sexta-feira, agosto 07, 2020

O chato

- Ó diabo! Vem ali o Castanheira!

O comentário feito pelo chefe de repartição, voltando-se para o diretor-geral, quando ambos saíam para o almoço, alertava para um perfil rotundo, algo bamboleante, que, ao fundo, vindo da rua, se aprestava para circundar o jardim central do pátio das Necessidades.

O Castanheira era um daqueles funcionários, entre o caricato e o patético, que o ministério, para não ter de enfrentar a óbvia inadequação para ocupar lugares de responsabilidade na sede, optava por expatriar em serviço, esquecendo-o em consulados longínquos, na ilusão de que isso os tornaria inóquos para a imagem de uma carreira que, por incompetência e irresponsabilidade, os havia deixado entrar no quadro e, por cobardia e descuidada gestão de recursos humanos, não era capaz de isolar numa prateleira interna, para evitar piores males.

Os "Castanheiras" existem em todos os tempos do MNE, ganham lugares no quadro externo num qualquer "movimento diplomático" que deles acaba por ter piedade ("Coitado! Tem filhos..." ou "O homem já anda por aí há tanto tempo...") e, não raramente, transmitem uma medíocre imagem do país que lhes caberia saber representar. Não são muitos, felizmente, mas, por muitos poucos se sejam, são em número demasiado. Quem conhece bem a carreira sabe do que estou a falar.

Vindo de férias a Lisboa, do lugar distante para onde o "conselho" o tinha mandado já há anos, o Castanheira avançava então, nesse dia de verão do final dos anos 70, com um fato claro de mau corte, que denunciava os tristes trópicos por onde agora pairava, em direção às duas figuras da hierarquia que saíam do palácio. Era um homem conhecido pelo verbo balofo, pelo caráter prolixo dos seus comentários, enfim, para sintetizar, por ser um inenarrável chato, uma lapa oral, daqueles que nos agarram a manga do casaco e colocam a mão sapuda no ombro, que aproximam a cara para reforçar a cumplicidade, fazendo-nos partilhar a riqueza odorífera do seu bafo, coisa agora mais perigosa, em tempos de pandemia.

Ora o diretor-geral, um embaixador da velha escola, era um exemplo conhecido de quantos, na sua consabida snobeira e pesporrência, não tinham a menor paciência para conviver com esse estilo de figuras, algo untuosas e fátuas. Tinha apenas uma vaguíssima ideia do tal Castanheira, fruto de anedotas que dele ouvira, na tradição oral de escárnio em que o MNE é useiro, vezeiro e cruel. Nunca tinha falado com ele e, francamente, não era agora que isso iria acontecer, como desde logo avisou o amigo com quem ia almoçar. Este, por uma infeliz coincidência para o momento, tinha entrado para a carreira no concurso do Castanheira, o que o não dispensava de uma saudação mínima ao colega expatriado e que há muito não via.

- É pá! Vê lá se nos libertas logo do homem! Dizem-me que é um cretino de altíssimo coturno... - sussurrou o embaixador, com o Castanheira já quase à distância de um cumprimento.

O encontro deu-se à saída do pórtico de acesso ao palácio, sob o olhar atento, venerador e obrigado do Matos, o digno porteiro que, à época, por aí oficiava, no lugar onde, nos dias de hoje, pairam umas fardas anónimas da Securitas ou coisa parecida, uma espécie de genérico funcional, em tempos de seca orçamental.

Ao abraço entre o Castanheira e o chefe de repartição, seguiu-se o inevitável:

- ... não sei se se conhecem: o Castanheira, que anda agora pela América Latina, e o senhor embaixador...

O Castanheira nem deixou o amigo terminar a frase:

- O senhor embaixador?! Essa agora! Quem o não conhece?! Tenho imenso prazer em encontrar vossa excelência. O senhor embaixador é uma figura referencial da carreira, é - permita-me que lho diga!- uma das personalidades que mais honra a nossa diplomacia. Tenho por vossa excelência uma incontida admiração e andava, há anos, por ter o ensejo de lho expressar em pessoa. É para mim um imenso privilégio poder conhecê-lo e cumprimentá-lo. E diria mesmo, agradecer-lhe o que tem feito por nós, pela nossa casa, pelo prestígio da nossa profissão. Vossa excelência é um exemplo que todos procuramos seguir.

E o Castanheira, sempre ditirâmbico, continuou numa elegia gongórica sobre a figura do diretor-geral, lembrando os seus postos anteriores e os alegados feitos profissionais relevantes que bem ilustravam esse percurso. O amigo chefe de repartição só a custo conseguiu pôr cobro, ao final de uns minutos, a essa inesgotável verborreia.

Finalmente, lá se descolaram do Castanheira, que anunciou que ia ver umas "senhoras" ao "quarto andar", para tratar do telhado do consulado. "O senhor embaixador sabe, melhor do que ninguém, o que são essas coisas", deixou no ar, profissionalmente cúmplice, afastando-se, não sem uma respeitosa vénia ao superior hierárquico.

O chefe de repartição, aliviado, olhou para o diretor-geral e comentou:

- Ó pá! Desculpa lá teres tido que aturar este tipo. É um chato, nunca mais nos desamparava a loja...

- Essa agora! Até te digo mais: fiquei bem impressionado com o rapaz! Este Castanheira pareceu-me simpático e articulado. Mudei a ideia que me tinham criado dele. Como é que ele está na lista de antiguidade? Não lhe podemos dar uma mão, na reunião do "conselho" para as promoções, para a semana?

quarta-feira, agosto 05, 2020

As cartas de Paihama

Só há pouco soube da morte de Kundi Paihama, uma figura política, e depois militar, angolana que, nos tempos de José Eduardo dos Santos, ocupou diversas e importantes funções ministeriais, tendo também sido governador de várias províncias.

Kundi Paihama era vulgarmente tido por ser de etnia cuanhama (embora ele contrariasse essa ideia), que fugia à tradicional dicotomia entre quimbundos, como José Eduardo dos Santos, e ovimbundos, como Jonas Savimbi, que polarizou a vida angolana.

Acompanhei António Pinto da França, embaixador português em Angola, na visita que este lhe fez, em junho de 1984 (recordo bem, porque comemorávamos o 10 de junho), ao tempo em que Paihama era governador de Benguela.

Recordo-me que o António descreve, com a imensa graça que era a sua, no livro “Diário de Angola”, a audiência que Paihama lhe concedeu no fausto possível do palácio do governo do tempo colonial. Não tendo agora o livro à mão, não registei se ele também fixa a cena que se passou, nessa noite, na casa do nosso cônsul em Benguela, Fernando Coelho.

O Fernando, um bom amigo já falecido há muito, era uma figura extremamente simpática, popular, que conseguira garantir um grau de interlocução muito raro com as autoridades locais. Embora as relações de Angola com Portugal atravessassem então um tempo complexo, em Benguela elas viviam no melhor dos mundos. Fernando Coelho conhecia toda a gente, dava-se lindamente com todas as entidades da província, a começar pelo governador, assim conseguindo resolver muitos problemas. Embora frequentemente pouco ortodoxo, provou ser ali o homem certo no tempo certo.

A confirmá-lo, depois do jantar no dia da nossa chegada, Kundi Paihama bateu à porta da residência do cônsul, onde o embaixador e eu estávamos alojados, dizendo que vinha “beber um copo” com o seu “novo amigo português”. A hipótese dessa visita tinha-me já sido aventada pelo Fernando Coelho, mas não lhe conferi grande plausibilidade.

Mas ali estava o poderoso Paihama, para umas horas de boa conversa, em que nos falou do seu amor acrisolado pelo Futebol Clube do Porto e nos revelou a troca de mensagens que, no “jogo de espelhos” daquela infindável guerra civil, trocava, por vias travessas, com Savimbi, em cuja eliminação - física, militar e política -, duas décadas mais tarde, viria a estar diretamente envolvido.

A imagem mais impressiva que guardo dessa noite é, porém, o momento em que Paihama se volta para o Fernando Coelho e pergunta, com a maior naturalidade: “O senhor cônsul não tem um baralho de cartas, para jogarmos uma partida de sueca? O senhor embaixador sabe jogar sueca, não sabe?” O António Pinto da França sabia e ali formámos nós uma mesa de sueca, bem regada a cerveja.

Não tendo isso registado na memória, de uma coisa tenho a certeza: Kundi Paihama não perdeu aquela partida de sueca. Deixar ganhar o outro em coisas secundárias é uma arte que os diplomatas se habituaram a cultivar.

Destinos


Com a pandemia a colocar nuvens sobre o nosso futuro, dei comigo a pensar que, agora mais do que nunca, há lugares onde já não poderei ir. Nunca fui um viajante compulsivo, nos últimos anos aportuguesei imenso as minhas viagens, mas, claro!, há lugares que tenho pena de nunca ter conhecido. Não falo dos destinos óbvios, do turismo glamoroso. Desse, fiquei bem “servido”!

