segunda-feira, julho 31, 2017

Baez e o Chile


Há pouco, na madrugada televisiva, a repetição do espetáculo dos 75 anos de Joan Baez levou-me subitamente de volta a Oslo, há quase 40 anos, onde a ouvi uma noite cantar ao vivo. 

Nunca fui um fã incondicional da música de Baez, mas, naquele tempo, na cidade bastante provinciana que era a capital norueguesa, a visita de alguns nomes internacionais era um escape cosmopolita que procurava não perder, não obstante o meu parco salário, para os elevados preços locais. 

No caso da cantora americana, eu também juntava por ali muita da memória afetiva da agitação da juventude americana anti-Vietnam com a pertença a uma geração que por cá fizera abril e que então atravessava as interrogações de quem saía de uma experiência de tempos esquerdistas para uma democracia "burguesa". 

E, assim, ao ouvir a Baez cantar o "Gracias a la vida", de Violeta Parra, surgiu-me inevitavelmente o Chile no encadeado da memória.

Um dia, nessa Noruega, numa apresentação da argentina Mercedes Sosa, conhecemos um casal de refugiados chilenos que o país acolhera, depois da tragédia de 1973. Tempos mais tarde, num grupo em que eles estavam, fui ouvir Joan Baez e, depois, Donovan. Acabávamos essas noites, invariavelmente, a comer umas coisas vagamente sul-americanas numa cave esconsa, onde um cantor espanhol se passeava entre as mesas e, quando nos reconhecia, cantava uma música com o estribilho "Ay Portugal! Por qué te quiero tanto?"


Que será feito desses e de outros amigos chilenos? Terão ficado na fria Noruega, que os acolheu na tragédia? Terão regressado ao Chile democrático? Que aconteceu ao Fermin, irmão da mítica "Payita", secretária de Salvador Allende, um homem agitado e cordial, que habitava um modesto apartamento de Oslo e que, generosamente, nos convidava, em alguns domingos, para partilhar garrafas de "Casillero del Diablo" (a que juntávamos "Dão - Porta de Cavaleiros", o vinho português que o "Vinmonopolet" vendia), que lhe atenuava as saudades do Chile, entre resmas de propaganda do MIR? Trabalhava numa fábrica de discos e, graças a ele, tenho uma invejável colecção dos "Rolling Stones", em vinil de 33 rotações. E chorava, ao ouvir Violeta Parra, Victor Jara e até Zeca Afonso...

domingo, julho 30, 2017

Marcelo, hoje

Marcelo Rebelo de Sousa é hoje entrevistado pelo DN.

Fazer uma exegese do texto é uma tentação natural: é sempre curioso interpretar Marcelo à luz do que vai dizendo, porque isso faz obviamente parte do "auto-retrato" que ele quer fixar de si próprio.

Com a sua experiência de constitucionalista, Marcelo está a desenhar, muito em função da conjuntura que lhe aconteceu, o esquiço daquilo que pretende vir a protagonizar, como modelo para o exercício do cargo presidencial. Porque também é professor, tende a teorizar bastante essa sua interpretação, procurando que ela componha um todo coerente que seja facilmente percetível pelo país. Ou, pelo menos, por quem faz a opinião no país.

Nota-se nesta entrevista uma específica preocupação (um tanto excessiva?) em fazer perceber o seu comportamento à família política de onde é originário, por forma a não deixar que a sua imagem no seu seio fique conquistada pelo rótulo de "traidor" que, de forma mais ou menos explícita, exsuda de algumas "opiniões" do "Observador" ou da bílis nas redes sociais. Isso é muito evidente no modo como aborda questões como os incêndios ou o roubo do material militar.

Em alguns temas, o presidente é mais "redondo", prudente, como é bem evidente na política externa. Noutras áreas, refugia-se no futuro, no resultado de apuramentos ou avaliações que vierem a ser feitos. Faz bem, porque isso o reforça institucionalmente e o liberta da pulsão interior que deverá ter para agir como o "professor Marcelo" dominical nas televisões.

Com tudo isto, Marcelo está a transformar-se. De certo modo, começa a atar as mãos a si próprio. A personagem institucional que está a construir, e que notoriamente quer fixar na História, é cada vez menos compatível com a figura irrequieta, com laivos de volúvel, que marcou muita da sua imagem ao longo de décadas. A confirmar-se esta evolução, isso é uma excelente notícia: perdemos um comentador genial mas o país pode vir a ganhar um estadista.

sábado, julho 29, 2017

Oportunidade perdida

O "Expresso" perdeu hoje uma excelente oportunidade para dar testemunho de que o jornalismo de verdade continua a morar naquela casa: ter-lhe-ia ficado bem retratar-se e pedir desculpa, perante os seus leitores, pela manchete com que desvirtuou, na passada semana, a sua notícia sobre os mortos de Pedrógão. Ao não fazê-lo, ficou atestada a arrogância e o desrespeito perante quem o lê por parte de um jornal que, em tempos idos, aos sábados, nos trazia notícias em que acreditávamos - apenas porque vinham no "Expresso".

sexta-feira, julho 28, 2017

Brincar com o fogo


A polémica em torno dos ciganos de Loures e o debate a propósito dos incêndios fez emergir um país político estranho. Pode parecer menos evidente a associação dos dois temas, mas têm algo de comum. 

Todos sabemos existir um problema antigo com a integração da comunidade cigana em Portugal. O assunto sempre foi tratado com “pinças”, ao longo dos anos, pela consciência de que envolvia um número de pessoas bastante limitado, de que se tratava de uma cultura maioritariamente ligada a setores sociais desfavorecidos e de que os mecanismos do Estado, embora com uma eficácia aquém do desejável, pareciam ir lidando com o problema de forma paulatina. Era consensual que conferir uma excessiva relevância ao tema, em especial trazendo-o para a arena política, poderia desencadear fáceis pulsões populistas, com impactos que extravasariam a sua própria circunstância. Tal como aconteceu. 

O modo como um candidato autárquico, sedento de protagonismo e sem visíveis escrúpulos, explorou o caso, na certeza de poder recolher prosélitos votantes por seu intermédio, não espantou, porquanto a irresponsabilidade é apanágio dos oportunistas e dos demagogos. O que surpreendeu neste processo foi o facto do partido que recrutou o candidato não o ter “enquadrado” de imediato após o incidente, retirando-lhe a indigitação ou obrigando-o a uma retratação completa.

O PSD não é um partido qualquer na sociedade portuguesa. É um dos eixos centrais do regime e, com o PS, integra um compromisso implícito de gerar condições de governabilidade para o país, muito para além dos ciclos em que ocupa o poder central. Porquê? Porque é também um grande partido autárquico, que ocupa em permanência uma fatia de poder local da maior importância. O PSD tem fortes responsabilidades políticas e uma história de luta pelo sistema democrático, no âmbito do pacto em que se baseia o modelo constitucional, para defesa da ética cívica em que assenta o próprio regime. Quando, há uns anos, vimos um seu líder sacrificar um candidato autárquico, antecipadamente vitorioso, por suspeitas de envolvimento em desqualificantes delitos, o país decente não deixou de ter um sentimento de admiração pelo caráter nobre do gesto então praticado.

A luta contra a discriminação e a exclusão social é uma das matrizes do nosso regime. A criação de um “firewall” ao discurso social estigmatizante e às pulsões populistas, racistas ou xenófobas, integra um compromisso implícito que tem federado as forças com representação parlamentar. Foram mais de quatro décadas de entendimento, com vista a gerar um clima de decência cívica. Por isso, devo dizer que, como cidadão, me choca assistir a esta deriva estranha que, nos dias de hoje, atravessa o PSD, que sei também preocupar muitos dos seus simpatizantes, que se não sentem confortáveis com este tipo de opções.

E, de Loures, chegámos aos fogos. Começo pelo mais simples. Estou longe de considerar exemplar a atuação do governo neste contexto. Há coisas que falharam e continuam a falhar e muito mais tem de ser feito. O Estado tem de projetar confiança, os cidadãos têm de ter a certeza de que estão em boas mãos. 

