.

Sendo obviamente um meio requintado, com regras de etiqueta e de comportamento muito específicas, não há às vezes tendência para um certo snobismo?

Um certo…?

Snobismo.

Claro! Sim, sim, sim. A carreira [diplomática] é um espaço para cultivo da snobeira. Quem é à partida snob sente-se na carreira como peixe na água. Para já, porque permite alimentar e sustentar o seu sonho de convivência social, e portanto encontra ali o terreno ideal para isso. Depois, porque isto também é muito permeado por aristocracias, particularmente em países monárquicos. E porque ainda subsistem – acho que cada vez menos – aqueles momentos de solenidade do uso da casaca, do uso do fraque – se é de manhã com colete claro, se é à noite com colete escuro –, do uso do smoking, das condecorações, essas coisas todas. Há quem cultive essas coisas, e de certa maneira cultiva também o snobismo que vem atrás de tudo isso. A carreira antiga estava mais próxima desses rituais. Há um livro do embaixador Paulouro das Neves que tem o título ideal para isso: Rituais de Entendimento. São rituais de entendimento, mas também de comportamento. Não podemos, por exemplo, ter um tipo de agressividade que possa ser desagradável. Ou melhor: podemos ter agressividade, desde que ela seja estudada. Eu tenho hiatos de agressividade propositados. Por exemplo, receber um embaixador estrangeiro que na véspera disse umas coisas desagradáveis sobre Portugal. Ele começa a justificar-se, eu levanto-me e ponho-o na rua. ‘Pode continuar absolutamente a dizer de nós o que quiser como disse ontem. E não venha dizer que não disse, que eu tenho três testemunhas. Agora, da sua atitude nós vamos tirar consequências nas relações com o seu governo’. E ponho-o na rua. Passado duas semanas, ele estava a dizer bem de Portugal por todo o lado.

O diplomata pode ter de lidar hoje com Sócrates e amanhã com Passos Coelho, como foi o seu caso. A cor política muda alguma coisa na relação?

Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros e 15 primeiros-ministros, creio eu. Nós temos que aprender uma coisa muito simples: somos funcionários do Estado, e eles também têm que aprender que nós somos funcionários do Estado e não funcionários do governo de turno.

Nem do partido.

Nem do partido. E temos que aprender que quem tem legitimidade política são eles. E perante isto, há duas coisas a fazer. Em primeiro lugar, perante alguma coisa que nos mandem fazer e sobre a qual nós tenhamos dúvidas, dizer: ‘Eu não concordo, por isto, por isto e por isto’. Ele diz: ‘Muito obrigado, mas de qualquer forma vai ter que fazer’. E eu faço. E assim eu resolvi todos os problemas da minha vida. Aconteceram-me duas ou três coisas na carreira em que me senti verdadeiramente dissociado. Uma delas, que é a principal, foi a Cimeira das Lajes. Ninguém me pediu para fazer nada, mas senti-me profundamente ofendido com a utilização do nome de Portugal para uma acção baseada naquilo que era uma evidente mentira. E não é só mentir, porque a gente está sempre a falar da mentira das armas de destruição maciça. Trata-se de falta de respeito pela vontade multilateral, que é um elemento fundamental da atitude portuguesa no plano internacional desde o 25 de Abril. Portugal associou-se a uma acção de natureza unilateral sem mandato das Nações Unidas.

Sentiu isso logo na altura ou a posteriori, depois de conhecermos as consequências?

Senti isso no dia. Senti isso na coreografia que levou à organização da cimeira. Senti-me envergonhado de ver o governo português envolvido numa ação daquela natureza, porque era uma acção de sabujice internacional relativamente aos americanos. Temos uma excelente relação com os Estados Unidos, é um dos elementos identitários mais fundamentais da nossa política externa. Mas temos que saber defender nesse quadro os princípios e valores que Portugal tem aculturado ao longo de quase 50 anos de democracia. Fugir disso rompendo com uma prática internacional vai contra os princípios constitucionais portugueses. Mas não disse uma palavra. Digo isto agora porque estou a fazer uma espécie de ponto de situação sobre a minha carreira. Depois, nos dois anos que estive em Paris, entre 2009 e 2011, procurei aumentar os consulados, aumentar o número de professores para os estudantes da comunidade portuguesa, dar mais meios para os leitorados, etc. E de repente vem a troika e dizem-me: ‘Há menos dinheiro. Vamos cortar pessoal, vamos baixar salários, vamos cortar professores, vamos reduzir os consulados. Você vai ter que ficar embaixador de Portugal em Paris e também na UNESCO, para poupar. E vamos vender a casa’.

Tudo o contrário do que andava a defender, portanto…

Como o Thomas Moore, eu sou ‘a man for all seasons’ [um homem para todas as ocasiões]. Tenho que fazer isso, porque é essa a minha função como servidor público. O meu pai era funcionário do Estado, na Caixa Geral de Depósitos. Eu fiz concurso para a Caixa Geral de Depósitos, entrei e telefonei-lhe: ‘Sou seu colega’. O meu avô da parte materna era funcionário público, era juiz, na minha família são todos funcionários públicos. Tenho um grande, grande orgulho em ter sido funcionário público. E um diplomata também serve uma entidade. Não estamos ali por nós próprios, estamos ali pelo nome de Portugal. Ainda por cima é muito cómodo ser diplomata português no estrangeiro. Somos um país muito bem aceite, visto como um honest broker no quadro internacional. Somos um país antigo. E somos um país que projecta uma imagem positiva.

Sem desprimor, se calhar somos um bocadinho como o Belenenses ou a Académica…

Se calhar.

Não ameaçamos ninguém e por isso todos simpatizam connosco.

