terça-feira, março 08, 2016

Cavaco Silva


Aníbal Cavaco Silva sai amanhã da cena política. Em quase metade da minha vida como servidor público tive-o como ministro, primeiro-ministro e presidente da República.

Conheci-o ainda antes, como examinador, na minha prova oral de entrada para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1975. Ele era então um jovem professor de economia, regressado de York, onde se tinha doutorado. Foi uma prova exigente, dura, mas correta. O tema - assuntos europeus - estava, à época, muito longe de ser a minha especialidade... Saí-me, creio, assim-assim. Tive a classificação que merecia.

Trocámos impressões sobre esse episódio, quatro anos mais tarde, na Noruega, era ele ministro das Finanças e eu diplomata na nossa embaixada. Notei o prazer que revelava por ter sido membro desse júri de admissão dos novos diplomatas. É, de facto, uma tarefa nobre e interessante. Também eu, anos mais tarde, fiz parte dos membros desse júri, ao lado de outro examinador que se chamava Marcelo Rebelo de Sousa.

Se, como ministro, Cavaco mantinha uma certa reserva, que sempre me pareceu fruto de alguma timidez e aversão a terrenos onde se não sentisse seguro, como primeiro-ministro fiquei com a sensação de que estimulou (ou aceitou, com agrado - a doutrina divide-se) a criação, à sua volta, de uma redoma de proteção, com uma hiper-segurança e uma corte reverente que o isolava. Creio que se sentia bem confortável assim, distante, parcimonioso na palavra, frio a um ponto de ser quase desagradável. É "um estilo", dizem alguns. Talvez, mas os estilos sujeitam-se a ser qualificados por quem se confronta com eles.

Por coincidência, fui o primeiro embaixador português a ser recebido por Cavaco Silva, enquanto presidente. Notei-o nesse dia mais solto, como se o regresso à política, noutro patamar, depois de uma década de travessia do deserto, lhe tivesse feito bem. Contudo, essa impressão não se confirmaria nos anos seguintes, onde o fui sentindo progressivamente crispado, como se o atravessasse uma desconfiança permanente, o receio de um passo em falso, um cuidado extremo em funcionar "by the book".

Na última vez que nos cruzámos, em 2013, estávamos ambos de fraque, nos dourados de Queluz. Eu,  já reformado da função pública portuguesa, representava uma entidade internacional, o Conselho da Europa, na cerimónia anual de cumprimentos ao chefe do Estado pelo corpo diplomático estrangeiros acreditado em Lisboa. Era então diretor executivo do Centro Norte-Sul, curiosamente uma organização a que Cavaco Silva dedicou sempre grande interesse. Não tive tempo para lhe lembrar que, em 1989, fora eu, enquanto diplomata, quem lhe escrevera o discurso que fez na inauguração do Centro.

Nunca mais encontrei pessoalmente Aníbal Cavaco Silva. Neste que é o último dia da sua função presidencial, acho que o mínimo de elegância aconselha a não falar demasiado do lado político de Cavaco Silva, particularmente por parte de quem, desde o primeiro dia que com ele se encontrou, nunca teve um mínimo de sintonia com a sua forma de estar na política e no serviço público. Não duvido, longe disso, que Cavaco, como ontem disse, tenha sempre agido na convição de que o fazia "de acordo com o superior interesse nacional". Porém, se um político a quem o país deu quatro maiorias absolutas acaba com a popularidade mais baixa do que qualquer outro presidente teve no final do seu mandato, das duas uma: ou é ele que está enganado ou foi o eleitorado que se equivocou. A História irá escolher.

A esquerda da esquerda

A propósito do post que ontem aqui publiquei sobre o PCP, ocorreu-me que parte da tensão que ainda hoje se vive entre aquele partido e o Bloco de Esquerda encontra a sua justificação no conflito ideológico que, desde o início dos anos 60, se instalou na "esquerda da esquerda" portuguesa. E que, na realidade, nunca se apagou por completo, até aos dias de hoje.