Mas um tema desta gravidade justifica alguma “gravitas” no seu tratamento. Na sequência do incêndio de Pedrógão, o líder do PSD começou por ter uma atitude de Estado, dando prioridade ao combate à catástrofe e propondo, com racionalidade, uma comissão independente para avaliar serenamente o assunto. Mas essa serenidade durou muito pouco: logo surgiram uns “suicidas” que afinal não existiram e, nos últimos dias, o partido desembestou numa campanha sobre o “mistério” do número de mortos, colando-se às mais fantasiosas hipóteses, como se acaso acreditasse que havia algum misterioso interesse da parte do governo em esconder a existência mais uma ou duas vítimas, como se isso alterasse significativamente a esmagadora dimensão da tragédia. Por isso, como português, lamento sinceramente ver um partido central da nossa democracia a brincar com o fogo.

Já faltou mais...


A América e nós


Um dia, em perspetiva, vai ser possível olharmos com alguma calma para o furacão que nos dias de hoje atravessa a América política, por virtude das consequências da eleição de Donald Trump. Espero que, evitada que tenha sido alguma tragédia, possamos divertir-nos com as histórias, então já conhecidas, dos bastidores dessa peça política que esteve em cena em Washington. Por ora, limitamo-nos a abrir as televisões ou os jornais com a garantia de um permanente “happening”, uma sucessão endémica de eventos que, por virtude do comportamento errático do homem mais poderoso do mundo, abalam as instituições do seu país, com efeitos colaterais nos restantes. E não sabemos onde e como parará.

É uma evidência que uma imensa perturbação afeta a América, pela existência deste inusitado presidente. A queda abissal da sua popularidade não é casual. Mas há algo importante que convém não esquecer. Os EUA podem estar internamente aturdidos com Trump, mas não vivem minimamente preocupados com a imagem que o seu presidente projeta no exterior, nos aliados ou no próprio imaginário popular à escala internacional. A América vive, essencialmente, para si própria e, podendo Trump ser um problema para o mundo, é apenas no quadro de um eventual embaraço que ele possa constituir para os americanos que o fenómeno pode ter alguma evolução. O “America first” não é um mote exclusivo de Trump, é uma expressão sentida como uma uma obviedade por todos os seus compatriotas.

Por isso, o modo como a Europa olha Trump, tal como os humores sobre ele dos líderes mundiais, é coisa completamente indiferente ao cidadão do Ohio ou da Califórnia, que apenas quer saber se a sua vida vai piorar ou melhorar por virtude das políticas do governo federal. Por isso, desiluda-se quem pense que o mundo tem alguma palavra a dizer no futuro da novela presidencial em curso.

Mas, pelo contrário, Trump tornou-se relevante para nós. Durante meses, entretivemo-nos a especular por que é que ele conseguiu ser eleito. Aprendemos alguma coisa com isso e olhámos com uma atenção mais especiosa para o Brexit, para o extremismo holandês ou francês, nas eleições seguintes, já à luz desse fenómeno. Trump ensinou-nos igualmente que o populismo pode manipular a verdade e sobreviver à sua margem, sem consequências de escândalo. Soubemos com ele que já ganhou foros de alguma legitimidade aquilo que põe em causa alguns referenciais de decência pública e da ética de relacionamento social. Também acordámos para o fim dos “adquiridos” do progresso global, como as questões ambientais ou o respeito pelas minorias ou culturas fora do “mainstream”. O racismo do proto-autarca de Loures é, no fundo, apenas uma forma saloia de trumpismo. Desprezível mas não desprezável para o ambiente político do nosso país.

quinta-feira, julho 27, 2017

A Gôndola

No dia 6 de agosto, Lisboa perde a Gôndola, levada pela gadanha inexorável do imobiliário. Tenho pena? Tenho, claro, embora abram hoje em Lisboa, a cada dia, espaços magníficos que, salvo a inevitável nostalgia, compensam bem a perda deste restaurante.

A Gôndola era um espaço sazonal, a que só se aportava no bom tempo. Não passava pela cabeça de nenhum fabiano ir por lá no inverno. (Por ali perto, mais depressa se ia ao Polícia, ao Oh! Lacerda ou mesmo à Tia Matilde, noutros tempos à Sereia, mais recentemente ao Castro Elias).

Mas um almoço, no jardim da Gôndola, num dia glorioso de sol de primavera ou outono, podia ser uma experiência extraordinariamente agradável (similar ao belíssimo terraço, meu vizinho, da York House). Já em pleno verão, a caloraça, às vezes, podia ser imensa.

A minha memória não é o que foi, mas, pelas minhas contas, sei lá bem porquê, só me recordo de ter convidado amigas mulheres para ali almoçar comigo. Mas com muita mais gente por lá partilhei bastantes refeições, às vezes de trabalho, porque tinha uma boa distância entre as mesas para se poder conversar à vontade.

Agora que o restaurante está prestes a fechar, vou confessar um segredo: não me recordo de nenhuma refeição gastronomicamente memorável na Gôndola. Era uma comida simpática, recentemente com umas entradas mais ambiciosas, mas pouco mais do que isso. Mas agradava-me muito tomar um gin tónico na salinha de entrada e mantive sempre um particular carinho por aquele hábito antigo das criadas usarem avental branco, numa coreografia de sala idêntica à da Quinta, que existiu junto ao alto do elevador de Santa Justa.

Observemos, pois

Pode presumir-se como o projeto nasceu. A ideia terá sido criar um veículo comunicacional que, chegando às novas gerações através das plataformas que estas já privilegiavam, pudesse garantir a crescente passagem de uma mensagem conservadora, de aberto combate político à esquerda, num perfil economicamente liberal, que desse corpo, de uma forma bem profissional, àquilo que tinha sido um movimento de elite económico-"beata", complementado por nichos universitários dessa orientação, alguns blogues e até uma efémera revista intelectual atlantista ao estilo Reagan, do género marginal-chic, com toques nacionalistas, ideologicamente algo "retro". Tratava-se de federar uma nova direita "business-oriented", jovens saídos das universidades já formatados pelo "template" liberal, numa espécie de um novo 'Independente" no ecran, um pouco mais rigoroso e apresentável, mas que se pretendia não menos vigoroso. A área PSD/CDS era, "by default", o terreno político natural de assentamento do projeto e esse "casal" regenerador, eufórico aliado da "troika" que garantia a salvífica "suspensão" da democracia, era o seu aliado óbvio. Tornava-se importante que o veículo pudesse ter uma imagem bem apelativa e um discurso contemporâneo e ágil, o que implicava a constituição de uma redação jovem (e isso teve um preço, em erros frequentes, pela falta de experiência ou controlo, sempre difícil num modelo "24-sur-24"). Mas produto global, sejamos justos, não desiludiu. Na secção da Opinião, salvo alguns convidados "alien" que funcionaram como alibi de alguma diversidade nas espécies, o jornal rompia deliberadamente com a regra do pluralismo, pelo que "team" residente era da direita pura e dura, misto de figuras cáusticas e tremendistas, esforçados "genéricos" do Eça, e de alguns especialistas temáticos credibilizadores. O modelo do "El Confidencial" espanhol, mas menos concentrado na economia e sem a neutralidade informativa deste, terá estado sempre presente. O produto foi assim inovador, apelativo e, à época, uma coisa bem diferente surgiu entre nós. (Eu nunca o dispensei, desde o primeiro dia). Sempre houve por lá excelentes profissionais, alguns que, talvez sem o saberem, deixaram já há muito de ser jornalistas e que optaram por tomar aberto partido, outros que foram convertidos à comodidade do comentário grave e vedetizante. Olhando de fora, os entusiasmados promotores iniciais - de uma geração que hoje já começa a aproximar-se dos 60 - revelaram-se dispostos a investir na ideia algum dinheiro próprio, angariando publicidade junto do seu valioso "network" e de algumas empresas a que estavam ligados. Mas nem tudo correu bem neste domínio e nem o truque dos "clickbaits" serviu de engodo. Não sei para quando se estava a prever o "breakeven" (equilibrio financeiro), mas a aposta, em grande parte, sabe-se agora que falhou. As perdas não são imensas, mas tudo indica que, a prazo não muito longo, "vem aí comprador!". É que alguns desses investidores dão sinais de preocupação, parece haver cada vez mais recados para dentro do jornal, há opções editoriais e de modelo que se sabe serem abertamente contestadas. É mesmo capaz de gerar-se uma tensão entre quem pensa que o título se deve manter como principal barreira mediática de fogo contra a Geringonça, apostando no seu fim, por motivo exterior ou por implosão, continuando a fazer de ventríloquo de uma oposição que objetivamente está pelas portas da amargura, e outra correntr, mais pragmática, quiçá avessa a quixotescos "moinhos de vento" da luta partidária, que se mostra preparada para neutralizar um pouco o projeto, como saída possível para o problema existente. Em breve (aposto!) iremos ver como tudo isto acaba. (Estará este retrato certo? Até pode não estar! Mas isto que por aqui faço não pretende ser jornalismo, é só uma mera opinião pessoal, assumidamente "biased". Essa deveria, aliás, ser a nossa diferença.)