Há cidades, contudo, que, continuando a existir, deixaram de ser o que eram quando a minha imaginação me motivava para as visitar: Sana, no Iemen, Cabul, no Afeganistão, Cartum, no Sudão, ou Aleppo, na Síria. A vida que hoje por lá se vive deixou de me entusiasmar. Ainda serão visitáveis, há excursões de risco que se podem tomar, mas que graça pode ter ir numa viatura blindada entre um aeroporto e um hotel muralhado, passar a correr, dentro de um carro, por uma rua onde podemos ser assaltados, onde uma bomba pode estourar, um “rocket” pode cair, a qualquer momento? É que uma cidade, para mim, são passeios a pé, são lojas, é olhar a gente, entrar num café, numa casa de velharias, visitar, com calma, igrejas ou monumentos, experimentar (boa) comida local. E, agora, com a pandemia, como irá ser?

Certas paragens, na minha curiosidade contemporânea, deixaram de ter a menor prioridade. Quis ir e nunca fui a Pristina, no Kosovo, nem a Anchorage, no Alasca, nem a Ulan Bator, na Mongólia. Noutros tempos, tive essas cidades no meu potencial mapa de visitas, embora, devo confessar, nunca tenha feito um grande esforço para concretizar esses sonhos. Outras, como Juba, no Sudão do Sul, ou Skopje, na Macedónia, sobre as quais tenho alguma curiosidade, não me animam a uma deslocação.

Durante muito tempo, tive intenções de ir a Alexandria, mas desisti, por ter pouca graça, ao que me dizem, salvo a nova biblioteca. Nada me mobiliza ir hoje a Hanói, que já fez parte da minha mitologia, tal como aconteceu com Katmandu, no Nepal. E admito, sem dificuldade, que já não tenho paciência para ir a Alice Springs, na Austrália, que achava “o máximo” visitar. Mas, estranhamente, e ali ao lado, confesso que ainda gostava de ir a Hobbart, na Tasmânia. E também a Novosibirsk, na Rússia. E a El Aaiun, no Saara Ocidental. E a Stepanakert, no Nagorno-Karabakh. E ainda sonho ir um dia ao Okussi, em Timor-Leste, ou a Tete, em Moçambique, ou a Svalvard, na Noruega, e, talvez ainda, a Thimphu, no Butão, a Salem, no Oregon dos EUA, ou a Punta Arenas, no Chile. Terei tempo? E pachorra? Se calhar, não. Fica a nota, sem qualquer melancolia.

terça-feira, agosto 04, 2020

Ibérico


Olhando esta fotografia, tirada no “El Corte Inglés” de Lisboa, pode entender-se melhor por que razão havia, na diplomacia portuguesa, uma escola de pensamento que sempre se recusou a usar o termo “ibérico”, preferindo-lhe “peninsular”.

segunda-feira, agosto 03, 2020

O menino

Até ter sido colocado na embaixada em Luanda, em 1982, a minha experiência com africanos era muito escassa. Na minha terra, em Vila Real, havia um único negro, jogador de futebol. Na universidade tive vários colegas, negros e mulatos. (Já terão dado conta que não vou enveredar por um léxico politicamente correto). Eram oriundos de famílias das colónias com óbvias posses e, na sua relação com os restantes colegas, nunca detetetei a menor diferenciação ou discriminação. Alguns desses amigos ficaram-me, aliás, para sempre - em Cabo Verde, em S. Tomé, em Angola e em Moçambique. 

Tive o privilégio de viver um ambiente, familiar e social, que, por completo, me imunizou de quaisquer pulsões racistas. Mas mentiria se dissesse que nunca na vida contei anedotas “de pretos” e graçolas congéneres. Claro que contei, como as contei sexistas e de género. Não sou nenhum anjo!

Como diplomata, chegado a Luanda, fiz, entretanto, vários outros bons amigos, muitos dos quais de cor. Alguns conservo-os até hoje e, dentre todos eles, há um, orgulhosamente negro, que permanece como um dos meus mais íntimos amigos, que tenho para a vida. 

Cheguei a essa Angola num tempo tenso, quer na vida política interna, com guerra civil à volta, quer na relação com Portugal, que atravessava um dos seus piores períodos. Por um “milagre” que tem muito a ver com a cumplicidade de uma língua comum, mas igualmente de uma matriz comportamental com muitas proximidades, sendo um diplomata estrangeiro isso nunca me vedou minimamente o convívio com pessoas locais - negros, mulatos ou brancos. Devo aliás dizer, porque é pura verdade, que tive maiores dificuldades com alguns brancos angolanos, que pareciam pretender “fazer esquecer” a sua cor, do que com pessoas de outra cor, que viviam de forma descomplexada a independência do seu país. Às vezes, podia notar-se, aqui ou ali, a emergência de alguma arrogância, mas tudo era superável com diálogo e frontalidade respeitosa.

Com exceção do pessoal diplomático ou com estatuto equiparado, a generalidade dos funcionários da nossa embaixada em Luanda, nesse ano de 1982, era oriunda da administração ultramarina. O mesmo acontecia, aliás, nas restantes embaixadas nas antigas colónias.

Muita dessa gente sofrera o período de transição política, com guerra aberta nas ruas da capital do novo país. A maioria mandara a família para a “metrópole” e ficara para trás, a tentar ainda amealhar alguns tostões. Vivia, às vezes de forma precária, numa Luanda tensa, sem comércio, com “esquemas” para a sobrevivência, numa convivência complexa com o novo poder, muitas vezes titulado por pessoas com quem, menos de uma década antes, esses agora “expatriados” haviam partilhado uma diferente relação de forças. Era gente com sentimentos racistas? Muitos tinham amigos negros, mas em outros detetavam-se reações que relevavam de velhos vícios comportamentais.

Um dia, ao passar junto à sala de espera da embaixada, ouvi um diálogo entre um contínuo, homem já de uma certa idade, com décadas de Angola, e alguém que esperava por uma reunião e que terá inquirido sobre se o encontro ainda estava muito demorado. Foi isto que ouvi: “Ó menino! Tu vais esperar, está bem?” Voltei atrás, olhei de relance para dentro da sala e constatei que o “menino” a quem o contínuo se dirigira era um homem negro, de quarenta e tal anos, que se mantivera impávido.

Fui para o meu gabinete e mandei chamar o contínuo. Perguntei-lhe se conhecia a pessoa que estava na sala de espera. Disse-me que não, que era a primeira vez que a via, que ela estava à espera de ser recebido por outro funcionário. “Então o senhor não o conhece e trata-o por tu?”, perguntei. O contínuo sorriu, olhando para o jovem diplomata que eu era, recém-chegado de uma embaixada num país nórdico, “maçarico” nas questões africanas, e foi “pedagógico”: “Ó senhor doutor! Isto cá é assim! Eles estão habituados, já não estranham”.

Fiz uma cara séria e retorqui: “O senhor fica a saber que se me chega aos ouvidos que volta a tratar desta forma alguém - preto, mulato, branco ou às riscas - que venha à embaixada, participo imediatamente de si. E convém que se saiba que qualquer colega seu, que se comporte dessa maneira, terá uma participação idêntica”. O contínuo embatucou e saiu. Nem era mau homem, ao que vim a constatar nos tempos seguintes. Era, apenas, um produto de outros tempos.

Quando, nos anos que se sucederam, os administrativos, contínuos e porteiros da embaixada constataram que alguns dos amigos dos novo cônsul-geral, do novo ministro-conselheiro e de mim próprio afinal não eram só “caucasianos” (acho uma graça imensa à expressão, que, estou certo, à época ninguém ousava usar, com risco de ter uma gargalhada como reação!), devem ter aprendido alguma coisa. Podem não ter aceite, com sinceridade, o comportamento que lhes era imposto, mas lembro-me que as coisas, a partir dessa altura, melhoraram bastante.

Mas “old habits die hard”, como se viu em Moscavide.

domingo, agosto 02, 2020

Allen


Lembro-me como se fosse hoje, e já lá vão quase duas décadas. O meu pai, com 91 anos, que tinha ido passar uns meses connosco a Nova Iorque, anunciou-me, antes do jantar: “Hoje, com a tua mulher, vimos no Central Park aquele ator cómico de que vocês gostam muito. Como é que ele se chama? Allen, não é?”

Por mais estranho que isso pareça, pensei em Dave Allen, um fantástico intérprete irlandês de “stand-up comedy”, que tinha “sketches” televisivos magníficos e que víramos uma vez num espetáculo em Londres. Se toda a gente ia a Nova Iorque, por que diabo Dave Allen não estaria por lá? E esqueci o assunto, até que, minutos depois, a minha mulher me esmagou de inveja: “Sabes que nos cruzámos esta tarde com o Woody Allen?”