Não me proponho revisitar aqui a história da multiplicidade de tendências que surgiram, a partir de 1964, na extrema-esquerda portuguesa, numa cascata de organizações que tinham como ponto comum a diabolização do PCP e o apelo à "reconstrução" do "verdadeiro partido comunista". Mas vale a pena lembrar que esse longo e complexo tecido de organizações acaba, em grande parte, por convergir numa organização frentista que, logo em 1976, consegue eleger um deputado para a Assembleia Constituinte, a UDP - União Democrática Popular. A UDP, ou o que dela restava, acaba por ter um papel fundamental na criação do Bloco de Esquerda, em 2000.

Mas não esteve sozinha. Outro dos componentes do Bloco foram os trotskistas, nomeadamente os que eram oriundos do Partido Socialista Revolucionário.

Há um profunda ironia em ver juntas no mesmo partido pessoas que emergem de correntes estalinistas e trotsquistas, as duas alas mais ferozmente antagónicas do movimento comunista internacional. Não sei se, pelo mundo, um facto como estes é comum.

O Bloco tem ainda uma terceira componente, constituída por figuras que, entretanto, se tinham afastado do PCP mas não ingressaram no PS, parte dos quais tinham criado a Política XXI.

A essa amálgama vêm ainda a somar-se (poucos) nomes que haviam estado no MRPP (a única das organizações maoístas, embora também ferozmente anti-PCP, que não nasceu da divisão de 1962) e outros militantes autónomos, em especial de meios católicos radicais e promotores de causas "fraturantes".

O Bloco parece-me ser isso - mas admito que outros tenham uma diferente leitura da que faço. E devo dizer que, acompanhando com alguma atenção, desde há décadas, a "cissiparidade" endémica da extrema esquerda portuguesa, fico surpreendido com a capacidade de união que uma formação com tanta diversidade tem conseguido manter ao longo destes anos.

O PCP manteve sempre à distância, sem a menor exceção, todas as organizações situadas à sua esquerda, dos maoístas aos trostskistas e anarquistas, embora dando sempre mais atenção crítica aos primeiros. Antes do 25 de abril, Álvaro Cunhal escreveu mesmo um pequeno livro onde fazia a denúncia desses movimentos, a que deu um título que é auto-explicativo: "O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista". Já depois do 25 de abril, um militante comunista, José Manuel Jara, publicou "A farsa dos pseudo-radicais em Portugal" (1974) e "O Maoísmo em Portugal" (1975), onde pretendeu prolongar e desenvolver a denúncia de Álvaro Cunhal.

Nada indica que pontes entre o PCP e o Bloco de Esquerda possam vir a ser construídas, não obstante a vizinhança de assentos no plenário de S. Bento. As velhas querelas mantêm-se e, em certa medida, ambas as formações têm um espaço de crescimento potencial que é comum e, por isso mesmo, continuam em natural disputa entre si.

António Costa não os conseguiu sentar à mesma mesa a assinar o acordo que sustenta o seu governo. Mas, "chapeau!", tem sido suficientemente hábil para os manter a bordo da "geringonça", que tem funcionado melhor do que muitos supunham. A começar por mim.

segunda-feira, março 07, 2016

95 anos


É uma bela idade para um partido, aquela que o PCP ontem comemorou.

Dos partidos existentes, e por data de criação, o PS, que surge em 1973 (52 anos depois!) pode ser considerado o segundo mais antigo. PSD (então PPD) e CDS-PP (então CDS) foram criados já em 1974, depois da Revolução.