quarta-feira, julho 26, 2017

Política progressista

Ascenso Simões está longe de ser uma figura consensual. E acho que ele cuida, com divertido zelo, em não sê-lo, inserindo-se frequentemente em algumas polémicas, com palavras sonantes e uma vontade própria afirmada. 

Bastante mais novo do que eu, partilhámos uma aventura autárquica, em Vila Real, nos anos 90, que, no meu caso, só não foi mais divertida porque eu tinha então uma vida internacional infernal, que não me permitiu dedicar ao desafio local o tempo que seria desejável.

Em "Opções inadiáveis para uma política progressista", um livro que acaba de publicar, Ascenso Simões apresenta reflexões em várias temáticas e políticas públicas. É uma ousadia de quem tem uma vida dedicada à política - oferecer opiniões sobre diversas áreas da governação. (Gabo-lhe o esforço: nunca tive a mais leve inclinação para mundividências).

A esquerda, por essa Europa fora, está hoje mergulhada num dilema. Perante uma direita que conseguiu infetar ideologicamente as instituições europeias, ela vive entre uma mimetização "modernaça" e oportunista da matriz conservadora e a tentação da rutura radical com o modelo dominante, a qual, no entanto, para ter sucesso, implicaria colocar em causa certos pressupostos político-institucionais que fazem parte do pacto de regime vigente - entre outros problemas que não vêm agora ao caso.

No prefácio ao livro, Pedro Adão e Silva considera Ascenso Simões um "socialista singular, de inclinação aparentemente conservadora nos costumes e sócio-liberal da economia, mas com um compromisso inabalável com a ética republicana". Revejo-me exclusivamente neste último item, mas as minhas discordâncias com Ascenso Simões não me impedem de apreciar este seu meritório esforço de pensar o país como um todo, num tempo em que a "espuma dos dias" parece raptar, de forma inexorável, o debate político.

terça-feira, julho 25, 2017

Glória ou punição

Uma empresária portuguesa decidiu, por sua conta e risco, consultando fontes várias, e por desconfiar das versões oficiais, fazer uma contabilidade própria dos mortos do incêndio de Pedrógão. 

Até aqui, tudo bem. Nesse seu esforço, a senhora chegou à conclusão de que há bastantes mais mortos do que aqueles que as autoridades apresentaram. E um jornal divulgou as suas conclusões. Devastadoras, para os números divulgados pelas entidades forenses. 

Restam assim duas hipóteses.

Conclui-se que a senhora tem razão, que as autoridades nos iludiram e devem ser crucificadas publicamente por esse seu ludíbrio, com consequências, políticas e outras. Atento o papel notável representado pela senhora, deixo desde já aqui um apelo para que o chefe do Estado lhe imponha uma condecoração, como agradecimento do país por esta meritória contribuição cívica. Devemos concluir que se trata de uma heroína da transparência democrática.

A segunda hipótese é a senhora não ter razão. Se se verificar que os dados que apresentou são objetivamente falsos, que as acusações que fez ao Estado foram infundadas, que o dolo que imputou às autoridades, afetando o seu prestígio e credibilidade, era uma falsa imputação e que a transmissão do assunto à imprensa foi um ato de irresponsabilidade, então, nesse caso, a senhora deve ser levada à Justiça, para ser devidamente punida.

Não há uma terceira via. As coisas, neste domínio, nunca foram tão simples: glória ou punição.

segunda-feira, julho 24, 2017

Os mortos de Pedrógão


As autoridades governamentais informaram, há semanas, que tinha havido 64 mortos no incêndio de Pedrógão. É evidente que, se, em lugar de 64 mortos, tivessem dito 74 ou 84, a dimensão da tragédia, sendo tão brutal como foi, não se alteraria substancialmente no imaginário público.

Agora, surge quem diga, com eco de escândalo em alguma imprensa, que, afinal, não são 64 mortos, que podem ser mais. O governo, ao que parece, não confirma um número diferente daquele que anunciou. Mas, eventualmente, em tese, até poderá haver mais mortos, não contabilizados. E é importante esclarecer se isso é verdade ou não.

A questão que eu coloco - mas só a quem quer ver este assunto com um mínimo de seriedade, aos outros dispenso a resposta - é a seguinte: que interesse poderiam ter as autoridades governamentais em esconder a existência de mais mortos no incêndio em Pedrógão? Isso alteraria a real importância da tragédia?

Uma nota final para a questão da lista dos mortos identificados estar "em segredo de justiça". Também é culpa do governo que as autoridades judiciais não divulguem essa lista?

Parece que há abutres políticos que voam sobre a tragédia de Pedrógão, alimentando-se de demagogia e má-fé.

"No-go areas"


Lisboa, como todas (repito, todas) as cidades do mundo, tem as suas áreas complicadas. São bairros onde, dependendo das horas do dia, é mais ou menos arriscado passar a pé ou deixar um carro. Praticamente, não há cidades que as não tenham.

Com os anos e com as viagens, julgo ter aprendido algumas regras comportamentais neste domínio, mas não excluo que, um dia destes, erre e possa ser vítima de um juízo menos prudente.

Hoje, fui almoçar a uma "no go area" (como dizem os anglo-saxínicos) da periferia de Lisboa. Um bairro "problemático", como dizem os políticos. Encontrei um lugar para estacionar e, hesitante, perguntei a alguém que passava o caminho mais curto para o restaurante, que sabia ser perto.

"Fez bem em estacionar ali. Em princípio, não vai ter problemas", disse o homem, dando depois as indicações. Instintivamente, olhei para as placas de trânsito, para ver se era alguma zona interdita, exceto a moradores. Nada, não havia placas. Foi então que "caí na real", como se diz no Brasil. O que o simpático "popular" (como na fala das estagiárias, nas entrevistas nos incêndios) queria dizer-me é que, na sua avaliação circunstancial, havia uma boa probabilidade do meu carro não ser assaltado ou desaparecer, enquanto eu almoçasse. E não foi.

Lisboa, o Tejo e tudo


domingo, julho 23, 2017

Regresso ao passado


Há uns dias, publiquei aqui um episódio pessoal, que intitulei de "O sprint", na qual falava da visita de uns amigos dos meus pais a nossa casa, acompanhados de uma filha, quando eu era adolescente. Nunca mais vi essas pessoas, desde então. Foi em 1962! Essa filha viria a casar, como então referi, com o vencedor da Volta a Portugal em bicicleta, cuja naturalidade indiquei, embora sem dizer o seu nome.