Exatamente. E como nós não temos grandes interesses, podemos dar-nos ao luxo de ter grandes princípios. Tem razão, a circunstância de sermos um país que não é muito agressivo, que não tem agendas muito tensas, torna-nos um bocado um Belenenses ou uma Académica. Toda a gente nos acha simpáticos. E se vir, sempre que procuramos eleger alguém para qualquer coisa é raro perdermos. Já perdemos, mas é raro. Porque temos amigos em todo o lado.Na América Latina, na África, na Ásia. Acabámos por nos reconciliar com as antigas colónias mais depressa do que outros impérios fizeram. Temos com alguns países da América Latina melhores relações do que eles têm com Espanha. E eles inclusivamente utilizam-nos como uma espécie de plataforma na relação com a Europa para fugir à tutela espanhola.

Insistindo um pouco na questão da cor política, toda a gente sabe o que o PS pensa de Cavaco Silva ou de Passos Coelho. Cada vez que Cavaco faz uma declaração, cai-lhe o PS todo em cima. Falámos no Belenenses mas o que se passa nos partidos é mais parecido com um Benfica-Sporting. Há um lado quase tribal, de claque. Para um diplomata ligado a um partido como é isso?

Nunca tive o mais pequeno problema. Cavaco, aliás, foi quem me fez a prova oral de Economia Política para a entrada para o Ministério. Fui adjunto de Durão Barroso para as questões de cooperação. E ele sabia, quando me contratou, o que eu era politicamente. No Ministério toda a gente sabia de onde eu vinha. E o Barroso não hesitou em ter-me no gabinete.

Ele também vinha da mesma área, na realidade…

Mas prevaleceu a noção de que eu tinha capacidade profissional para aquelas questões. E trabalhei com ele durante três anos sem o mais pequeno problema. No Ministério, até chegar a embaixador, e foram vinte e tal anos, não estive mais à vontade com gente do PS do que do PSD. Parece estranho mas é verdade. Acho que as pessoas até valorizavam a circunstância de eu vir de outra área política e apreciavam mais a minha lealdade em função disso. Pode-nos dar mais prazer representar uma pessoa do que outra, mas representei gente bastante à direita sem grandes problemas.

Mas reconhece que a política está a ficar… há pouco usei a palavra tribalizada.

Está. Se calhar, com esta fragmentação do espectro partidário e com a possível projeção da necessidade de novos modelos de alianças que possam comportar partidos que saem um bocadinho do mainstream, isso pode vir a tornar-se mais evidente. Eu praticamente não vejo telejornais, vejo muito pouca televisão, mas noto uma crispação na vida política muito forte. Por isso mesmo, quando lancei este livro, deu-me um grande agrado ver lá amigos do PSD, do CDS e de diferentes áreas, porque eu cultivo um bocadinho isso. Aliás, o livro foi apresentado pelo Jaime Nogueira Pinto e pelo Zé Ferreira Fernandes, e tem o prefácio do Jaime Gama. Eu não tenho mais amigos à esquerda do que à direita. Pelo contrário, se fizer bem as contas, se calhar tenho mais à direita do que à esquerda. Mas sim, sinto uma crispação na vida política, sinto que discurso às vezes resvala para elementos de natureza quase insultuosa. Mas depois consolo-me quando passo a fronteira do Caia e vejo o que se passa em Espanha. E veja o que se passa em França. Apesar de tudo fico mais sossegado.

Há um bocado falou-me do Quirguistão.

Sim.

Já esteve em muitos sítios estranhos, ou pelo menos onde não foram muitos portugueses.

Já estive em mais de 100 países, mas isso também significa conhecer muito pouco. Significa conhecer o aeroporto, o hotel, o centro da capital… Mas tive a oportunidade de conhecer quase toda a antiga União Soviética – os cinco países da Ásia Central, os países do Cáucaso, os bálticos – e é interessante perceber a identidade de cada uma daquelas repúblicas e até a relação que cada uma tem com Moscovo. Ganha-se imenso em ir lá. Referiu o caso do Quirguistão. Eu vivia em Viena, e fui numa missão que a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa arranjou para embaixadores que quisessem ir. Estávamos num tempo de vacas magras e paguei do meu bolso. Só andando de país em país é que se percebe a diferença entre um e outro. Quase todos são ditaduras, e quase todos são, no fundo, subprodutos do mundo soviético. O diplomata tem – e eu tive essa sorte – a possibilidade de andar um bocadinho por aí.

Mas não são sítios para fazer turismo, imagino.

Acho que apesar de tudo a Ásia central dá para fazer turismo. Ir ao Uzbequistão, ir a Samarcanda, vale a pena. Mas depende das cidades. Uma das coisas que eu sempre achei no mundo soviético e mesmo na Europa de Leste é que faltava-lhes tinta. Havia uma espécie de uma obsessão para se manterem no cinzento e nos tons escuros, quando a cor muda tudo. Acho muita graça a visitar aqueles países, embora a vida daquela gente seja uma tragédia. Um dia, no Tajiquistão, tivemos uma reunião com o Governo e disseram-nos: ‘A oposição pode ter os jornais que quiser’. Depois fizemos uma reunião com a oposição, e confirmaram. ‘Sim, podemos ter os jornais que quisermos. Mas não nos vendem papel’. É assim. Ou uma outra história passada no Turquemenistão, com uma senhora de uma organização não-governamental que defendia presos políticos e tinha o marido na cadeia. Veio falar connosco, com um ar muito triste, mas com uma grande dignidade. E à saída disse: ‘Os senhores têm uma representação aqui, não é? Seria possível essa representação falar com as embaixadas ocidentais e dizer que vim ver-vos hoje aqui? É eu amanhã vou ser presa, naturalmente’. Aprende-se muito mais a amar a liberdade quando se tem este tipo de experiências.

Tarde do dia de Consoada