Nascido em 1921, por transformação em partido de uma organização de raiz anarquista surgida dois anos antes, no auge do entusiasmo gerado no movimento operário pela Revolução russa, o PCP foi uma estrutura sempre muito débil até ao final da I República. Só o declínio do movimento anarquista, no início dos anos 30, muito atingido pela severa repressão da ditadura militar, que paralelamente exilou o "reviralhismo" e não teve dificuldade em controlar a esquerda intelectual de matriz socializante, permitiu ao PCP vir a ter um papel mais relevante na luta operária que então ainda se conseguia afirmar. Desde o seu início, o Estado Novo iria ser impiedoso para com os comunistas, tal como o fora com os anarquistas, conseguindo mesmo, por algum tempo, quase anular a sua atividade. Só a partir da década de 40 é que o PCP começou a ter maior expressão na luta oposicionista, conseguindo, muito graças aos seus setores intelectuais, estabelecer pontes com o republicanismo tradicional e com as correntes socialistas, se bem que estas fossem muito pouco representativas. Internamente, o partido - cuja fidelidade a Moscovo, sem limites ou reticências, o tornou mimético e acrítico face às mudanças que foram ocorrendo na URSS - sofreu entretanto várias convulsões na sua liderança e mesmo alguns "desvios" no seu percurso. Contudo, desde os anos 40, o PCP nunca abdicou de privilegiar o "frentismo" como forma de ação política, onde sempre procurou fazer prevalecer a sua linha estratégica, que se revelou nem sempre conforme com as dos seus vários aliados. Em especial desde o final dos anos 50, bem cientes da sua força objetiva relativa, os comunistas procuraram assegurar cada vez mais uma liderança firme no seio da oposição, prestigiados como estavam pela sua postura de grande coragem e sacrifício em face da repressão do regime, bem como por uma atitude de forte coerência na luta anti-colonial. Porém, logo de seguida, com o início da década de 60, e como consequência direta do cisma sino-soviético, o PCP ver-se-ia fortemente contestado à sua esquerda, o que lhe criou a necessidade de dar resposta política a uma multifacetada crítica ideológica, que teve especial expressão nos meios académicos. O surgimento de uma forte agitação no movimento católico e o surto de crescimento do movimento sindical trouxeram, entretanto, terrenos novos e férteis à ação do PCP, que, até ao 25 de abril, revelou sempre algum interesse em manter um diálogo crítico com a corrente socialista, apenas com um afastamento acentuado, mas pontual, nas "eleições" de 1969. Porém, de forma incontestável, o PCP iria chegar à Revolução como a força política mais relevante no seio da oposição à ditadura.

Depois, a história é mais conhecida. Parabéns ao PCP, agora reconduzido a uma formação política com responsabilidades de sustentação do poder.

domingo, março 06, 2016

Margem esquerda


Durante a tarde de ontem, numa associação popular do Barreiro, debati, durante mais de duas horas, com o deputado Porfírio Silva e uma interventiva audiência, essa questão essencial que são as alternativas possíveis em matéria de política económico-financeira, numa Europa em evidente crise e no seio da qual a gestão da posição de um país como Portugal é extraordinariamente difícil. Dou-me conta de que, em pouco tempo, esta é a terceira vez que a discussão sobre a Europa me leva "à outra banda", como dizem os lisboetas.

Não sei se o debate foi conclusivo, não posso avaliar se as pessoas saíram mais esclarecidas ou se as nossas dúvidas não acabaram por tornar ainda mais complexa a sua leitura sobre o estado do processo integrador do continente. Tenho sempre uma grande dificuldade em avaliar o saldo final de interesse de quem nos escuta. 

Mas quero dizer, com a maior sinceridade, que saí daquela sessão "com a alma lavada", por observar um grande número de jovens, misturados com outros mais velhos mas que estavam longe de ser a maioria, atentos e a discutir com grande abertura, preocupados com a Europa e a interrogar-se sobre a melhor atitude para a defesa dos interesses de Portugal, avançando com as perguntas certas, sem tremendismos, mas também sem líricas ingenuidades. 

É verdade que a organização pertencia à Juventude Socialista do Barreiro, mas foi reconfortante encontrar também por ali jovens do CDS-PP e do Bloco de Esquerda, visivelmente interessados em temáticas das quais depende o nosso futuro como país. 

Cheguei ao Barreiro pela avenida Alfredo da Silva e saí pela avenida Bento Gonçalves. Isto parece-me que diz alguma coisa sobre o equilíbrio salutar que hoje se vive naquela terra, pela qual me habituei a ter um grande respeito histórico, porque por ali se cruzam memórias muito profundas da luta pela construção da nossa democracia.

sábado, março 05, 2016

Uma censura de Ferro


No âmbito de um trabalho que estou a fazer a convite do "News Museum", que no próximo mês vai abrir em Sintra, consultei nos últimos dias alguma bibliografia sobre António Ferro, o principal artífice da propaganda do salazarismo. Ferro é uma figura controversa, que junta facetas muito contrastantes. Não deixa, no entanto, de ser uma personalidade muito curiosa e quase fascinante, merecedora de destaque e de atento estudo, pelo seu perfil cultural e pelo papel político que desempenhou.