Ontem, escreveu-me o filho dessa senhora, cujo marido já morreu, dizendo ter mostrado o meu texto à sua mãe. Fiquei imensamente satisfeito! Este mundo da internet também proporciona inesperados mas felizes "encontros".

sábado, julho 22, 2017

Loures e os ciganos da Europa

Em 1999, o então governador civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, foi objeto de fortes ataques, por virtude de ter tomado a defesa de ciganos, que estavam a ser vítimas de discriminação numa localidade daquele distrito. O governador não pretendia que, àqueles ciganos, fossem reconhecidos nenhuns direitos especiais; apenas se insurgiu contra comportamentos, racistas e discriminatórios, que os estigmatizavam, sob o silêncio cúmplice de algumas autoridades e a cobardia da maioria das forças políticas. Bacelar de Vasconcelos, que era e é um homem de bem, ouviu então "das boas" por parte do PS de Braga, que era sensível aos ventos populistas que sopravam contra os ciganos.

No ano seguinte, foi criado o Observatório Europeu do Racismo, Xenofobia e Anti-Semitismo, em Viena. Coube-me a mim, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, indicar o nome português para o conselho de administração desse Observatório. E, naturalmente, convidei Pedro Bacelar de Vasconcelos. A minha decisão não foi muito popular no seio do PS, tendo chegado a receber algumas chamadas telefónicas a tentar que "reconsiderasse" a minha escolha. Escolha que, naturalmente, mantive e se mostrou acertada, porquanto Bacelar de Vasconcelos fez um excelente trabalho, como mais tarde o faria como nosso representante na comissão que estabeleceu a Carta dos Direitos Fundamentais da UE!

Porque Portugal havia ganho "esporas" neste domínio, em 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia, tive a ideia de organizar em Lisboa, em conjugação com o comissário para o alargamento da UE, Gunther Verheugen, um seminário sobre a condição das populações ciganas, nos países que se preparavam para entrar para a Europa comunitário. Na antiga FIL de Lisboa, reunimos algumas centenas de pessoas, representando associações das populações "roma", com a presença de especialistas europeus credenciados, que desenharam um conjunto de propostas, parte das quais acabou por ficar plasmada nos documentos de adesão. Portugal foi vivamente saudado, em vários países europeus, por esta sua inédita iniciativa.

Espero que Loures não venha agora inaugurar um capítulo vergonhoso na imagem do nosso país neste domínio.

sexta-feira, julho 21, 2017

Marco Aurélio Garcia



Poucas semanas após a minha chegada ao Brasil como embaixador, fiz uma visita ao meu colega dos Estados Unidos. Em qualquer parte do mundo, os representantes de Washington são sempre das mais relevantes figuras no corpo diplomático local, atenta a importância do seu país.

O meu colega americano era um homem cordial e franco. Estava a pouco tempo de sair do posto, pelo que se sentia talvez mais à vontade para dizer o que lhe ia na alma. A propósito da vida política brasileira, deu-me uma definição curiosa sobre o modo como via a dicotomia entre o ambiente social e empresarial de S. Paulo e o microcosmos do poder em Brasília, à época (estávamos em 2005) dominado pelo PT de Lula, em aliança com o PMDB de Sarney. Para ele, com ironia, havia dois "mundos" no Brasil: o "Free State of S. Paulo" e a "People's Republic of Brasilia"...

Meses depois, os papéis inverteram-se. Um novo embaixador americano veio ver-me e, profissional à sua maneira, trazia consigo uma espécie de "check-list" de assuntos sobre os quais pretendia obter a opinião do seu colega português - os embaixadores portugueses na capital brasileira, podendo não ser os mais poderosos, são quase sempre dos melhor informados e a sua opinião conta imenso junto dos seus colegas. E até os americanos sabem isso...

Uma das curiosidades do meu novo colega era tentar perceber "quem era quem" na decisão, em matéria de política externa, no poder brasileiro. Em particular, confundia-o o papel relativo do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o do Assessor Internacional do presidente, Marco Aurélio Garcia.

(Nada que devesse ser estranho a quem vinha da Washington: a história da política externa americana também é feita da regular tensão entre o ministro - "Secretary of State" - o assessor da Casa Branca - o "National Security Adviser".)

Disse-lhe o que entendi que lhe poderia dizer. Expliquei que se tratava de um processo dinâmico, que havia começado por alguma dualidade entre as duas personalidades, com algum potencial de conflito, até rapidamente se chegar a um ponto em que Amorim havia garantido, com alguma habilidade tática, o pleno controlo da máquina externa, com Garcia confinado a dossiês mais pontuais, em especial ligados à área sul-americana, onde o seu conhecimento e contactos eram bastante substanciais.

Se Marco Aurélio Garcia alguma vez teve intenções de ser um poder sombra junto do Itamaraty (as "Necessidades" brasileiras), e há sinais de que isso pode ter acontecido nos primeiros tempos do primeiro mandato de Lula, a eficácia funcional de Celso Amorim rapidamente se impôs, tendo isso ficado bastante evidente quando o seu papel interventivo se tornou imprescindível, na ocorrência de algumas crises com países vizinhos do Brasil, que Garcia foi incapaz de evitar. Uma delas, seria com a Bolívia de Evo Morales.

Um dia, num almoço a dois no jardim da nossa embaixada em Brasília, Marco Aurélio Garcia contou-me a conversa "surreal" que havia tido, em La Paz, com o recém-nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros daquele país. Descreveu-mo como uma figura estranha, com um mantra "filosófico", de quem "tinha os pés bem assentes no ar", num discurso bizarro, errático e metafórico, quase incompreensível. Marco Aurélio comentava, no meio de gargalhadas: "Você conhece-me, Francisco! Imagina que, quando quero, sou capaz de rivalizar em efabulações e imagens ligadas ao universo onírico, mas o homem batia-nos a todos! Saí de lá sem perceber nada e com medo de me ter enganado naquilo em que julguei tê-lo percebido..."

Marco Aurélio Garcia morreu ontem, aos 76 anos. Era professor universitário, uma figura intelectual muito interessante. Depois de sair do Brasil, só o voltei a encontrar num almoço em Paris, aquando de uma conferência. Mantinhamos uma excelente relação pessoal, muito embora Portugal (e a Europa) estivesse longe das suas preocupações - e, infelizmente, também da sua afetividade.

Com o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e o então ministro Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia constituiu a "troika" informal que desenhou a política externa de Lula. A qual, a meu ver, teve um apreciável êxito e prestigiou imenso o Brasil, opinião que sei que não é partilhada por muitos amigos, nomeadamente no serviço diplomático brasileiro, alguns dos quais têm essas três figuras no seu rol de "inimigos de estimação".

Dilemas


Há uns anos, quando era embaixador em Paris, fui convidado a estar presente num determinado evento que reunia portugueses emigrados em diversos países do mundo.

Fui falando com vários, inquirindo do modo como as nossas comunidades se integravam nessas sociedades, quais os seus principais problemas e, muito em especial, procurando recolher opiniões sobre o tipo de políticas públicas, por parte de Portugal, que entendiam por mais adequadas à promoção dos seus interesses. Tinha curiosidade em saber como avaliavam a qualidade da nossa rede consular, num tempo em que as mudanças na natureza da diáspora e a presença da União Europeia na área da proteção consular iriam necessariamente alterar alguns do parâmetros tradicionais da nossa ação externa.

Uma dessas conversas, recordo-o bem, tive-a com uma senhora que vivia na Venezuela. Era o tempo de Hugo Chávez e era evidente, não sendo isso minimamente uma surpresa, que o líder venezuelano estava longe de gozar da simpatia maioritária da nossa comunidade, "to say the least"...

Ao tempo, as coisas estavam ainda muito longe daquilo a que o sucessor de Chávez iria condenar o país. Porém, a desafetação da minha interlocutora face ao então presidente venezuelano era mais do que evidente - e isso era bem compreensível, dado que a comunidade portuguesa se sentia um elo fraco naquela sociedade, alvo de ataques aos seus interesses económicos, numa instabilidade que lhe causava angústias quanto ao futuro.

