Deixei há muito de comprar a publicação que “The Economist” edita nesta altura do ano, com as suas previsões para os doze meses seguintes. Como a revista sempre nos habituou, os textos são magníficos, mas, se os guardarmos para ler no fim do ano a que respeitam, verificaremos que a qualidade da análise não resiste ao “teste do algodão” com a realidade que acabou por acontecer. A culpa não é da revista, é da vida, que tem sempre uma imaginação que supera qualquer antecipação dos factos.
Dizer que o mundo de hoje vive uma rápida mutação é uma
banalidade. Mas é também uma pura verdade. Períodos houve da nossa História
contemporânea em que “o tempo parou”, no que respeita a certos equilíbrios
geopolíticos fundamentais. Basta lembrar alguns anos da Guerra Fria, em que o
confronto Leste-Oeste “empatou”, pelo equilíbrio do terror, a possibilidade de
confrontos entre os principais atores. Os conflitos processavam-se assim nas
“zonas de confluência de poderes”, como Adriano Moreira as designava - guerras
como as da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão ou mesmo de Angola. Mas a confrontação
essencial entre as chamadas super-potências era evitada, porque se sabia
existencial.
Esses tempos mudaram. Correndo o risco da simplificação,
pode dizer-se que o mundo das últimas décadas nos trouxe quatro realidades
marcantes: o recuo no poder global de Moscovo, após a implosão da União
Soviética, a esforçada tentativa europeia de criar um novo modelo integrado que
desse músculo político ao poderio económico conjugado dos seus Estados, o
crescimento, “silencioso” mas poderoso, da China, nos plano económico, político
e militar e, como vetor mais estável. a permanência dos Estados Unidos como
indiscutível potência de referência à escala mundial.
Mas hoje já nem tudo passa por este quarteto de poderes de
Estado. Durante muito tempo falou-se do papel crescente das entidades
económicas multinacionais e do condicionamento, por essa via, da ação dos
Estados. As últimas décadas, além de terem assistido à emergência de várias
outras entidades não-estatais, como atores internacionais relevantes, consagraram
uma espécie de “internacionalismo” do poder financeiro, a que veio somar-se uma
nova e poderosa realidade: o mundo da tecnologia informática, que tudo veio
alterar, desde as relações de trabalho aos produtos informativos que hoje,
através da internet, romperam as fronteiras do conhecimento. Há a sensação de
que, nesse domínio, tudo se transforma muito rapidamente e, entre o deslumbre e
o receio, esse novo e incontrolado poder continua a aturdir as sociedades.
É nesse cenário de poderes globais que 2019 nos projeta.
Uma América estranha
Nele avulta, goste-se ou não, o papel dos Estados Unidos,
dirigidos por um presidente que, em dois anos, alterou, para alguns apenas circunstancialmente,
a matriz de afirmação do país. Embora os EUA tivessem sido os grandes
promotores da ordem multilateral surgida no final da Segunda Guerra mundial, a
verdade é que eles nunca deixaram de ser apoiantes apenas seletivos do papel
dessas mesmas instituições, considerando-se como que ungidos de uma
excecionalidade que decorria do modo como viam a sua responsabilidade num mundo
onde eles escolhiam o que entendiam como livre.
Esta é, em definitivo, uma América diferente, como Trump é
um presidente de novo e inesperado tipo. Com a sua autoridade debilitada por
eleições parlamentares intercalares, sob forte pressão judicial, Trump exercita
uma agenda intuitiva que alarma os seus parceiros, desconcerta os adversários
mas que, de momento, ainda não desiludiu quantos nele investiram a sua
esperança. O poder de Trump pode ter sido afetado, mas ele mantém-se “master”
do jogo, com grande capacidade para, no plano externo, condicionar a vontade
alheia, dado o peso da economia americana e o suporte de poder militar que pode
exibir. No passado, os presidentes dos EUA auto-limitavam-se frequentemente, em
nome de uma ordem internacional de valores que cuidavam em respeitar
formalmente, como modo de alimentar a sua autoridade moral. Trump não tem esses
pruridos, não se sente sequer condicionado no verbo pelo respeito pela verdade.
E assim vai continuar.
A obsessão americana, no plano externo, tem um nome:
República Popular da China. Democratas e republicanos convergem no receio de
Beijing poder vir a consagrar passos estratégicos que ameacem a “network” de
poderes que se habituaram a ser próximos de Washington, obtendo conquistas que
venham a ser irreversíveis. Privilegiando o diálogo entre potências, Trump
segue um roteiro errático de testes da vontade chinesa. Em 2019, ver-se-á o que
vai suceder à curta trégua comercial há semanas pactuada entre os dois Estados.
Estará o presidente americano disposto a uma bravata jingoísta face à China,
por exemplo tendo como pretexto as despudoradas ações de expansão dos chineses
no seu mar meridional? Ou dará prioridade à espetacularidade das decisões
comerciais, que colhem aplausos em setores do seu eleitorado, seduzidos pelos
efeitos de curto prazo?
O “amigo russo”?
Se a China é o “inimigo”, a Rússia é, para os EUA, apenas um
poder adverso. Com a recente decisão de recuar militarmente da Síria, numa
linha de “desengajamento” progressivo que já vem dos tempos de Obama, Trump
arrisca reforçar pontualmente Moscovo, que talvez ali veja como um “aliado”
objetivo na luta contra o islamismo radical. A estranha relação que mantém com
Putin, que se espera um dia venha a ser clarificada de vez, permite a este ir
testando as “linhas vermelhas” até onde pode provocar a vizinhança europeia e, paulatinamente,
reforçar o seu papel regional.