Há meses, insurgi-me aqui sobre uma biografia de António Ferro, da autoria de Orlando Raimundo, que critiquei, porque entendi politicamente preconceituosa. No entanto, não deixei de ler o livro e de dele extrair alguns ensinamentos. Goste-se ou não do trabalho, é uma contribuição incontornável para o tratamento futuro da figura de Ferro.

Ontem, adquiri uma outra obra, muito recente (fevereiro de 2016), intitulada "António Ferro - 120 anos", que traz a atas de um colóquio organizado pela Fundação António Quadros (filho de Ferro e dessa figura também muito interessante que foi a escritora Fernanda de Castro). No final do volume, os organizadores (pelo nome, familiares de Ferro) inserem uma "bibliografia passiva", com 24 obras sobre António Ferro, que eu pensei quase exaustiva, à luz daquilo que eu conheço.

Tentei então descobrir nessa lista a obra que eu próprio tinha criticado. Mas o livro de Orlando Raimundo não figura na bibliografia. Porquê? Seguramente porque a deontologia científica da Fundação António Quadros não chega ao ponto de poder conviver com o contraditório e cede afetivamente à parcialidade. É pena. Ao assim proceder, a Fundação adota os métodos censórios do regime ditatorial de que António Ferro foi tão fiel servidor. Mas não serve a História, que poderia ajudar a consagrar o seu antepassado. É que a História ouve todos os lados, mesmo os que não são simpáticos.

sexta-feira, março 04, 2016

Lula


Ao contrário de muitos dos meus amigos brasileiros e de alguns portugueses, fico triste com a detenção do antigo presidente brasileiro Lula da Silva. Seria muito mais fácil não o dizer no dia de hoje, mas digo-o, sem hesitações.

Porquê? Por três razões.

Porque durante os quatro anos em que fui embaixador português no Brasil, só recebi do presidente Lula manifestações de interesse e carinho por Portugal, que eu ali representei. Porque, depois da minha saída do Brasil, continuou a ter para comigo gestos de simpatia e atitudes reveladoras de amizade e atenção. E isso não esqueço. Estando ele na cadeia ou fora dela.

Porque faço uma avaliação globalmente positiva dos seus mandatos, do salto que fez dar à sociedade brasileira, do sopro de esperança que trouxe a pobres e desfavorecidos, da fome que tirou a milhões dos seus concidadãos e do impulso extraordinário que deu à imagem e ao papel do Brasil pelo mundo.

Mas também porque me preocupa a radicalização que a situação política interna do Brasil possa vir a sofrer, por virtude desta ação da justiça. Há uma parte importante do Brasil que tenho a certeza de que vai interpretar esta detenção como uma espécie de vingança histórico-política, para evitar a sua recandidatura em 2018.

Se a humilhação por que Lula hoje passou tiver sido gratuita, espero que alguém seja por ela fortemente responsabilizado. Não se humilha um antigo chefe de Estado sem razões muito sólidas e incontroversas.

Mas que fique também bem claro: se se vier a confirmar que Lula da Silva é indiscutivelmente culpado dos crimes que lhe venham a ser imputados, desejo sinceramente que a justiça brasileira o condene e o faça pagar por isso, à medida exata das suas responsabilidades.

Digo aquilo que já disse noutro caso: acho sempre especialmente grave se se vier a provar que uma pessoa traiu a confiança democrática que o voto popular lhe confiou, para disso tirar vantagens materiais de natureza pessoal. Nesse caso, e sob prova concludente, deverá ser punida de modo exemplar. A justiça democrática por que Lula sempre disse lutar é isso mesmo.

A liturgia das instituições



Há dias, o líder do Podemos, nas mesmas mangas de camisa com que se apresentou semanas antes a uma convocatória feita pelo rei, foi ao centro do hemiciclo parlamentar espanhol e pespegou um beijo na boca de outro político radical, ao que parece congratulando-o por uma intervenção. A foto correu mundo, talvez com maior difusão do que aquela que, tempos antes, mostrava uma criança, filha de uma deputada do mesmo partido, a mamar, também durante uma sessão das Cortes.

Não há a mais leve dúvida de que gestos e trajes como estes têm como finalidade tentar dessacralizar as instituições, transmitir a ideia de que elas devem evoluir e tornar-se um espelho da própria sociedade, perderem a rigidez protocolar e, quem sabe se por essa via, aproximarem-se dos cidadãos.