A certo ponto da conversa, a senhora disse-me: "Não compreendo como é que Portugal (era tempo do governo Sócrates) tem tão boas relações com aquele homem!" E falou-me, com alguma acrimónia, de Mário Soares e do aproveitamento político-mediático que o regime tinha retirado de declarações, simpáticas para Chávez, que o antigo presidente proferira na ocasião de uma visita que fizera à Venezuela.

Eu podia entender, com facilidade, aquela reação: a senhora detestava o mundo "bolivariano" que ia conduzindo a Venezuela ao desastre e mostrava-se chocada com os sorrisos regulares que Caracas trocava com Lisboa. Esse era também, recorde-se, um tempo em que algumas empresas portuguesas procuravam aproveitar o mercado venezuelano, visto como seguro pela garantias que o petróleo parecia conceder.

Não contrariei a senhora, mas perguntei-lhe, a título de teste: "O que é que acharia se o governo português denunciasse as violações dos direitos humanos e os atentados à democracia que são tão evidentes na Venezuela? Como sabe, há muitos países que estão a ir por esse caminho.”

"Pela sua rica saúde! Nem é bom falar nisso!" respondeu-me a senhora. "Não gosto nada de ver o Sócrates com o Chávez juntos, mas, enquanto eles se entenderem bem, pelo menos isso pode evitar que ele ataque a nossa comunidade..."

Lembrei-me agora disto, sei lá bem porquê.

quinta-feira, julho 20, 2017

Asta Rose



No passado fim de semana, ao folhear em casa de amigos uma deliciosa coleção da "Vida Mundial", descortinei esta fotografia, de 1942 (no fim do post, coloco outra, bem mais recente). Lá está Tomaz Alcaide, o grande cantor lírico português, e, a seu lado, uma senhora, com um "look" e uma elegância bem desses anos. Era Asta Rose.

Conheci Asta Rose em Brasília, em 2005. Era uma senhora idosa, muito popular nos meios culturais da sociedade brasiliense, sempre uma presença ativa a impulsionar iniciativas, em especial na área da música. Portugal estava-lhe no coração, cultivando por essa via a memória do marido com quem foi casada 25 anos, 20 dos quais vivendo em Portugal, país a que se sentia afetivamente ligada.

Nascida em Santa Catarina, Asta Rose havia sido bailarina e era uma melómana de primeira água. A Brasília cultural, em especial a ópera e a música erudita, deve-lhe imenso. A sua figura de extrema elegância, com uma inconfundível cabeleira e sempre de lenço à banda no pescoço, era um ícone da cidade, de que era cidadã honorária.

Lembro-me bem da última frase que nos disse, no dia da nossa despedida: "Voltem em breve, senão já não me encontram por cá". Não levámos a sério, não voltámos e, quando o fizermos, já não a encontraremos por lá. 

Soube agora que Asta Rose morreu em Brasília, há meses, com 94 anos. Não sei se por sua indicação, as suas cinzas foram juntas ao túmulo de Tomaz Alcaide. Asta Rose acabou em Portugal, ao lado de quem gostava.



quarta-feira, julho 19, 2017

Alberto Martins


Gosto da política feita por gente que acredita em ideias, que se bate por elas, que se mantém teimosamente coerente, em todas as suas opções. Como Alberto Martins.

Alberto Martins deixou hoje o parlamento, por vontade própria. Os portugueses começaram a conhecê-lo em 1969, quando ousou levantar a voz, como presidente da Associação Académica de Coimbra, numa célebre sessão pública na presença de Américo Tomás. Pagaria a ousadia, mas o ato valeu democraticamente a pena. Depois de abril, lutou pela liberdade, sempre com voz própria, nas tribunas políticas que entendeu assumir - do partido ao parlamento, passando pelo governo. Partilhámos algumas "guerras" políticas e estivemos quase sempre nas mesmas "trincheiras".

Sai de cena com grande dignidade e, estou certo, com sentido justo do dever cumprido. Um forte e solidário abraço para ti, Alberto!

O sprint



Ela tinha aí mais um ano ou dois do que eu, então adolescente, mas parecia bem mais velha. Tinha uns olhos lindos de morrer e era "muito bem desenhada". Não me ligou pêva durante toda a conversa, em que ambos fomos quase sempre testemunhas silenciosas, mantendo um ar distante, de quem tinha manifestamente a cabeça noutro lugar. 

Os pais, residentes em Santo Tirso, tinham ido visitar os meus, numa passagem por Vila Real. Eu e ela estávamos "por empréstimo" na sala, a decorar a ocasião social, fartos de histórias que não nos diziam respeito, chamando a elas pessoas de que só vagamente ouvíramos falar. Na inutilidade da nossa função decorativa, ela manteve-se sempre imune aos olhares concupiscentes que eu me recordo de lhe ter lançado. Foi uma hora perdida, para ambos. Com pena minha, claro.

À noite, ouvi os meus pais comentarem, entre si, alguma coisa sobre a jovem, por rápidas conversas entre portas que o casal tinha tido com eles. A família andava muito preocupada com ela, pelos seus atos de rebeldia, pela falta de disciplina, por já "olhar para a sombra", como então se qualificavam as raparigas que iam "saindo da casca". Isso rimava bem com os sinais de ousadia contida que eu lera no seu olhar, muito embora eu tivesse sido tudo menos o usufrutuário dos seus potenciais desvios. A verdade é que eu nunca mais a veria, pelo que deixei de pensar nela.

Passaram umas semanas. Nesse tempo, eu lia uma imensidão de jornais desportivos. Acompanhava tudo o que se publicava sobre ciclismo, futebol, atletismo e hóquei em patins - as modalidades que então me interessavam. Um dos temas que, à época, dominava essa imprensa era a inesperada transferência do vencedor da Volta a Portugal do ano anterior, da equipa de ciclismo do Futebol Clube do Porto para a do Sporting. 

Um dia, foi anunciado que a mudança se consumou. O desportista apresentou-se no estádio José de Alvalade para envergar a gloriosa camisola do meu Sporting. Era a transferência do ano. O "Record", à época tendencialmente verde-branco, trouxe uma grande reportagem sobre a chegada do novo integrante. A ilustrá-la, na primeira página, lá estava o ciclista, "com a noiva". Era ela! 

Os pormenores souberam-se mais tarde: tinha havido uma "fuga" dramática de casa dos pais, com forte comoção familiar. Estava-se já em "contra-relógio" para o casamento, por forma a concluir formalmente aquela difícil etapa da vida de ambos. No fim de contas, as coisas tinham algum sentido: ele, o vencedor da Volta, era um rapaz nascido em Santo Tirso, namorado da jovem, embora contra a vontade dos pais dela. A sua vitória, ao "sprint", era justa, a "camisola amarela" era merecida e era, aliás, da cor do sorriso com que fiquei ao ler o jornal...

terça-feira, julho 18, 2017

Não me convinha!



Quem não tem papas na língua, chama cobardia à tibieza humana. Em política, o conceito transmuta-se e pode acabar por ser sinónimo de oportunismo.

Contava-me o meu pai que, há muitos anos, em Viana do Castelo, havia um fulano que era designado, entre os seus conhecidos, como o "não me convinha".

A história conta-se rapidamente. Um dia, o dito fulano passeava-se pela cidade, ao lado da sua mulher, quando esta entrou numa altercação com um homem que ia a passar, por razões que não interessam para o caso. A conversa azedou e, a certo ponto, o passante deu uma forte lambada na senhora. Quando todos pensavam que o marido ia lavar a honra da mulher, este, pelo contrário, ficou impávido e, cobardemente, não reagiu.

As pessoas que souberam do episódio ficaram indignadas com a inação do marido e alguns amigos do casal foram mesmo ao ponto de lhe perguntar a razão pela qual não defendera a mulher. Sem adiantar grandes explicações, ele apenas lhes retorquiu: "Não me convinha!" Não se livrou, para a vida, do auto-infligido apodo.