Vale a pena lembrar que nem no tempo da poderosa União
Soviética a Rússia dispôs de uma posição tão confortável no Médio Oriente, onde
agora venceu a difícil batalha para manter o ditador sírio no poder e é hoje o
principal aliado tático do solitário Irão. Importa deixar também claro que de
há muito que Moscovo tem conseguido manter um entendimento discreto com Israel.
No ano que entra há que estar atento ao modo como a Rússia se comportará
perante a inevitável subida de perfil da Turquia na região, que, depois do
agravamento de relações com a Arábia Saudita por virtude do caso do jornalista
assassinado, tornou mais remotas as hipóteses de qualquer entendimento no seio
do eixo sunita. Curiosamente, Moscovo e Ancara gerem os seus conflitos bilaterais
federados pelo interesse conjuntural que pode unir dois poderes autoritários e
amorais, revisionistas da ordem internacional, que procuram exploram as
vantagens colaterais da marginalização relativa que estão a sofrer.
Será que o vazio de poder, criado pela saída militar americana,
vai potenciar as tensões no Médio Oriente? Será que a Arábia Saudita, para
espantar os escândalos em seu torno, se sentirá tentada, com o apoio de Israel,
a afrontar o poder iraniano que definitivamente a assusta e que, por via
indireta, já combate no Iemen? E qual seria a posição da Rússia nessa hipótese?
A “nova” Europa
Muito ouviremos falar do Brexit em 2019. Este texto
desatualizar-se-ia, em poucas semanas, se Theresa May acabasse por conseguir
“vender” o (mau) acordo que fez com os “vinte e sete” - embora essa fosse a
melhor solução para a Europa, num terreno em que, aliás, nenhuma solução é boa.
Acho, no entanto, que o cenário de um Brexit duro, sem acordo, continua a ser o
mais plausível. E isso pode desencadear consequências que, estando relativamente
desenhadas, ficarão sempre além do que é possível prever, segundo todos os
especialistas.
O Brexit e os seus efeitos não deixarão de estar também presentes
na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Aí se irá sentar, a partir de
setembro, um número muito mais forte de anti-europeus. E essa será também a
linha da frente de defesa dos Estados da União que hoje seguem modelos de
autoritarismo e enveredam por práticas discriminatórias face aos estrangeiros,
dos migrantes económicos aos refugiados. Essa é a razão pela qual estas
eleições serão tão importantes.
No terreno do euro, veremos como a França e a Itália vão
conseguir ultrapassar a sua divergência face às metas que são exigidas aos
restantes. O ano também nos trará resposta à questão das hipóteses de
completamento da União Bancária, embora nada aponte, por ora, para que o
ambiente possa vir a modificar-se em favor dos modelos institucionais que
Merkel recusou, apoiada aliás numa frente nórdica para quem a palavra
solidariedade parece banida do léxico.
O ano vai ser muito complexo para a Europa, que, com a saída
do Reino Unido, a forte tensão com a Rússia, o desprezo americano e as ameaças
económicas chinesas, num cenário interno de alguma desunião (que só se quebrou
para a resposta unida a Londres), atravessa um momento de rara solidão
estratégica. E alguma angústia existencial.
... e agora a China!
É uma história fascinante, de determinação e ambição, o
processo de afirmação da China no quadro mundial, nas últimas décadas. Para trás
ficaram o seu “cisma” com a URSS, os conflitos com a Índia e o Vietnam, a
persistência nos casos do Tibete, de Taiwan, de Hong-Kong (e Macau) e do mar da
China. Fica a sensação de que vigora por ali um ritmo histórico próprio, onde
se combinam fortes tensões internas com a continuidade inabalada de um poder ditatoral
atípico. A “Belt and Road Initiative”, de que teremos novidades em 2019, e
sobre a qual os EUA mantêm um atitude de estranha discrição, vai ser um magnífico
teste à capacidade diplomática chinesa, até agora feita de iniciativas pontuais,
cuja sustentabilidade num quadro de ação mais alargado e coerente está por
confirmar. Parece evidente que, para concretizar aquela ambição (e a persistência chinesa não aponta para um cenário do recuo), a China vai ter de alterar substancialmente
o seu perfil de ação externa.
Por ora, Beijing vai ter de procurar atenuar o sério
problema comercial que tem com os Estados Unidos. As cartas não estão apenas de
um lado, a América tem muitos trunfos e Trump conta também com algum susto que
o peso da China provoca, desde a sua vizinhança a uma Europa que sente já o seu
desafio económico. Se há país a que, não obstante a constância dos seus
interesses identificados, se torna difícil antecipar as “jogadas”, esse país é
a China. É que, se tivermos em conta os fortes investimentos militares que os
chineses estão a levar a cabo, em especial no setor naval (a China importa
energia e comercia pelos mares, cuja liberdade lhes é essencial), fácil é inferir
que nenhuma opção está excluída para a defesa dos seus interesses. Em 2019,
salvo surpresas, vai continuar a ser interessante acompanhar a coreografia da
relação da China com os EUA.
A menos que Trump, para se defender internamente, procure
uma improvável “aventura” externa (Venezuela?) que ele acha que o reconciliaria
um pouco com o mundo, que Putin decida “explorar o sucesso” numa aventura suas
cercanias, contando que os EUA estão longe e que as baterias da Europa só
disparam palavras, que a China não rompa com um ato de violência a sua tensão
fria com a vizinhança, provocando Washington, que a Arábia Saudita meça mal o
incêndio que um desafio ao Irão poderia significar, quase se podia dizer que
2019 poderia ser um ano relativamente calmo. Mas aprendi que já não há anos
calmos.