Não tenho porém a certeza de que a banalização das instituições favoreça a democracia. Pode, no imediato, conferir alguma popularidade àqueles que “abanam” os modelos políticos, como que a relembrar que há um outro mundo, que não se revê no formalismo, e que ganhou o direito de cidade de ali estar. Mas tenho a maior das dúvidas de que o ruir de algumas liturgias acabe por funcionar em reforço da eficácia e da legitimidade dos modelos de representação.

Confesso que me choca o modo como alguns deputados do nosso parlamento se vestem, num “casual” que roça a bandalheira, não muito distante do sinistro fato-de-treino. Não é tanto a falta da gravata que se contesta: há modos de vestir sem gravata cuja manifesta elegância substitui a de um fato tradicional.

Carlos Brito, o antigo deputado comunista, conta num seu livro que, num dos primeiros anos da democracia, um seu colega, indicado para acompanhar uma visita oficial ao estrangeiro, anunciou que não ia utilizar gravata, não obstante as regras protocolares recomendarem um traje formal em certas ocasiões da deslocação.

A persistente resistência do deputado fez subir o assunto a Álvaro Cunhal. O secretário-geral lembrou então que é muitas vezes adequado, em alternativa às roupas protocolares europeias, o uso em cerimónia oficiais de trajes tradicionais, acrescentando: "Ora nós temos trajes tradicionais muito bonitos, por exemplo, os minhotos". E logo adiantou: "O nosso camarada podia ir vestido de minhoto e evitava-se a gravata. Até podemos telefonar já aos camaradas de Viana e encomendar já um fato". O deputado correu a comprar uma gravata.

Há dias, ao ver um secretário de Estado do governo socialista, nos salões estadonovistas das Finanças, apresentar o orçamento em atitude desengravatada, perguntei-me se acaso um traje típico não seria mais adequado.

quinta-feira, março 03, 2016

Amigos & livros


Nada há de melhor do que ter amigos e ter livros. E, quando os livros são dos amigos, melhor ainda.

Luís Castro Mendes é um excelente poeta. E diplomata. Entrámos para o MNE no mesmo dia, mas ele vai sair de lá mais tarde, porque é um "rapaz" mais novo. Andámos em tempos diferentes por terras comuns (Angola, Brasil), cruzámo-nos por Paris, visitámo-nos pelo mundo, sempre trocando cumplicidades e bebendo copos à amizade e à comunhão de ideias. O Luís publicou agora mais um livro da sua poesia, apresentado, há dias, pelo Nuno Júdice e rodeado de uma legião de amigalhaços, como ele gosta. Quem nos abre a vontade de ir a Trebizonda bem o merece.

No dia seguinte, isto é, ontem, o João Paulo Guerra lançou um seu romance. Já o estou a ler e, como disse o Carlos Matos Gomes, que o apresentou, é um murro no estómago, porque insiste em tratar como deve ser a traumática dimensão humana da guerra colonial - que uma escola historiográfica delicodoce traveste de "guerra do ultramar" ou "guerra de África". A escrita do João, oriunda da melhor escola do jornalismo, está cada vez melhor. Mas faz-me falta, confesso, ouvir a sua inconfundível voz na rádio. Mas ele não faz parte - nunca fez! - das "playlists" da moda.


Raposo, o Alentejo e os novos malteses


Detesto quase todas a ideias de Henrique Raposo. Leio-o semanalmente no "Expresso", como leio (quase) todo o reacionário que por aí se publica, dos caceteiros ao neoliberais saídos das universidade "business" da moda. Por muito Popper ou Arendt ou Churchill ou liberdade de costumes com que se ilustrem, eles são o que são.

Desde há muito que me desabituei de ler colunistas de esquerda, dos jornais aos blogues. Praticamente só consumo textos da gente de direita, quanto mais à direita melhor. São aqueles com quem sei que vou discordar de imediato, e isso dá-me um conforto imenso. Até Pacheco Pereira e Pedro Marques Lopes deixaram de ter a graça que tinham, ao passarem a ecoar um pensamento próximo de alguma esquerda.