Nos Estados Unidos, por muito tempo, Allen estava longe de ter a popularidade que tinha na Europa. Talvez porque, para muitos americanos, ele fosse demasiado nova-iorquino. Para essas pessoas, Nova Iorque é a cidade mais “estrangeira”, quase europeia, do país. Além disso, aquele autor e ator é conhecido como um “liberal” (palavra que por lá tem o significado contrário ao que por cá tem, isto é, significa progressista e de esquerda), o que está longe de corresponder a um certificado automático de popularidade na América.

Lembro-me de, uma noite, em casa de um médico americano amigo, ter-se falado de Woody Allen. O jantar reunia gente rica (eu era o “pobre” do grupo, tendo apenas o “anel” de embaixador, o que sempre constitui um certificado de acesso conjuntural ao elevador social), na maioria judeus, votantes democratas, que apreciavam Allen. Mas conheciam mal a sua filmografia. Eu atrevi-me a dizer que, muito provavelmente, devia ter visto toda a obra de Woody Allen (o que não é invulgar, para algumas pessoas da minha geração portuguesa). Ficou tudo a olhar para mim, com ar espantado, tomando-me ou por mentiroso ou por um obcecado. Até que um deles “explicou”: “O Francisco é europeu e lá há uma ‘mania’ do Woody Allen.” Era isso mesmo!

Tinha visto Allen ao vivo, pela primeira vez, em 1992, também em Nova Iorque, naquelas que eram, ao tempo, as suas apresentações semanais no Michael’s Pub, tocando clarinete integrado numa orquestra. Sei pouco de música, mas pareceu-me um intérprete banal, o que não impediu, depois de um solo que fez, que a sala tivesse estourado de aplausos. Tenho na memória que, na mesa ao lado da nossa, visivelmente entusiasmado com Allen, estava o intéprete preferido de François Truffaut, Jean-Pierre Léaud. Na noite seguinte, fui encontrar este, de novo, desta vez a jantar no Elaine’s - o que prova que seguia o roteiro de uma Nova Iorque de turismo “intelectual” que estava na moda. Estranhei mesmo, na noite seguinte, não o ver no Blue Note...

Nesses anos mais tarde, em que vivi em Nova Iorque, um amigo português, de visita, quis ir ver Woddy Allen. Os shows semanais já eram então no Hotel Carlyle e lá fomos: para o meu incompetente ouvido de amante de jazz, o clarinetista não evoluíra nada.

Na sua autobiografia, que estou a acabar de ler, Allen reconhece, talvez com esforçada modéstia, que é um músico apenas banal. E conta que um amigo um dia lhe perguntou: “Não tens vergonha?” O amigo referia-se ao facto de, nas “tournées” do conjunto onde Allen se integra, um pouco por todo o mundo, as salas se encherem, não pela qualidade musical do produto oferecido mas, muito simplesmente, pelo desejo das pessoas de irem ver tocar (sofrivelmente) jazz um (genial) autor e intérprete de cinema. Allen não respondeu e, pelos vistos, continua a dar-lhe muito prazer esse vício musical.

Sobre as trapalhadas em que Woody Allen anda agora metido não falo aqui.

sábado, agosto 01, 2020

Europa explicada


Vale a pena ler o artigo de Fernando Neves, no “Público”, onde se explica, com clareza, a questão dos dinheiros europeus.

Jornaleiros

Nos últimos dias, por um conjunto variado e não uniforme de razões, tenho vindo a dar razão a Baptista-Bastos, quando falava de “algumas pessoas injustamente acusadas de serem jornalistas”.

Crise

Antes que as notícias da queda do PIB sejam apropriadas pelo tremendismo de um discurso cuja titularidade se conhece, gostava de lembrar que houve e há por aí uma coisa chamada pandemia. Só lembro isso!

Bom feitio

A prova provada de que tenho bom feitio é não ter emitido imprecações ao constatar que me esqueci dos carregadores do iPhone e do iPad em Lisboa. Talvez o facto da culpa ser minha e de poder carregar um deles no isqueiro do carro possa justificar esta relativa bonomia.

Posso começar a ler?


sexta-feira, julho 31, 2020

Os claustros


Bárbara Reis, jornalista do “Público” que conhece bem os corredores das Necessidades, está a publicar no seu jornal um interessante relato sobre os tempos de mudança, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, com o surgimento da democracia, em 1974. Hoje saiu o segundo desses artigos. Vale a pena ler!

Saudades do senhor Aguieira


Ontem, perto de minha casa, ocorria uma mudança. Uma camioneta recolhia caixas de cartão, com os pertences de alguém. Estou numa idade em que já me permito o luxo de fazer coisas menos curiais. Abri o vidro do carro e perguntei: “Na vossa empresa, ainda alguém se lembra do senhor Aguieira?”

Três funcionários suspenderam, por momentos, o trabalho e olharam-me, como que surprendidos pela questão, sem a menor reação. Aproximou-se então um quarto membro do grupo, mais velho, a quem repeti a pergunta e que respondeu: “Quando entrei para a empresa, ainda se falava muito dele. Mas nunca o cheguei a conhecer”. Nem eles sabem o que o nome daquela companhia deve ao senhor Agueira! 

No MNE, em matéria de embalagem dos nossos haveres, quando partíamos de Lisboa ou mudávamos de posto, houve duas épocas distintas: o tempo do senhor Aguieira e o tempo que lhe sucedeu. Não sou do tempo antes do senhor Aguieira.

O senhor Aguieira pertencia a uma empresa de transportes que, por um daqueles mistérios que já não vale a pena tentar esclarecer, em outros tempos ganhava, com insistente regularidade, quase todos os concursos para o transporte dos bens dos diplomatas. 

Meses antes da viagem, ainda antes dos decretos da nossa nomeação "saírem", quando a nova colocação era apenas um rumor consistente pelos claustros das Necessidades, os diplomatas eram aproximados, pessoalmente ou por carta, pela empresa a que pertencia o senhor Aguieira, com o objetivo de pôr à disposição os respetivos serviços. Outras surgiam, mais tarde, mas quase todos acabávamos por preferir a empresa onde o senhor Agueira trabalhava.

O senhor Aguieira circulava pelos corredores do MNE, sempre de pasta na mão, como se fosse dos quadros da casa. Tinha o ar daquilo a que, em certa época, se qualificava como "um velho ministro de segunda" (sendo que "ministro" significa, no nosso jargão interno, "ministro plenipotenciário", bem entendido!, e “de segunda”, era sinónimo de “2ª classe”, ou melhor, que não era de “1ª classe”, o que fazia toda a diferença). Sempre a caminho ou a sair do "quarto andar" (a área administrativa da casa), o senhor Aguieira distribuía cumprimentos a muitos que ia encontrando pelos corredores, porque era estimado e apreciado genuinamente naquela casa. 

Em situações complicadas, o senhor Aguieira "desenrascava" tudo, colocando-nos no estrangeiro, sem custo, caixotes com coisas de que só muito tarde nos tínhamos apercebido que necessitávamos e deixáramos para trás. E, em Lisboa, guardava em armazem, por meses, pacotes ou móveis que não tínhamos onde deixar. 

Entrar em contacto pessoal com o senhor Aguieira era uma experiência magnífica. Homem de grande cordialidade e muito educado, tinha toda a rede necessária para nos facilitar a vida. 

Na minha primeira mudança para o estrangeiro, não tínhamos a noção da importância de contactar diretamente o senhor Aguieira. A minha mulher ligou um dia para a empresa, para tratar de uma qualquer questão relacionada com esse transporte. Por minutos, a chamada andou de um lado para o outro. Até que, esclarecidos de que se tratava da mulher de um diplomata, a puseram em contacto com o senhor Aguieira. A reação deste foi extraordinária: "Ó minha senhora! Porque não falou logo comigo? Andou aqui pela casa a ser tratada como "louça de Sacavém" quando, afinal, se tratava de "porcelana da Vista Alegre"!". E logo resolveu tudo. De forma inexcedível.

Quando, ainda nessa primeira saída, os meus livros chegaram a Oslo, embrulhados dois a dois, antes de serem colocados nos caixotes de cartão, recordo os olhos dos abrutalhados vikings encarregados da desembalagem, surpreendidos com o esmero do empacotamento do pessoal do senhor Aguieira. 

Na minha derradeira mudança, saindo de Paris, tive imensas saudades do pessoal do senhor Aguieira, ao observar o modo primário como por ali se embalavam os livros (“só ligas aos livros”, ouvi alguém queixar-se), sem cuidar da delicadeza de alguns. Tudo a esmo!