Reconheço que a similitude é um pouco forçada, mas o "não me convinha!" podia perfeitamente ser a resposta dada pelo PSD para não "ir a jogo", lavando a face e a decência do partido, depois do episódio racista protagonizado do seu candidato a edil em Loures. 

Sejamos justos: neste caso não foi necessariamente cobardia, foi apenas oportunismo. Triste, para um partido com um historial que se pensava menos compatível com o cinismo cívico.

segunda-feira, julho 17, 2017

Ainda os ciganos

Parece que está a custar a entender a algumas pessoas que a defesa da não estigmatização dos ciganos nada tem a ver com uma atitude de permissividade face a comportamentos delituosos de cidadãos dessa origem étnica.

Condenem-se, com todo o rigor, todos os cidadãos de etnia cigana envolvidos em qualquer tipo de atos delituosos ou criminosos. Condenem-se os ciganos como se condenaria qualquer outro cidadão - branco, preto ou às riscas. 

Qualquer outra atitude que, neste contexto, singularize os ciganos tem o nome de racismo. E quem a assumir é racista. Ponto. 

É assim tão difícil de perceber?

Bolor autárquico

Andando um pouco pelo país, constatei vários casos de "paraquedismo" autárquico, isto é, rapaziada partidária que, depois de ter operado em determinado município, surge a tentar a sorte noutra câmara. Como se fosse natural a existência desta espécie de brigada política intermunicipal para todo o serviço.

Outra realidade, pelos outdoors, é o ressurgimento dos "dinossauros", que a lei procurou colocar em definitivo pousio, mas que, passada uma quarentena (às vezes como "backseat drivers", escondidos em vereações), aí vêm de novo. Às gravatas pomposas dos cartazes de há 16 ou 20 anos, sucedem-se agora as camisas abertas, de cores claras, a dar ar de operacionalidade compensatória do peso da idade. Um ridículo sem sanção.

Numa subclasse destes últimos, aí estão também os "ressocializados", os sobreviventes às condenações da Justiça, muitas vezes tidos como "injustiçados" por um eleitorado que, se os eleger, se coloca eticamente ao seu nível. A turma do "rouba mas faz" é um triste espelho do país. São essas inqualificáveis personagens que, à pala do estafado "já pagaram a dívida com a sociedade", regressam de novo, quais raposas sorridentes em capoeira, aos locais que lhe proporcionaram as condições e o ensejo para a prática dos delitos.

Desventuras

O candidato do PSD à CM de Loures fez singulares declarações sobre as comunidades ciganas existentes naquele concelho. Nada do que disse é novo, isto é, já no passado e em tristes tempos foram ouvidos juízos decorrentes de idêntica racionalidade. 

Atento o que parecia ser o consenso maioritário prevalecente no seio dos partidos representados na AR sobre questões ligadas à luta contra discriminação de minorias étnicas - facto de que Portugal sempre se orgulha no plano externo e que lhe tem valido alguns encómios em fóruns multilaterais - um silêncio da direção do PSD sobre estas declarações funcionaria como uma objetiva rutura desse consenso, deslocando o nome do partido para um terreno eticamente muito pouco cómodo. 

O PSD tem muito pouco tempo para "pôr os pontos nos is" neste assunto. É que a "cereja em cima do bolo" seria, naturalmente, um eventual elogio do PNR a tais declarações. 

domingo, julho 16, 2017

Do ódio

Há momentos em que o ódio é legítimo? Há situações em que o sentimento de estarmos a ser atingidos, de forma arbitrária, nos leva a ser possuídos por uma imparável vontade de vingança. Toda a tolerância que ao longo de uma vida ensaiamos, com racionalidade, é, num segundo, ultrapassada por um estado de revolta profunda contra aquilo que nos rompe a linearidade da vida, o nosso bem-estar, que nos subverte os sonhos, tornados pesadelos. Sei que não devia, talvez, estar a partilhar aqui a intimidade de um sobressalto exclusivamente pessoal, de uma animosidade como aquela que me tomou, que violentou decisivamente a minha calma. Ontem, fora de Lisboa, na escuridão silenciosa de uma noite de verão, tomei uma atitude que hoje posso reconhecer ter tido o seu quê de violenta. Estou arrependido? Não estou. Quem por aqui me acompanha, creio que compreenderá. Sou uma pessoa pacífica, julgo que equilibrada, não extremista. Mas o que é demais, a partir de certo ponto, não se pode aceitar, a legítima defesa perante a agressão é, a meu ver, uma resposta adequada. Teve algo de sangrento? Teve. Acesa a luz, lá estava ela, expectante, quase provocatória, a melga. Na fúria, no ódio com que a esparramei na parede branca descobri uma outra face de mim. Foi bonito? Não, não foi. Mas se tivessem sido objeto por quase uma hora de mordidelas, eu queria vê-los no meu lugar!

sábado, julho 15, 2017

Século XXI?

Ontem, por um mero acaso, surgiu-me no Twitter uma entrevista, a uma televisão canadiana, do lider checheno, em que este profere algumas opiniões "medievais" àcerca do tratamento dado aos homossexuais naquela República russa.

Ainda não estava refeito do primarismo que transparecia daquela entrevista quando vi alguns extratos de declarações do professor Gentil Martins, nas quais este distinto cirurgião profere opiniões que colocam a homossexualidade ao nível das doenças e perversões.

Há dias em que parece ser legítimo desconfiar que há setores do mundo que ainda não entraram no século XXI. 

sexta-feira, julho 14, 2017

Perpexidade

Não gostei de ouvir o primeiro-ministro dizer o que disse na quarta-feira na Assembleia da República sobre a Altice/PT/MEO.

Não gostei, desde logo, porque não acho correto que, daquela tribuna, se singularizem empresas, da forma como isso foi feito, com todo o efeito potencial que tal pode ter na atitude dos mercados. Achei isso bastante imprudente da parte de António Costa. (A quem estranhar que eu escreva isto, lembraria que nunca condiciono a liberdade da minha opinião às simpatias políticas).

O que se passou, contudo, só confirma algo que já se ia sabendo: que a Altice se está a comportar em Portugal de uma forma altamente agressiva, numa estratégia empresarial que está a colocar em causa muitos postos de trabalho. Esta atitude hostil da empresa só nos pode suscitar grande perplexidade. 

Essa perplexidade aumenta muito ao saber-se que a Altice está prestes a adquirir a Mediacapital, proprietária da TVI e da Rádio Comercial. Acho muito estranho, confesso, que a expansão de um grupo, em tão larga e significativa escala, seja feita sem um diálogo, prévio e sereno, com os poderes públicos. 

Portugal é uma economia de mercado, aberta, com regras cujo cumprimento compete à regulação fiscalizar. Depois disso, há os tribunais. Será assim? É, mas nós sabemos que o bom senso exigiria que entre a empresa e o Estado as coisas se estivessem a processar de outra forma. E essa é a razão da minha grande perplexidade.

Américo Amorim


No tempo que antecedeu o surgimento dos "capitães de abril", a imprensa costumava designar homens como Américo Amorim, que ontem morreu, como "capitães da indústria". Esses eram também os dias em que ao qualificativo de “capitalista” não eram dadas conotações ideológicas e em que o termo “empresário” era exclusivamente dedicado aos produtores do Parque Mayer e ofícios correlativos.

Amorim faz parte de uma nova geração de criadores de riqueza que o período pós-25 de abril trouxe à ribalta. Durante anos, os expoentes dessa geração tiveram de defrontar o preconceito social de representarem o "dinheiro novo", face ao "dinheiro velho" das famílias que, à sombra do condicionamento industrial, tinham prosperado durante a ditadura, ao lado ou em aliança com o capital financeiro que adubou o Estado Novo. Os factos, contudo, vieram a não dar lustro, por aí além, aos alegados brasões históricos.

O mundo começou por conhecer Américo Amorim a partir do seu notável império da cortiça. Mas essa foi apenas a base a partir da qual criou um conjunto heterogéneo de investimentos, numa multiplicidade de áreas que tiveram o sucesso como marca comum.