São os reacionários, alguns mesmo a roçar o "facho", que me ajudam a arrumar, contra eles, as minhas ideias. Percebê-los, conhecer a génese do seu pensamento, é essencial para melhor os poder contraditar. Será um vício masoquista, mas já não passo sem esse "cais das colunas" direitolas, onde aportam vários cavalheiros e até uma menina de óculos que nos olha com um sorriso estranho. Só não refiro os nomes para não ajudar à sua promoção, confesso.

Henrique Raposo faz parte de uma espécie lusa de direita jovem, entre o miguelista e o trauliteiro, que se cultivou num ódio a tudo quanto cheire a público, com todos os tiques que ajudaram a adubar teoricamente a desastrada governação dos últimos anos. Alguns deles entraram, por dever de devoção, no patético "governo de uma semana e picos", que quase traz ressonâncias transalpinas do antanho. A chegada ao poder da esquerda roi-os por dentro. Tem imensa graça vê-los a fazer figas contra a boa execução orçamental. No caso particular de Raposo, ressoa da sua coluna uma espécie de vingança geracional, quase freudiana, embrulhada em arrogância, sobranceria e uma agressividade estudadamente insultuosa. A seu favor militam, contudo, uma agudeza de raciocínio (mal empregado, dirão alguns) e uma muito boa qualidade de escrita (o que me não é indiferente).

Li o livro que Henrique Raposo publicou sobre o Alentejo, e que está a fazer algum escândalo. Acho uma imensa estupidez por parte de uma certa esquerda diabolizar o estudo. Desde logo porque é um trabalho interessante, não obstante as teses que defende poderem ser discutíveis. Mas também porque, ao fazê-lo, está a contribuir para tornar Raposo num "mártir", o que deve dar a este um imenso gozo.

Gostava de deixar muito claro que Henrique Raposo, pessoa que não conheço, tem toda a minha solidariedade na sua defesa contra os "talibãs" que pretendem evitar a divulgação do livro. Era só o que faltava que, no Portugal de 2016, ainda se pudesse discutir se alguém tem o direito de exprimir o que lhe der na real gana! Henrique Raposo tem uma leitura negativa dos alentejanos e dos seus hábitos, da sua maneira de ser e de pensar? Pois muito bem: tem direito a tê-la e a divulgá-la, como muito bem entender. Se é preciso um abaixo-assinado para defender o direito de Henrique Raposo a divulgar o seu livro, eu serei o primeiro subscritor.

Gostava de saber como teriam reagido os protocensores da obra de Raposo se acaso os britânicos tivessem decidido proibir o livro em que o cientista português João Magueijo insultava o Reino Unido e os seus habitantes, em termos bem mais ofensivos dos que Henrique Raposo usa para os alentejanos. O caso de Raposo é diferente, só porque é de direita? Essa agora! O 25 de abril fez-se para dar voz a todos, da esquerda à direita. Essa é a sua superioridade!

Ah! E não sabem o que são os malteses do título? Leiam o livro e aprenderão.

quarta-feira, março 02, 2016

Os "leaks" e a diplomacia


"Embaixadora acusa "Daily Mail" de denegrir Suécia em propaganda antirrefugiados". Li este título no "Expresso online" e, pela natural curiosidade de um ex-profissional, fui ver o tipo de diplomacia pública que tinha sido utilizado para denunciar o tablóide.

Afinal, não era nada disso. O jornal, muito simplesmente, tinha obtido o teor de um relatório interno da embaixada sueca em Londres, enviado pela embaixadora ao seu governo. Por um qualquer "leak", aquilo que deveria ter permanecido como uma comunicação reservada ao circuito oficial sueco caiu no domínio público e, claro, foi logo especulado pelo próprio jornal.

No serviço diplomático, é cada vez maior o risco de as coisas que se escrevem poderem surgir a público. A prazo, é normal que essas comunicações acabem por ser conhecidas. Todos os serviços diplomáticos democráticos colocam hoje à consulta dos cidadãos ou dos investigadores, depois de umas décadas, os seus arquivos oficiais. Há, em regra, comissões especializadas que definem exceções a essa divulgação, limitando-a quando interesses estratégicos do Estado recomendem que certos documentos permaneçam sem possibilidade de consulta por mais tempo. Em Portugal, o MNE tem uma "comissão de desclassificação", composta por diplomatas experientes, que faz essa triagem.