O senhor Aguieira já não é vivo. Conhecendo razoavelmente muitos dos meus antigos colegas, tenho a certeza de não estar só neste meu sentimento de simpatia para com a sua memória. O MNE de hoje, mesmo não o sabendo, tem saudades do senhor Aguieira, podem crer.

quinta-feira, julho 30, 2020

A vida de cada um

Ontem, fui desafiado para um novo projeto. Era uma aposta muito interessante, estimulante, compensadora. Quem me convidou, fê-lo com genuíno empenho e simpatia. Tinha todas as condições para ser uma bela aventura. Pedi uns dias para pensar, mas acabei por responder ao final de escassas horas. E recusei, agradecendo, o que me foi proposto. Fi-lo com total convicção, sem hesitações, embora com a plena consciência de que o projeto “era a minha cara”, que me ia divertir imenso a fazê-lo e que o desenvolveria sem a menor dificuldade. Ao fim do dia, interroguei-me, intimamente: estarei eu já a desistir das coisas? A rapidez com que tomei a decisão poderia significar ter eu entrado numa espécie de “phasing out” de algumas das tarefas profissionais que, com gosto e convicção, tenho vindo a aceitar no mundo privado, desde que me reformei do serviço público? Concluí que não, embora também essas coisas tenham o seu tempo de validade e, em alguns casos, já tenha posto um ponto final em certas tarefas que vinha a desempenhar, embora outras tenham entretanto surgido, porque continuo a ter a rara sorte de poder escolher o que quero fazer. E dei comigo a pensar que também não era para evitar ser acusado de ir ter mais um “tacho”, porque esse é o lado para que durmo melhor - e, aqui entre nós, confesso que até me agrada provocar a matilha dos invejosos e dos “polícias” raivosos do sucesso dos outros. Não, a razão por que não aceitei aquilo que me era proposto foi muito simples: porque criava constrangimentos à minha vida atual, à minha liberdade temporal, aos meus dias, às minhas prioridades, ao meu lazer. A vida de cada um é de cada um. Aprendi isto com ela, com a vida.

quarta-feira, julho 29, 2020

Graça e desgraça


Estamos no auge da “época da caça“ à ministra da Cultura. Como todos já percebemos, os titulares da Cultura duram enquanto durar a ilusão de que podem satisfazer todas as clientelas.

Os políticos, nos cargos que ocupam, têm dois tempos. Um tempo de graça em que, por muitas asneiras que digam, são poupados pela comunicação social e um tempo de desgraça, em que, mal lhes saia da boca uma palavra menos sensata ou oportuna, é logo um pé de vento.

Abril


Chegou ontem, a cheirar a tipografia, numa edição da Colibri. É uma antologia de textos, dos mais diversos autores, contando a sua experiência do 25 de Abril ou a propósito da data. Por lá figuram 12 páginas minhas, com o texto “Abril no meio da vida”. Quando esgotarem os exemplares à venda, colocarei o seu conteúdo por aqui...

Civismo e alegria

Perde-se uma caixa com óculos, bem caros. Passam 15 dias. Hoje, lembrei-me: “E se ligássemos ao parque de estacionamento, onde estivemos nessa tarde?”. Ligámos. Estavam lá. Um cidadão cuidou em ir entregá-los na receção. E depois não querem que eu ande bem disposto e otimista!

Adeus, meu capitão!


O capitão Teófilo Bento surgiu um dia na parada do quartel com um megafone. Estávamos nos primeiros meses de 1974, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, a unidade que, tempos depois, na madrugada de 25 de abril, iria ser a primeira a sair para a rua, para tomar o objetivo estratégico que eram os estúdios da RTP.

Lembro-me de alguns de nós termos estranhado o inusitado uso daquele aparelho nas mãos do Bento, porque nada em particular o justificava. Creio que a ninguém passou pela cabeça ligar o uso do aparelho a uma revolução que estivesse ao virar da esquina. Porém, esse megafone iria ser a sua imagem de marca no 25 de abril.

À época, eu era, simultaneamente, bibliotecário, diretor do jornal “O Intendente”, oficial de Ação Psicológica da EPAM e instrutor dos cursos da oficiais e sargentos milicianos. Uma tarde de fevereiro de 1974, no meio da parada da unidade, Bento, com quem eu tinha uma relação simpática, mas respeitosamente distante, dirigiu-se-me:

“Ó Seixas da Costa, preciso de falar consigo!” E como se fosse a coisa mais natural do mundo, foi adiantando: “Você estaria disponível para entrar numa ação militar para deitar abaixo o regime?” ou uma frase parecida.

Caí das nuvens! Tinha algum conhecimento da agitação que atravessava os meios militares, tinha estado presente em duas reuniões clandestinas de milicianos, onde se procurava acompanhar essas movimenrações, mas não tinha a menor ideia de que Teófilo Bento tivesse um papel relevante nesse contexto. Reagi, por isso, com grande prudência, não fosse tratar-se de uma provocação:

“Ó meu capitão! Isso é um assunto que não pode ser tratado assim! Tenho de ter mais informações para pensar nele”.

“Muito bem. Um destes dias falamos melhor”, respondeu-me Bento.

Ainda nessa tarde, falei com António Reis, aspirante como eu, que politicamente “bebia do fino” e que, rindo-se da inabilidade conspirativa do Bento, me confirmou que o capitão era a figura central da EPAM para uma organização do que estava em curso. E que falaria com ele sobre o “incidente”. 

Depois, as coisas aceleraram. Veio o 16 de março e, pelo modo como as pessoas na unidade reagiram a esse golpe frustrado, ficou mais claro de lado estava cada um e com quem era possível contar para uma eventual nova ação.

Na madrugada de 25 de abril, o capitão Teófilo Bento, acompanhado do alferes Geraldes e do António Reis, iriam ter um papel destacado na sublevação da unidade e na organização da coluna que iria tomar a RTP.

Ainda na noite desse dia, foi Teófilo Bento quem, com todos nós a seu lado, fez as “honras da casa”, na RTP, a Spínola e à Junta de Salvação Nacional, que dali se dirigiu ao país.

Dois dias depois, a 27 de Abril, Teófilo Bento, que interinamente passou a chefiar a RTP, coordenou, na sala da biblioteca da EPAM, um encontro com um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" em que foi acolitado por António Reis e por mim. Pela sala espalhavam-se figuras como Luís de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luís Filipe Costa, Luís Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que cerca de duas dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística.

Spínola tinha entretanto outras ideias para a RTP e elas não passavam pela manutenção de Teófilo Bento e dos militares da EPAM por lá, em funções que ultrapassassem a segurança das instalações. Teófilo Bento viria a sair da EPAM. Iria mais tarde dirigir o empreendimento agrícola do Cachão, perto de Mirandela. 

Perdemo-nos de vista por muitos anos. Cruzámo-nos episodicamente e mantivemos sempre uma relação solidária de camaradagem, fruto desses dias únicos que vivemos em conjunto.

O Bento foi um “puro”, um homem bom, com grande humor e forte sentido solidário. Estava, desde há não muitos anos, recolhido num lar, de onde um dia me telefonou, quando por aqui o referi num texto.

Teófilo Bento morreu hoje. Deixo esta nota de saudade

O país das trincheiras


A anunciada decisão de algumas televisões de virem a evitar, no futuro, debates com comentadores abertamente vinculados a emblemas clubistas pode ser uma excelente notícia. Prouvera que a conversa sobre futebol, que polui o nosso panorama televisivo, venha a ganhar alguma dignidade com essa depuração, já que a sua redução drástica não parece, infelizmente, estar nas cartas.

Muita da crispação que hoje marca o ambiente futebolístico nacional releva de alguns incendiários da palavra, que excitam o sectarismo, garantindo a pés juntos que “foi penálti”, mas apenas quando tal corresponde aos interesses do seu clube e, claro, nada disso tendo a ver com a verdade objetiva dos factos, que é o que menos lhes importa.

As nossas televisões, à cata desesperada de audiências, enchem, por horas, esse circo de polémica, que é relativamente barato de sustentar e se sabe ter um mundo ululante de seguidores. Com mais ou menos adjetivos e decibéis, todos os canais televisivos seguem o mesmo caminho, mesmo aqueles que, pagos por todos nós, tinham obrigação de evitar esses vícios, assumindo a função pedagógica que o serviço público lhes deveria impor. Projetar verdades relativas, opiniões sobre factos que se sabe apenas motivadas por clubismo, às vezes com cartilhas de apoio, é um péssimo serviço prestado à educação cívica. A alguns media deveria ser a deontologia a impor essa obrigação, outros têm-na mesmo na sua natureza.

Mas fica-se por aqui esse mundo de trincheiras, a preto e branco, de factos relativos? Não fica. A política é também pasto para esse ambiente sectário, que sai das telas para se projetar nos jornais e, também, um pouco nas rádios.

Não conheço – mas admito poder estar enganado, se alguém mo provar – nenhuma democracia em que figuras eleitas ou dirigentes partidários disponham de colunas ou de outros espaços privativos de expressão mediática, com caráter regular, em órgãos de comunicação social, salvo naqueles que são, abertamente, folhas de propaganda das formações a que pertencem.