Falei poucas vezes com Américo Amorim. A primeira em Londres, há mais de um quarto de século, quando aceitou ser nosso convidado numa palestra. Recordo o seu entusiasmo sorridente, que se somava àquele sentido de "saber ver antes dos outros" que, com os anos, fui descobrindo ser a qualidade comum - e distintiva da vulgaridade dos empreendedores - a certas figuras do mundo empresarial privado. A última vez que conversámos foi há poucos anos, quando o vi envolvido, com empenho solidário, numa louvável e discreta iniciativa de generosidade social, a que fui convidado a dar uma modesta colaboração.

Dizer que, na economia portuguesa, fazem falta homens como Américo Amorim pode parecer um lugar comum. É para mim muito evidente que fazem falta, entre nós, muitos mais criadores de riqueza e de emprego, que Portugal necessita de um tecido empresarial com forte dimensão, para poder competir internacionalmente. As PME têm aí um papel insubstituível, nomeadamente na diversificação (produtiva e geográfica) da exportação, mas sem empresas grandes e sólidas, projetadas para o exterior, a economia portuguesa não passará nunca da cepa torta. Isto é, nunca sairemos do estatuto em que há muito permanecemos (e que sei não ser agradável recordar): ser o país mais pobre da Europa ocidental.

Nos dias de hoje, Américo Amorim era o homem mais rico desse país pobre - e imagino que deva ser esse o mote para alguns especuladores da palavra, que sabem ser essa a forma mais eficaz de alimentar a medíocre cultura de inveja dominante.

quinta-feira, julho 13, 2017

Assuntos europeus



Perdoar-se-me-á que mantenha uma atenção particular sobre a pasta dos Assuntos Europeus. Afinal, ocupei aquele gabinete por mais de cinco anos, dediquei boa parte da minha carreira diplomática àqueles temas, continuo a tê-los como o meu principal "fond de commerce" de interesses.

Por razões que desconheço, mas que respeito, sai dos Assuntos Europeus Margarida Marques. Tanto quanto me foi dado observar, foi uma excelente secretária de Estado: conhecedora dos dossiês, com visão estratégica, neste tempo muito mais exigente na área europeia do que alguns curiosos da "espuma dos dias" políticos podem julgar. Tenho a imodéstia de assumir que só digo isto de algumas escassas pessoas, entre todos os meus sucessores no cargo.

Em sua substituição, assume funções Ana Paula Zacarias, uma excelente diplomata. Tal como Margarida Marques, é uma pessoa conhecedora dos meandros bruxelenses, com uma carreira brilhante no Serviço Europeu de Ação Externa. O primeiro-ministro e o MNE ganham uma colaboradora de "primeira água", a quem desejo o maior sucesso.

Ontem, em outro post, referia por aqui que as mulheres dominam nos assuntos europeus, em Portugal. Nos casos que referi, acumulam: são mulheres e muito competentes. O país continua muito bem servido na pasta dos Assuntos Europeus. E bem precisa!


quarta-feira, julho 12, 2017

Lula


Tenho uma forte estima pessoal por Lula da Silva. Como embaixador de Portugal no Brasil, e depois disso, devo-lhe algumas atenções, que não esqueço. Como cidadão português, sinto-me grato pelas muitas atitudes que dele testemunhei, abertamente favoráveis ao reforço das relações com Portugal, muitas vezes à revelia de certos setores oficiais brasileiros. Além disso, e no plano político, conservo um imenso apreço pelas medidas que Lula tomou em favor das pessoas mais desprotegidas do Brasil, que mudaram, para bem melhor, a vida de muitos milhões de brasileiros.

Lula da Silva acaba de ser condenado, em primeira instância, por crimes de corrupção. Se a sentença vier a ser confirmada, e sem infirmar por um instante tudo quanto acima escrevi, espero que Lula da Silva seja punido pelos crimes que venha a ficar claramente provado que cometeu. Se vier a ser inocentado, lamentarei, como amigo, que a Justiça o tenha feito passar por essa provação. Em qualquer dos casos, que fique claro: a minha estima pessoal por ele permanecerá.

É assim que eu vejo a vida.

Diplomacia familiar


Vi o cavalheiro surgir uma noite lá em casa, com ar grave. Foi recebido pelo meu avô e pela minha mãe. Era uma figura relativamente importante, na hierarquia das personalidades de Vila Real, onde chefiava um departamento oficial. Eu devia ter 11 ou 12 anos e o facto da conversa ter lugar à porta fechada fez-me pensar ser grave o assunto.

No fundo, a história era simples. O filho desse cavalheiro, um rapaz de vinte e poucos anos, havia "raptado" uma jovem de 17 anos, por quem estava apaixonado, cuja família, residente perto das Pedras Salgadas, tinha um vago parentesco com a nossa. O registo não podia ser mais clássico: a família da rapariga, por qualquer razão, não aceitava o rapaz (já assim era em Verona, ensina a literatura) e este, com a pressa fogosa dos dois a ajudar, forçou a decisão drástica.

A jovem tinha sido levada da casa "de boas famílias" em Vila Real onde estava hospedada, durante a noite (nunca percebi por que razão estas coisas se fazem de noite, mas deve ser para magnificar o romantismo do ato). Estariam então em "parte incerta" (o futuro viria a revelar ser Lamego, a apenas escassas dezenas de quilómetros, em casa de parentes).

Nessa pequena cidade de província dos anos 60, o escândalo só não se tornou "viral" na má-língua dos cafés porque esse vocábulo se limitava então às suas tradicionais dimensões médicas. Mas, por uns dias, não se falava de outra coisa: "Então já sabes que o filho do doutor Fulano fugiu com uma aluna do Magistério Primário?"

Ele era um pouco mais velho, tinha historial de conquistas e, provavelmente por isso, o pai da pequena, um abastado proprietário rural, talvez temendo pelo destino da herança, fizera forte "contravapor" ao romance.

A visita nessa noite do pai do raptor destinava-se a pedir uma mediação por parte do meu avô. Conhecendo-o, divertido como ele era, deve ter-se deliciado com o enredo, pedindo à minha mãe para o "assessorar".Desconheço o teor da conversa havida, apenas constatei que, no dia seguinte, o meu avô e a minha mãe, não sei com que mandato nem garantias recebidas, lá partiram para uma conversa com o pai da raptada.

Ao progenitor, cujo nome não vem para o caso, sempre ouvi designar lá em casa por "o Rendufe". Tinha ficado naturalmente furibundo com o rapto da filha e, no seu consabido mau feitio, constava que tinha prometido mesmo dar "uns tiros de caçadeira definitivos nos dois", para lavar a honra da família. Nisso era acompanhado pelo irmão da rapariga que, rezavam também as crónicas, andava munido de uma moca, que alardeava ser para "desfazer à paulada" o raptor. (Para sempre, sempre passou a ser designado na nossa família como "o da moca"...)

As condições de base para a negociação não se apresentavam, assim, muito favoráveis a um compromisso. Por uns dias, a boa vontade do meu avô e da minha mãe, sob o olhar distante e algo divertido do meu pai, mobilizou um curto "shuttle" entre a cercanias das Pedras Salgadas e uma moradia perto de um miradouro a que, em Vila Real, se chama a Meia Laranja. A minha memória mais impressiva desse "operação" é uma hora de "seca" passada num carro, à porta desta última morada, aguardando uma das diligências, nessa atividade de "go-betweens". Tenho uma vaga ideia de ouvir falar de promessas patrimoniais feitas pela família do raptor para apoio ao casal, como parte do possível entendimento.

O compromisso fez-se e, ao que parece, a minha mãe terá tido nisso um papel vital, no processo de convicção dos pais da jovem. Lembro-me bem dos meus tios brincarem com ela, chamando-lhe a "diplomata" da família.