Um embaixador, nos dias que correm, em tempos de Wikileaks e deste tipo de comportamento de algum colaborador desonesto, tem de pensar duas vezes antes de pôr no papel aquilo que realmente pensa. Às vezes, a falha ocorre na embaixada, outras vezes no destinatário. A terceira hipótese é ainda mais óbvia: uma interceção de comunicações, por parte do país onde a embaixada está instalada.

Devo dizer que, ao tempo em que fui diplomata, escrevi sempre com a preocupação do efeito potencial se acaso aquilo que eu afirmava pudesse chegar ao domínio público. Nunca devemos excluir que as apreciações que fazemos sobre figuras, políticas ou outras, dos países em que estamos acreditados venham a ser conhecidas pelos próprios. 

Num país cujo nome não vem aqui para o caso, dei-me um dia conta, numa conversa com uma figura política, que lhe chegara aos ouvidos (ou à vista) algo que eu escrevera num "telegrama" para Lisboa. O facto dele ter usado uma determinada frase, que eu raramente usava mas que tinha inserido nesse texto a propósito desse assunto, deu-me a certeza de que ele tinha tido acesso ao meu telegrama, ou a parte dele. Portugal, à época, estava muito "na berra" num determinado tema nesse país e, como é natural, o respetivo serviço de informações andava atento àquilo que a embaixada opinava. Outras vozes me tinham já alertado para isso. E eu desconfiava de onde o "leak" vinha, de quem "patrioticamente" os andava a informar. E a trair o país que (também?) lhe pagava o trabalho.

Foi então que decidi "jogar o jogo". Comecei a escrever para Lisboa comunicações que tinham precisamente como objetivo serem lidos pelas autoridades do país onde estava acreditado. Fiz comentários sobre determinadas pessoas e empresas que estavam muito distantes do que eu realmente pensava, atestei, com falsa segurança, coisas de que estava longe de estar seguro, mas que favoreciam os nossos interesses e importava que assim fossem "escutadas" pelos ouvidos locais. O teatro chegou mesmo ao ponto de eu ter pedido a uma determinada personalidade em Portugal para me fazer uma chamada telefónica para a residência e, para grande surpresa dela, tratei com (falsa) abertura na conversa um assunto bem delicado. A certo passo, disse-lhe: "Fale mais devagar, por favor". Ele percebeu: a conversa estava a ser escutada e provavelmente gravada e tivemos então o cuidado de a conduzir do modo que mais interessava aos interesses portugueses em jogo. Foi um exercício muito curioso. E, claro, chama-se a isso "desinformação".

(Na história diplomática portuguesa, conta-se que, durante a guerra, o embaixador português em Londres, Armindo Monteiro, um político anglófilo que se tinha afastado progressivamente da linha de Salazar, teimava em telefonar ao seu "número dois", o diplomata de carreira António de Faria, ao qual lia, para grande fúria deste, o texto dos telegramas que ia enviar para Lisboa. Fazia isso pausadamente, para que os serviços secretos britânicos soubessem as opiniões que dava ao seu governo.)

O espetro atual de interesses de Portugal na ordem externa raramente justifica este tipo de cuidados e procedimentos. Mas, às vezes, acontece. A regra é muito simples. Nos dias que correm, temos sempre de partir do princípio de que aquilo que escrevemos ou o que dizemos ou telefone pode estar a ser lido ou ouvido por outros, ou que alguém vai contar a terceiros... 

Dito isto, confesso que não tenho paciência para aquele tipo de pessoas que, por tudo e por nada, ao telefone, enveredam por uma conversa do género: "o tipo lá de cima, o do ovos moles, quer ver se se consegue ir ao país do petróleo que você visitou no ano passado". Respondo-lhe logo: "O Zé Manel, de Aveiro? Ai ele quer ir à Argélia, é?" Ficam furiosos...

América

Tudo começa a ficar mais claro, depois da "super Tuesday" que quase sempre pré-define o resultado final das eleições primárias norte-americanas.

Clinton parece imbatível no campo democrata, com Sanders a ter o destino tradicional dos candidatos mais liberais (no sentido americano, claro), isto é, a perder. A quase certa candidata democrática vai ter contudo de superar uma elevada rejeição que a sua excessiva exposição na política americana lhe trouxe. Mas com o voto negro e de algumas minorias assegurado, tudo parece facilitado.