Por cá, contudo, há personalidades na política ativa que alimentam verdadeiros “tempos de antena” – nos jornais, rádios ou televisões. O que se pode esperar de alguém que foi eleito por uma certa cor, cujo futuro depende, em muito, da formação a que pertencem? Que critiquem os seus partidos? Multiplicando os atores, os media absolvem-se de acusação de sectarismo e alimentam a cacofonia, enchendo assim as horas e as páginas.

Isto já não muda, dizem alguns. São capazes de ter razão.

segunda-feira, julho 27, 2020

Abecedário de Salazar


“Então hoje não escreves nada sobre o Salazar?”. O que é eu hei-de escrever sobre o Salazar? Antes que passe a data do passamento, há meio século, deixo um abecedário, ao correr rápido da memória:

- Américo Tomás, António Ferro, Aljube, Álvaro Cunhal, Angola

- Bissaia Barreto, Barbieri Cardoso, Baixa do Cassange, Beja, Bispo do Porto, Botelho Moniz, Botas, Batepá, “Ballets Rose”

- Censura, Cadeira, Craveiro Lopes, Caxias, Catarina Eufémia, Cunha Leal, Christine Garnier

- Dona Maria, Duarte Pacheco, Diário da Manhã

- Ezequiel de Campos, “Estátua”, “Eleições”, Emídio Santana

- Francisco Franco, Franco Nogueira, “Frigideira”

- Guerra colonial, Godinho (general), Gonçalves Cerejeira

- Humberto Delgado, Henrique Galvão

- Índia

- José Gonçalves, Jorge Jardim, Júlio Dantas

- Kaúlza de Arriaga

- Legião Portuguesa, “Leninha” (Madalena Oliveira), Lajes

- Marcelo Caetano, Maria Lamas, Mocidade Portuguesa, Mueda, Mário de Figueiredo, MUD, Maltez (capitão), Maria Guardiola

- Norton de Matos

- Oscar Carmona 

- Pide, PCP, Peniche, Pidjiguiti, Palma Inácio 

- Quirino de Jesus, Quintão Meireles

- Rolão Preto, Rosa Casaco, Raul Lino

- Supico Pinto, Santos Costa, “Santa Maria”, Sousa Mendes, São Nicolau

- Tarrafal, Teotónio Pereira

- União Nacional 

- Viscondessa de Asseca, Viriatos, Volfrâmio, Vimieiro, Villanueva del Fresno

E, como imagem, deixo esta (roubada a Luís Pinheiro de Almeida), que vale por todos os retratos da ditadura.

Turismo


Pela fotografia, pode não parecer, mas o turismo no Porto dá mostras evidentes de alguma recuperação.

E hoje?


Ontem, foi assim.

Memória

Alguns acham que a nossa memória coletiva procura esconder os tempos colonialismo e da escravatura. Outros acham que estamos sempre a lembrar o fascismo e o Salazar. No fundo, o que divide o país é a memória?

Ronaldo


“Nenhum outro jogador ganhou as três ligas (inglesa, espanhola e italiana). Não importa o país, quando vens de outro planeta”, escreveu hoje a Fifa, no que pretendeu ser um elogio a Cristiano Ronaldo. 

Ora essa! Claro que importa o país! Ronaldo veio de Portugal, campeão da Europa. Anotem, para o caso de não saberem!

sábado, julho 25, 2020

Ferreira Fernandes

José Ferreira Fernandes reinicia hoje a sua colaboração com o “Público” com uma belíssima carta de amor a Angola.

(Uma vez, sem exemplo, permito-me reproduzir um artigo de um jornal que, para ser lido, deve ser pago)

Bom senso e bom gosto


sexta-feira, julho 24, 2020

quinta-feira, julho 23, 2020

Corredoura


No início dos anos 80 do século passado, vivi por alguns meses no Hotel Trópico, em Luanda. Tendo misteriosamente “desaparecido”, antes da minha chegada, por artes mágicas e nunca investigadas, o apartamento que albergara os meus antecessores na embaixada, num edifício na marginal de Luanda, não tive outro remédio senão ocupar, por esse período que me pareceu bem longo, um quarto no hotel, então já bastante degradado.

Era no Trópico que se acolhiam muitos estrangeiros, em especial portugueses em negócios e tripulações de aviões, numa mescla cuja convivência até poderia ter alguma graça, não fossem as dificuldades do abastecimento, nesses dias de guerra civil e recolher obrigatório.

Com o nosso cônsul-geral (este também por lá aboletado, embora por menos tempo do que eu), Fernando Andresen Guimarães, e o ministro-conselheiro da embaixada, José Stichini Vilela, eu almoçava e jantava, quase por regra, no "grill" do hotel, uma facilidade rara, que não era estranha à nossa, localmente muito invejada, condição diplomática.

Nesse tempo, obter uma "reserva" para comer no "grill" era uma benesse pouco comum, muito apreciada pelos portugueses e angolanos que para lá convidávamos. Diga-se que esse privilégio acontecia não obstante as tensões políticas que, à época, marcavam fortemente as relações entre Lisboa e Luanda, o que só revela que alguma afetividade, fruto de certas cumplicidades, se sobrepunha à difícil conjuntura política bilateral que se vivia. Por essas e por outras é que, ainda hoje, tenho amigos lá por Luanda.

Com algum exagero, o humor local corrente afirmava que, no outro restaurante do Trópico, no topo do edifício, que era bem menos sofisticado, havia, ao almoço, "arroz com peixe frito" e, ao jantar, "peixe frito com arroz"... No "grill", as coisas era ligeiramente melhores, mas a variedade de menus também não ia muito longe. Longe, sim, iam os tempos em que os grelhados teriam dado nome ao local. Recordo apenas o cíclico "émincé" de vitela, que nos pousava na mesa várias vezes por semana, e o sempre presente bolo Trópico, uma espécie de pão-de-ló coberto com claras de ovos, com que fechava a maioria das refeições.

O "chefe de sala" era um velho e simpático angolano que havia trabalhado no "Café de Paris", em Lisboa, o Smith. Quando perguntado sobre o menu do dia, costumava ironizar, sabiamente, respondendo coisas como: "Eu hoje aconselhava um magnífico caldo verde, seguido de um bacalhau à lagareiro. Depois, teremos um bife à Marrare. E fecharemos com um pudim abade de Priscos, que está "de truz" ". Esses e outros pratos virtuais, que se deliciava a relembrar, com expressões do léxico luso, fruto da sua longínqua memória da culinária e da vida lisboeta, logo contrastavam com as limitações do pobre menu do dia, a única realidade a que iríamos ter direito.

O vinho era, invariavelmente, o mesmo: português, de uma marca que nunca esquecerei, de que nunca mais ouvi falar - Corredoura. Não o retive, contudo, na minha memória sensorial como um néctar digno de figurar na história vinícola portuguesa, embora, nas condições locais da época, a minha escala de valores em matéria de consumo tivesse então atingido generosos limites de complacência.

O serviço às mesas do "grill", chefiado pelo Smith, coadjuvado pelo excelente Sambo, era feito por alunos da escola de hotelaria local, que rodavam com grande frequência. Eram jovens muito simples, alguns vindos das províncias, inexperientes, terreno fácil para ensaiarmos algumas graças.

A piada cíclica mais fácil era perguntar ao jovens alunos: "Há vinho?". A resposta era sempre positiva, como antecipadamente sabíamos. Essa era então a oportunidade para que um de nós lançasse, variando cada dia de fórmula, uma coisa assim: "Hoje, estava-me a apetecer um vinho português. Talvez um maduro tinto. Por acaso não tem um Corredoura, não?". Ou assim: "Para acompanhar o almoço, traga-me um tinto. Podia ser, por exemplo, Corredoura. Tem?"

Os olhos dos ingénuos e solícitos rapazes brilhavam de felicidade. "Por acaso", tinham - esse que era o único vinho existente, à época, em toda a Angola, "de Cabinda ao Cunene", para utilizar um lema então em voga. E, minutos depois, a uma temperatura sempre sinistra, lá surgia, saído da cave, um Corredoura tinto.

Consumimos então o que me pareceram serem hectolitros de Corredoura. Provavelmente esgotámo-lo. Deve ser por isso que nunca mais ouvi falar desse vinho. Tenho ideia que era dele este rótulo, que hoje encontrei.

quarta-feira, julho 22, 2020

Legalidades

A necessidade de mudar a lei, que até agora exige a luz verde municipal, para a construção do aeroporto do Montijo, lembrou-me a clássica frase atribuída a Correia de Oliveira, ministro de Salazar: o que é legal faz-se por despacho, o que é ilegal faz-se por decreto.

Rir no fim


Poucas pessoas desprezaram mais as instituições europeias do que Margareth Thatcher. A antiga primeira-ministra britânica olhava o projeto que tinha Bruxelas por eixo como uma perfídia institucional destinada a sabotar as soberanias nacionais, em proveito de uma burocracia que a si mesmo se tinha por iluminada, ao serviço de um objetivo centralista, fruto de um conluio de potências que, no fim do dia, eram adversas dos interesses britânicos. Via isso como uma espécie de “socialismo pelas portas traseiras”, como alguns por cá também ecoaram.