Aliás, o reconhecimento do sucesso do empreendimento foi tal que houve casamento, tendo a minha mãe e o meu avô servido de padrinhos. Não me recordo de ter ido à boda, mas lembro-me dos recém-casados passarem a ser visitas lá de casa.

Ele tinha um ar de galã nervoso, de boas maneiras, sempre de boquilha, se bem me lembro um pouco dado aos álcoois, frequentador habitual da barra da Toca da Raposa. Ela era uma bela, roliça e "bem desenhada" e "grown-up" adolescente, se a minha memória me não trai (e, nestas matérias, por qualquer razão, costuma ser fiel...). Um dia mudaram-se para o Porto e nunca mais ouvi falar deles.

Do episódio - que me veio à memória quando, há dias, passei frente à casa dos pais do raptor - guardei para sempre as diligências "diplomáticas" da minha mãe, quiçá reveladoras de que essa qualidade humana é, porventura, de natureza hereditária.

Peixe frito, claro!


Correspondendo a um pedido expresso de dois amigos estrangeiros, um anfitrião luso organizou hoje, no seu terraço, um almoço de peixe frito! "Peixe frito"?!, já estou a imaginar a reação espantada de alguns "finaços". Isso mesmo! Peixe frito! Magnífico! Depois de uns queijos para "fazer boquinha" (um serra amanteigado, um meio curado e um curado a sério), acompanhados por um espumante da zona do vinho verde, passámos ao essencial. Antecedido de uma sopa de couve flor (o toque das natas e o caviar fizeram a diferença), abrimos com uns carapaus fritos, seguidos de pescadinhas de rabo na boca, de se lhes tirar o chapéu! Tudo com um belo arroz de tomate, "à maneira". A acompanhar, claro um Alvarinho. Fechámos, bem "ao de leve", com uma mousse divina, morangos e umas cerejas da Gardunha, "para desenjoar", como se diz na minha terra. Não fosse, contudo, o aparelho digestivo ressentir-se, o anfitrião proporcionou, com o café, um digestivo: uma aguardente caseira, minhota. Eu, que já não tenho fígado para essas aventuras, fiquei-me num "Jameson", p'ró novo. E bela conversa! Há almoços que valem a pena!

terça-feira, julho 11, 2017

Hamburgo

Por mais que tenha procurado, não consegui encontrar prova de que Trump, à chegada ao G20 em Hamburgo, tenha tentado imitar a frase de Kennedy em Berlim, dizendo: "Ich bin ein hamburger".

É pena.

Caixa em pizza

Não, não é "pizza em caixa", distribuída pelos motards; é mesmo "Caixa em pizza". É que a Comissão parlamentar de Inquérito sobre a Caixa "deu em pizza".

(É pena nós não termos por cá esta expressão que os brasileiros conhecem "de gingeira". Trata-se de um episódio passado no Palmeiras, clube de futebol, onde um conflito interno acabou num jantar conjunto das partes conflituantes. A imprensa reportou então que "acabou em pizza". Desde então, sempre que se pressente que um inquérito não vai dar em nada, os brasileiros dizem "vai dar em pizza".)

Como já era de esperar, num terreno tão pantanoso para o PS e PSD, com o CDS a "meter a colherada", o inquérito deu "em águas de bacalhau": afinal nada se provou em matéria de favorecimentos políticos, por via de créditos concedidos.

Apetece-me assim repetir o que, sobre este assunto, vai para um ano, escrevi num jornal. Aqui fica.

"Eu e todos os portugueses – repito, contribuintes investidores – temos o direito a saber, preto no branco, quais a responsabilidades exatas do condomínio PS/PSD, com algum CDS à mistura, que dominou a Caixa nas últimas décadas. Desde logo porque, nessa gestão politizada, houve gente competente e outra que o foi menos – e não podem todos ser medidos pela mesma rasa. 

Os portugueses têm o direito de saber, com nomes e números, quem foram, nos anos que prejudicaram a instituição, os responsáveis pelos créditos concedidos sem as necessárias garantias, se houve motivação política nessas decisões, se aconteceram, e porquê, grandes perdões de dívida e quem são hoje os principais devedores incobráveis – alguns dos quais andam por aí de costas direitas, com ar de gente séria.

A Caixa é uma coisa demasiado importante para que os erros de quem por lá passou possam ser iludidos, numa espécie de voluntária amnésia para absolver os vícios políticos do sistema. E, se o governo e alguns partidos se mostrarem relutantes a fazê-lo, o presidente da República deveria lembrar-lhes essa responsabilidade. O país ficaria grato."

Mas, pelos vistos, "acabou em pizza".

Guiar o apetite




Nos dias de hoje, vivemos inundados de notas sobre restaurantes, de guias, de listas, de blogues, de revistas que os recomendam, de programas de televisão (e até de rádio) que os promovem.

Embora a abundância de referências possa acabar por confundir alguns - até porque muitas vezes tal não é acompanhado por uma discriminação crítica capaz - é evidente que, em termos de informação, estamos hoje mil vezes melhor do que, por exemplo, estávamos há trinta anos, quando o destaque dado a alguns desses locais vivia da mera publicidade e da muito escassa crítica na imprensa - onde o nome maior era já então a figura referencial de José Quitério, sem menosprezo pelo excelente trabalho de muitos outros. 

Esse era também o tempo áureo do boca-a-boca, da dica de quem sabe onde se come "o melhor bacalhau", ou "o melhor leitão" ou onde há "o melhor Abade de Priscos". Uma "conversa" onde há que isolar profilaticamente quem come "o que vier à rede" e quem se dedica a promover os amigalhaços. 

Porque sempre fui um andarilho de mesas da gastronomia, fui coletando muita informação sobre esses ditos melhores locais, que sempre partilhei (e continuo a partilhar) com os amigos. 

Um dia, em finais de 1987, eu e o Alfredo Magalhães Coelho decidimos juntar todos os dados que tínhamos acumulado, "democratizá-los" e publicar, em "fascículos" policopiados, alguns guias regionais de restaurantes. 

A ideia era dar a quem se passeasse pelo país a possibilidade de encontrar um lugar "decente", nas principais localidades de alguma dimensão onde chegasse. Além das referências costumeiras, informava-se sobre os pratos mais típicos e até dávamos dicas geográficas para chegar aos locais. 

Com estes guias pretendia-se evitar que as pessoas tivessem de recorrer aos dois critérios quase infalíveis para escolher uma boa mesa, numa localidade portuguesa sobre a qual não há referências: perguntar qual o melhor restaurante local a um tipo gordo (é essencial que seja gordo!) e com ar abastado (tem também de ser pessoa "de posses") e, cumulativamente, inquirir "onde costuma almoçar o senhor presidente da Câmara". A coincidência destas duas informações tem um grau de rigor superior ao Guia Michelin. 

Os nossos guias artesanais (gratuitos, claro) foram um imenso sucesso. Eram "batidos" por mim num "286" (o neolítico dos computadores) e, tal como o "Avante!" no tempo do "Botas", eram impressos "clandestinamente" (a tiragem era muito escassa, para marcar a raridade da obra e o privilégio de poder ter a ela acesso) pelo saudoso Camilo, na reprografia da Direção-Geral dos Assuntos Comunitários. (Ao olharem as cores das capas, os diplomatas que me estiverem a ler cruzar-se-ão com algo conhecido...) 

Nunca chegámos a cobrir todo o país, mas creio que houve guias de Trás-os-Montes, Minho, Beiras, Alentejo e Algarve. O guia de Lisboa e Ribatejo e o de Porto e Beira Litoral (as ilhas nunca estiveram previstas) foram sendo adiados até ao dia de S. Nunca. 

Ontem, numa revisão de estantes, encontrei dois "números" (de 1988 e 1989), bem marcados pela humidade. Nem os abri! Nada é mais perecível do que um guia de restaurantes. Por isso, quando consultarem algum, verifiquem logo a data de impressão. Tudo o que tenha mais de um ano deve merecer uma imediata desconfiança (sei do que falo, acreditem!)

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.