O Reino Unido, que historicamente começara por recusar a integração europeia, rendera-se, com íntima relutância, a ter de dele fazer parte, pelas desvantagens que resultavam da sua ausência. Fugiu, depois, a todos os compromissos que pôde evitar. Até um dia. Thatcher teria rejubilado, se tivesse assistido ao Brexit.

Lembrei-me ontem dela. As cinzas não riem, mas dei-me ao luxo de imaginar algumas gargalhadas a saírem do sítio onde as de Thatcher repousam, no Royal Hospital, em Chelsea. Mas teria ela razão para rir?

Ao assistir à feroz barganha das últimas horas, em especial à multiplicação dos “cheques” para compensação de alguns parceiros que mais avessos se tinham mostrado ao compromisso, lembrei-me do célebre “I want my money back!” (Quero o meu dinheiro de volta!), que sintetizava a sua postura reivindicativa dentro da Europa.

O processo financeiro europeu embrulhou-se ontem num modelo da maior complexidade, com algumas incoerências, induzindo dúvidas sobre a racionalidade de algumas soluções.

Mas isso importa para alguma coisa? Ontem, a Europa foi capaz, com todos esses defeitos processuais, de levar à prática exatamente aquilo para que foi criada: resolver os problemas dos cidadãos.

Há uns meses, falar da mutualização da dívida era um tabu. O tabu desfez-se. Por anos, era inviável a criação de “novos recursos”, isto é, novas fontes de financiamento orçamental. Agora, são inevitáveis.

A Europa é lenta no processo, hesitante nas decisões, complexa nos mecanismos. É defeito? Talvez seja, mas é um defeito democrático. Quem se senta à roda daquela mesa tem um mandato a cumprir. Uns foram votados para serem avaros, com a solidariedade no fundo das prioridades. Outros clamam por compensações pela abertura dos seus mercados, arrostando com a imagem de pedinchões. Cada um tem a sua legitimidade. Discutem e resolvem.

Thatcher pode ter-se rido, ontem. Mas, na Europa, ri melhor quem ri no fim.

terça-feira, julho 21, 2020

Confissão

Devo ser dos poucos portugueses que não tem a menor certeza sobre se deve haver ou não TGV. E sou talvez o único que não tem qualquer opinião sobre o lugar onde deve ser o novo aeroporto. E então sobre a terceira travessia do Tejo...

Onde anda a trovoada?



“Anda cá! Chega aqui!”.

Encostado ao muro de pedra da varanda da Casa do Pereiro, em Bornes de Aguiar, do lado do caminho, o meu tio Fernando, o mais novo dos irmãos da minha mãe, disse-me para olhar para o céu, onde raiava uma tempestade das antigas, com uma caloraça, soprada a vento, que, agora imagino, devia anunciar uma chuvada forte para dali a pouco.

Conto isto hoje, com toda a ciência e calma, mas, nessa altura, nos meus seis ou sete anos, estava completamente acagaçado com o ribombar dos trovões, com receio de que um daqueles raios acabasse por se despenhar sobre a casa dos meus avós, nesse início de noite de verão, depois do jantar.

Até a empregada lá de casa eu tinha visto a remoer orações a Santa Bárbara, prenúncio certo de que as coisas poderiam descambar para o torto. Em noites parecidas, na minha casa lá por Vila Real, havia assistido a tudo entrar no breu, com as luzes a irem abaixo, às vezes com estrondo, uma vela a surgir e alguém, mais jeitoso, a ir colocar um filamento metálico no fusível. Nada que sossegasse minimamente uma criança, filho único, nada dada a riscos, temente ao escuro e ao desconhecido! Ao lado do meu tio, contudo, sentia-me protegido, ao ver a sua coragem para enfrentrar os elementos, própria, penso hoje, de quem teve a infância no campo. 

“Vais aprender a que distância está a trovoada”. Achei aquilo estranho. A trovoada andava por ali, saltitava, via-se, mas era um pouco etérea essa ideia de onde ela “estava”.

“Já viste que entre o instante em que vês o relâmpago, a luz, e o momento em que ouves o trovão, o ruído, passa um certo tempo?”. De facto, notara isso, mas nunca ligara muito, eu que nunca tive uma grande curiosidade pelas coisas da natureza.

Ele explicou-me, então: “A luz anda mais rápido do que o som. O raio é praticamente instantâneo. O som é mais “preguiçoso”, anda a 330 metros por segundo. O que é que são 330 metros? Olha, é aí do Fundo de Vila até à estrada para Vila Real. Quer dizer: por cada três segundos que o som demora a chegar, isso significa que a trovoada está a um quilómetro, que é três vezes essa distância. Agora, olha e ouve-a bem!”.

E lá fiquei eu a contar pelos dedos, num ritmo que equiparei a segundos, o tempo que me demorou a ouvir o som correspondente ao raio seguinte que vira no céu. E recebi uma lição de geografia rural: se fosse a dois quilómetros, em linha, a trovoada andaria aí por Rebordochão ou por Vila Meã, se passassem cinco ou seis segundos já estava em Vila Pouca ou, se fosse para norte, depois de Sabroso, ia a caminho do Reigaz e de Oura.

Esta noite, sob a fortíssima trovoada que desabou sob Lisboa, lá estive eu a fazer as minhas contas, trocando o Beato por Eiriz, Odivelas por Nuzedo, Algés por Soutelinho, a outra banda pelo Bragado. E lembrei-me que devo isso ao meu tio Fernando. 

“Mas isso serve-te para alguma coisa?”, perguntará um cético, munido de alguma app que, se calhar, já foi criada para essas medições. Não sei, ou melhor, sei: sei que, entre saber ou não saber coisas, prefiro saber. Que se há-de fazer? Feitios! 

Raios e coriscos


Isto, aqui por Lisboa, na última meia hora, esteve tão animado em matéria de relâmpagos pela noite que, por um instante, dei comigo à espera de ouvir o Carlos Fino a relatar do quarto do hotel Palestina, em Bagdad... E lembrei-me das Lajes!

segunda-feira, julho 20, 2020

Livros para férias

Só para esclarecer: os livros que por aqui tenho mostrado como “para férias” não são, de forma alguma, recomendações: são apenas aquilo que vou (ou tenciono) ler (ou reler). Nada de confusões! 

Dois amigos


Conheço Carlos Costa há bastantes anos. Recordo-me da primeira conversa que tivémos, em Bruxelas, a meu pedido, em casa de João de Vallera, no final de 1995, tinha eu acabado deve entrar para o governo. Ele era então chefe de gabinete do comissário europeu Deus Pinheiro e eu pretendia algum “insight” sobre os equilíbros dentro da Comissão. Ao contrário de alguns outros portugueses que operavam nas instituições comunitárias, que se deliciavam a afirmar a sua “neutralidade” perante os interesses do país de onde eram originários (não me obriguem nunca a usar a memória sobre isto, por favor!), Carlos Costa foi sempre de uma grande lealdade face a Portugal. Acho que já posso revelar que, durante a delicada negociação da Agenda 2000 (o quadro financeiro plurianual entre 2000 e 2007, cuja negociação foi concluída em 1999), o tivémos em “alta voz”, numa chamada telefónica de Bruxelas, com Guterres como interlocutor, num conselho de ministros. Não tenho competência técnica para me pronunciar sobre o seu papel como governador do Banco de Portugal, mas não me custa admitir que possa ter cometido, com a sua equipa, alguns erros na forma e no tempo das suas funções de regulação. Mas tenho a certeza absoluta de ser um homem que sempre agiu, bem ou mal, tendo o interesse do país como referente da sua ação. Envio-lhe um abraço de amizade, neste momento.

Mário Centeno é um conhecimento mais recente. Fizemos dupla num debate, na Universidade Nova de Lisboa, creio que em 2013, sobre o processo de ajustamento da Troika. Nunca antes o tinha visto, embora tivesse lido coisas que publicou. Disseram-me então que era um quadro superior do Banco de Portugal e lembro-me que me impressionou pela simplicidade culta e profunda com que desenvolvia os seus argumentos. Voltámos a cruzar-nos em bastantes outras vezes, a partir de então. Mário Centeno demonstrou, nos anos seguintes, toda a sua capacidade técnica, mas também política, quando soube desenhar, com maestria, a planificação orçamental que permitiu compatibilizar o cumprimento estrito das obrigações europeias a que o Estado português estava comprometido com as medidas de política que permitiram ao PS garantir um apoio parlamentar, ao longo de toda a legislatura. Não foi só o país que apreciou o trabalho de Centeno: os seus colegas do Eurogrupo deram-lhe a presidência desse órgão, o que representou, simultaneamente, um raro reconhecimento e uma forte prova de confiança. A sua ida para o Banco de Portugal não é um prémio: é algo que deveria ser uma coisa óbvia para o país. Por mim, quero enviar-lhe uma saudação de amizade, com votos de muitas felicidades.

Só a medíocre chicana política em que está mergulhado o debate público em Portugal pode justificar a polémica que se criou a propósito da ida de Centeno para o Banco de Portugal. A inveja, o despeito e o horror ao sucesso alheio, que fazem parte da matriz comportamental de muita gente que por aí vegeta, no tempo que vivemos, procuraram criar obstáculos a que o antigo ministro das Finanças viesse a ter o destino a que melhor estava destinado. Ainda bem que António Costa não hesitou nunca nessa decisão. E que o presidente da República o apoiou. 

Ao que se sabe, Carlos Costa e Mário Centeno não são, entre si, os melhores amigos do mundo - e isto é um “understatement”... A mim, dá-me prazer tê-los a ambos como amigos.

A crise em várias perspetivas


Oitavo livro para férias


sábado, julho 18, 2020

Olha a mala!


O pequeno avião da Air Gabon que nos trazia de Libreville para S. Tomé nem sequer vinha cheio, nesse final de fevereiro de 1976. Fazia o percurso, de ida e volta, apenas uma vez por semana. Era a única ligação de S. Tomé ao mundo, nesse tempo em que os voos de Luanda estiveram suspensos, pela guerra junto de Luanda. 

Constava que, como passeio tradicional local, sem muito para fazer, havia pessoas de S. Tomé que se deslocavam de carro, da cidade até ao aeroporto, apenas para ver quem chegava nos raros aviões que pousavam na ilha. Chamavam-lhe mesmo, como acontecia em outras ilhas portuguesas, o “Dia de S. Avião”!

Tinha à minha espera, no aeroporto, um colega mais velho, que conhecia, embora sem intimidade, das férias da minha juventude em Viana do Castelo, João da Rocha Páris. Começou por dizer-me que decidira não me instalar, como eu tinha solicitado por telegrama à embaixada, num dos escassos e pouco confortáveis alojamentos da cidade: oferecia-me a sua própria casa. Também o embaixador, Amândio Pinto, me convidava, na residência, que era ao lado, para tomar todas as refeições do dia (foi, desde essa bela experiência, que passei a “pequenalmoçar” fruta, para o resto da minha vida). Que excelente e amável receção eu estava a ter! 

Aproximou-se de nós, entretanto, um homem, com idade que não deveria ser muito distante da minha, o qual, com um sorriso simpático, me disse: “Sou teu primo, sabias?” A surpresa era grande! Estranhei, confesso, o súbito tratamento por tu, logo apurando que era filho de um primo da minha mãe e neto de um farmacêutico de Vidago, irmão da minha avó, que eu nunca conhecera. Viria a oferecer-me, dias depois, uma bela almoçarada de cozinha africana, em sua casa, com amigos, graças ao hábil dedo culinário da sua mulher.

Entretanto, as malas saiam no tapete rolante. Eram poucas, tal como os passageiros, e a minha “Tauro”, de falsa pele acastanhada, lá estava. Levámo-la no banco de trás do “carocha” preto, que a tropa portuguesa tinha deixado para a embaixada. (Seis anos depois, eu viria a herdar, em Luanda, um carro idêntico, já com buracos de ferrugem no chão, por onde entravam baratas voadoras...)

Ainda em Libreville, a mala parecera-me um pouco mais pesada do que inicialmente a recordava, mas levei isso à conta da livralhada que adquirira em Paris, nos dois dias que por lá passara. A cave da “Joie de Lire” tinha sido irresistível.

Chegados à casa do João, decidi tomar um banho e mudar-me, para irmos jantar a casa do embaixador, uma hora depois. Abri a mala e... fiquei gelado, naquele infernal calor dos trópicos! Aquela não era a minha mala! Nela se destacavam duas “peças” que nunca mais esqueci: uma colcha acetinada, com desenhos coloridos de cavaleiros e castelos, e uns sapatos de homem, de tacão bem alto, de quem gosta de disfarçar a pequenês, de uma cor castanha amelada! 

Dei a trágica novidade ao João e, com a mala garantidamente alheia, que presumimos ter sido trocada na passadeira do aeroporto, logo partimos à desfilada, no “carocha”, para os três únicos locais onde havia hospedagem para quem vinha de fora: a antiga pousada, lá no alto, a conhecida pensão “Benguidoche” (não sei se se escreve assim!) e outro local qualquer. O património hoteleiro local esgotava-se nesse triângulo.

Não, em nenhum lado havia o menor registo de alguém ter levado a minha mala! Comigo desolado, regressámos a casa. Fez-se uma peritagem pelos pertences alheios e descobriu-se que era de alguém, de Guimarães, que aparentemente trabalhava nas plataformas petroliferas em Pointe Noire, no Congo ex-francês. Devia ter estado em Libreville, em trânsito, como eu.

A culpa tinha sido toda minha! “Puxada a fita atrás”, recordava-me de ter forçado a entrada na sala das bagagens, em Libreville, irritado com a lentidão do funcionário, deitando a mão à primeira “Tauro” que encontrei, sem sequer conferir o número da senha. Que não era a da minha mala! E despachara para S. Tomé a sua “sósia”!

No dia seguinte, foi mandado um “rádio” do aeroporto de S. Tomé para o de Libreville, para tentar localizar a minha mala. Mas fui logo avisado, pelo responsável (português) da torre de controlo: “Nunca, no passado, nos responderam a nada...” E assim iria ser dessa vez.

Ali estava agora eu, sem nenhuma roupa para mudar, sem alguns medicamentos (nada de essencial, porque então era novo e alguma coisa haveria na cidade, na farmácia da Dra. Rosa Botica, um apelido bem adequado), sem coisas para combater mosquitos de que, prevenidamente (eu fazia, há muito, minuciosas check-lists, quando viajava, mesmo à boleia), vinha munido. E sem água de colónia, sem gilete para a barba e coisas importantes assim! Estava furioso comigo mesmo! E o meu sobretudo e pullovers, essenciais para regressar por Paris, onde faziam temperaturas negativas? E a montanha de camisas, polos e calças, que caprichara em trazer?

Que fazer?, como se perguntava o clássico soviético que seguramente não perdeu a mala, quando chegou à estação da Finlândia, em Petrogrado, para os mais de dez dias que haviam de mudar o mundo.

“To make a long story short”, sobrevivi, por uma semana, com as mesmas calças e sapatos, pedi de empréstimo ao João alguma roupa interior, polos e camisas, sem grandes preocupações de vestuário protocolar, que a conjuntura não exigia. Bastava, se necessário, o meu blazer!

Sete dias depois, viajei de volta para Libreville. O avião atrasou-se um pouco em S. Tomé, à espera do primeiro-ministro Miguel Trovoada, o que me preocupou, pela possibilidade de poder vir a perder a ligação do voo da “Air Afrique” para França.

Fomos à conversa toda a curta viagem. Ele, que também acumulava com o cargo de ministro da Cooperação, tivera, num desses meus dias de S. Tomé, a imensa e inesperada gentileza de me receber em audiência. Ainda hoje penso, surpreendido: a mim, um jovem “adido de embaixada”, na sua primeira missão de responsabilidade! 

A minha semana tinha, aliás, sido bem proveitosa: além de ter resolvido a greve que mobilizara os professores cooperantes (o mundo lusófono é uma “aldeia”: o responsável santomense pelo setor era um velho amigo da universidade, que tudo facilitou), eu tinha decidido fazer dossiês individualizados sobre a situação de setenta e tal servidores públicos portugueses que tinham ficado, com diferentes estatutos, em S. Tomé. E, também sem que ninguém mo tivesse pedido, tomei notas para um longo relatório sobre as principais carências do país, em termos de cooperação, depois de conversas que também tivera com a presidente da Assembleia Popular, a carismática Alda do Espírito Santo e com quatro outros ministros, todos com uma grande disponibilidade. A semana, mesmo sem mala, tinha acabado por ser de intenso trabalho, mas ainda dei uma saltada a uma praia. Chegado a Lisboa, viria mesmo a receber um louvor do secretário de Estado da Cooperação, Gomes Mota, que muito me agradou! 

Durante a viagem para Libreville, ofereci a Miguel Trovoada um livro já clássico, que tinha acabado de ler: “L’ Afrique Noire est mal partie”, de René Dumont. Não havia, é claro, a menor ironia nessa oferta. Trovoada, a quem, na anterior conversa, eu já cedera um exemplar do “Le Monde”, que trouxera de Paris, ficou encantado. Cruzámo-nos várias vezes, no futuro.

Chegado ao aeroporto de Libreville, “voei” para o depósito das bagagens. E lá estava a minha mala! Com os segundos contados para poder fazer o “check-in” para Paris, expliquei tudo, aceitaram os meus argumentos, deixaram-me trocar as malas e embarquei. Nunca pude confirmar se o nosso compatriota de Guimarães chegou a receber a sua vistosa colcha e os sapatos alteadores, com a “Tauro” gémea da minha. Em África, tudo pode acontecer: até nada!

(ps - dei a este texto o título de uma canção de Celeste Rodrigues, que por cá foi muito famosa, em longínquos tempos idos)

sexta-feira, julho 17, 2020

Uma excelente notícia!


Sexto livro para férias


O sol do Gabão


O aeroporto de Libreville, no Gabão, chamava-se (e chama-se) Léon Mba, nome do primeiro presidente do país. Desembarquei nele, ido de Paris, na madrugada de um dia do final de fevereiro de 1976. A ligação a S. Tomé, que era o meu destino imediato, só teria lugar a meio da tarde. A aerogare era de uma grande simplicidade, sem a menor comodidade, para o tempo que mediava entre os dois voos. Fui tomar o pequeno almoço, num arremedo de restaurante, e comecei a impacientar-me. Teria mesmo de aguentar por ali, cerca de 10 horas?

Era a minha primeira viagem a África. Era também a minha primeira missão oficial. Não era muito curial que um jovem “adido de embaixada”, ingressado há menos de meio ano na diplomacia, fosse encarregado de uma missão numa ex-colónia, recém-independente. Havia por lá uma embaixada, com dois diplomatas, mas o então Ministério da Cooperação (onde eu tinha sido destacado) decidira ser eu era a pessoa que devia ir mediar o conflito que se gerara entre as autoridades santomenses e os primeiros professores cooperantes portugueses, que haviam chegado ao país há escassas semanas. Um dissídio que a embaixada informara não conseguir resolver. A minha missão iria durar uma semana, porque só havia um voo semanal entre Libreville e S. Tomé, num tempo em que as viagens por Luanda, em clima de guerra, estavam suspensas.

Por essa época da minha vida, eu tinha a “mania” de que era um “expert” em viagens. Tinha atravessado à boleia, por duas vezes, durante semanas, vários países europeus, tinha a experiência de uma viagem de férias aos Estados Unidos, o que então não era muito vulgar para a gente da minha geração, tinha já feito bastantes deslocações aéreas ao estrangeiro. Achava, na minha auto-suficiência, que já tinha apanhado os “códigos” para todas as aventuras pelo mundo. Decidi, assim, “ir dar uma volta” a Libreville. Com os diabos! Não devia ser muito diferente de passear em Copenhague ou em Viena! 

Coloquei a minha mala num depósito do aeroporto (o que eu me iria arrepender desse gesto, porque, horas mais tarde, me devolveram uma mala errada, que levei comigo para S. Tomé...) e, com uma pasta negra de couro na mão, atulhada de documentos, depois de trocar francos franceses por francos CFA, aluguei um táxi e fui para a “baixa” de Libreville. 

O motorista ficou intrigado quando lhe pedi para me levar ao “centro” da cidade. “Quel Centre, Monsieur?”. Então ele não sabia onde era o centro? Disse-lhe para ir andando, que lhe diria depois onde parar. À medida que o casario se adensava, percebi que nada daquilo parecia ter um centro, como estava habituado nas cidades que conhecia. Quase todas as lojas que via estavam fechadas. Era, além disso, um domingo! 

A minha confiança, própria de um “maçarico” sem a menor experiência africana, era, no entanto, imensa. A certa altura, decidi mandar parar o carro, paguei ao homem e comecei a caminhar. A manhã ia avançando para o meio-dia, o sol começava a torrar e ali ia eu, de blazer e pasta preta, a passear por uma cidade meio deserta. 

Vou dizer algo politicamente incorreto, mas muito verdadeiro, para quem conhece África: em regra, um branco não se passeia, a pé, sem rumo, vestido à europeia, numa cidade africana. Os locais que comigo se cruzavam, ou quem passava de carro, todos olhavam para mim com uma evidente estupefação. Era uma imagem bizarra, agravada pelo imenso suor que me começava a invadir, sem que descortinasse lugares onde me abrigar ou tomar alguma coisa. 

A partir de uma certa altura, também eu comecei (já não era sem tempo!) a achar a minha aventura um tanto insólita. E a arrepender-me da “brilhante” ideia que tivera de “ir dar uma volta a pé“ por Libreville. De facto, estava a aprender, à minha custa, que nada ali era parecido com Amesterdão ou Zurique.

Perguntei onde podia apanhar um táxi. Faziam-me gestos vagos, apontando-me sítios distantes. Inquiri de algum hotel, onde tudo se tornaria mais fácil, mas as indicações eram no sentido de que estava a quilómetros de um desses oásis. Não sou de empanicar, mas tinha o bom-senso mínimo para começar a preocupar-me. Porém, sempre com um ar grave e decidido, para fingir que me sentia dono da situação, lá ia eu por avenidas poeirentas, em direção a sítio nenhum. E, claro, táxis nem vê-los! 

Até que, quase uma boa meia hora passada, comigo a derreter de calor, com uns “Ray ban” que já escorriam água, avistei um táxi na minha direção. A esperança rapidamente se diluiu: vinha cheio, a abarrotar. Arrisquei e fiz sinal para ele parar. E, para minha surpresa, ele parou. Perguntei onde havia táxis. Nem sei bem o que o motorista respondeu, só sei que, quando mencionei o aeroporto, os olhos se lhe arregalaram: “Pour l’aéroport, Monsieur? Ah! Mais ça c’est une bonne course!” Para grandes males, grandes remédios: disse que lhe pagava a “course” e que ainda lhe dava mais uns tantos francos CFA, se me levasse ao aeroporto.

Foi remédio santo! Os passageiros, uma mulher e uma criança incluídos, foram logo expulsos pelo motorista no táxi. Estavam compreensivelmente furibundos, lançavam-me olhares ameaçadores, ao serem afastados pela arrogância de um branco, que “comprara” o seu transporte. Fiquei orgulhoso? Não fiquei, mas o alívio que senti absolveu, até hoje, bem mais de quatro décadas passadas, o meu sentimento de culpa. 

Nesse dia, aprendi, em vários sentidos, o que a África pode significar de diferente. E que o tal “centro” de Libreville tinha, afinal, muito pouco a ver com as “baixas” que eu conhecia... na Europa e na América do Norte! Nos anos seguintes, visitei muitas cidades africanas, do Magreb à África do Sul, de Angola à contra-costa. E aprendi bem o que é a geografia social urbana dessas terras.

Lembrei-me ontem disto quando, sob um sol muito raro na sua inclemência, cometi a patetice, após o almoço, de arriscar fazer a pé uma caminhada, numa distância que ainda era longa, por uma Lisboa sem sombra de sombras. Por instantes, veio-me à memória aquele sol antigo do Gabão. Sem uma réstea de saudade, confesso.

quinta-feira, julho 16, 2020

António Franco

A lealdade para com os amigos e a elevada exigência para consigo mesmo estavam-lhe coladas à pele. Vivia, sem a menor dificuldade, esse comportamento extremo de rigor, mas sempre num tom nada macambúzio, com um eterno espírito de bonomia, de graça, de alegria de vida. 

Falámos pelo telefone, pela última vez, na passada semana, a minutos de ele partir para o hospital, de onde já não sairia. Estava a comer uma “bacalhauzada”. A mim, sem o menor jeito para estas cenas, saiu-me um qualquer dito tolo. A reação dele foi: “Que diabo de frase é essa?” Dias antes, num prenúncio, tinha-me dito que, sem remorsos, estava a ter a paga dos prazeres e da liberdade de que nunca se privara, ao longo da vida. 

Acabo de saber que morreu António Franco, um colega um pouco mais velho do que eu, a conselho de quem entrei para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e que, curiosamente, viria a substituir no seu último posto como embaixador. Conhecemo-nos na parada de Mafra e fomo-nos encontrando a partir daí pela vida, com imensa frequência e regularidade.

Fomos muito amigos. Se posso contar os meus amigos dos dedos de uma mão, o António, sem a menor dúvida, foi um deles. Por décadas, cultivámos imensas cumplicidades, de toda a natureza. Em todos os passos importantes da minha vida, consultei-o sempre antes, pela certeza do seu bom senso e do seu equilíbrio. 

Nos últimos anos, por motivos que para aqui agora não importam, não olhámos da mesma forma para algumas coisas e isso afastou-nos um pouco. Tive muita pena. Porém, nos últimos meses, voltámos a falar bastante. E isso fez-me muito bem.

A morte do António não foi uma surpresa, já era prenunciada por uma mensagem recebida da Ana, há escassas horas. Sinto-me muito triste com a partida do António.

Para a Ana e para os filhos do António, a quem ele se dedicava sem limites, deixo aqui um forte abraço e o nosso imenso pesar.

O concerto da Júlia

Foi assim, depois do almoço de hoje. A pianista, com menos de 10 anos, chama-se Júlia.