Trump, embora não esmagador, provou que só por milagre alguém o travará no terreno republicano. Cruz é mais do mesmo, Rubio não conseguiu descolar, e agora já será tarde. Resta saber como vai a máquina republicana reagir a esta tomada por uma candidatura que está muito longe da imagem de um partido com tradicional sentido e responsabilidade de Estado.

Em termos teóricos, o perfil caricatural de Trump deverá tornar mais fácil a vida a Hillary Clinton no sufrágio de Novembro. Mas a América é sempre um poço de surpresas. E nem sempre das melhores.

terça-feira, março 01, 2016

Esperança?


Não sei se devemos ter grandes esperanças no cessar-fogo que entrou em vigor na Síria. A experiência mostra que este tipo de acordos é sempre muito frágil. Resta ainda notar que as partes geralmente aproveitam, nos primeiros tempos, para efetuar retificações nas linhas de conflito, onde pensam poder obter algumas vantagens operacionais, com custos políticos residuais.

Mas vale sempre a pena tentar, quanto mais não seja porque um qualquer abrandamento das ações armadas significa um alívio, ainda que pontual, para populações que já sofreram mais um quarto de milhão de mortos, em que 11 milhões (imaginamos o que isso é?) de pessoas tiveram de deixar as suas casas (entre refugiados no estrangeiro e deslocados dentro do país), num cenário de guerra bárbara que dura há mais de cinco anos.

Convém começar por lembrar que esta guerra começou pela violenta rejeição do governo sírio de efetuar qualquer abertura política que pudesse vir a democratizar o regime. A reação do presidente Assad, que desde o início percebeu poder contar com o "backing" complacente da Rússia, que travaria qualquer ação mandatada pela ONU, foi de extrema violência, fechando quaisquer pontes ao menor entendimento com as forças opositoras.

Assad é um criminoso de guerra (embora creio o TPI o não tenha indiciado como tal, graças à entrega atempada, com intermediação russa, do seu arsenal de armas químicas), mas algumas das estruturas político-militares que se lhe opõem também não são "flor que se cheire". Em alguns casos, são grupos de exilados que derivam da oposição do tempo do pai do ditador, com uma agenda de interesses cuja legitimidade não é muito distante da que impõe a lei em Damasco.

Durante os primeiros tempos do conflito, a comunidade internacional elegeu como interlocutores anti-Assad figuras que, desde há algumas décadas, se passeavam pelos salões políticos de Londres e Paris. Encheu-os de dinheiro para financiar a liberdade mas, rapidamente, percebeu que esses fundos desapareciam num buraco negro de corrupção e desvio de objetivos.

Mas, mais do que isso: a certo passo, os interlocutores ocidentais dos grupos anti-Assad deram-se conta de que a representatividade efetiva dessa gente deixava muito a desejar. Com efeito, os grupos para-militares no terreno passaram a gerar uma agenda política própria e a comunidade internacional deu-se conta de que tinha de alargar o espetro de interlocutores se, de facto, queria ter alguma eficácia nas suas tentativas de promover a paz. Afinal, os políticos engravatados no exterior representavam bastante menos do que estes.

O "puzzle" de interesses que se reflete na Síria é demasiado complexo para poder ser classificado, de forma maniqueísta, entre "bons" e "maus", muito embora seja evidente que, em tese, a pura preservação do poder ditatorial de Assad não tem a menor sustentação no plano dos princípios. Resta saber se, no plano prático, qualquer solução não tem mesmo de passar por Assad.

No meio de tudo isto, surgiu entretanto o Estado islâmico, que veio somar confusão à confusão, combatendo Assad mas atuando com uma agenda própria, que vai muito para além da Síria. Num terreno que tem um histórico próprio, o problema curdo também se imbricou na questão, à medida que a Turquia era arrastada para o conflito. Ancara utiliza o seu inevitável envolvimento na questão, ao ser vítima da chegada de ondas de refugiados, para uma ação colateral anti-curda.

Dois outros atores regionais aparecem também cada vez mais envolvidos. O Irão, relativamente recuperado pela comunidade internacional desde o seu acordo nuclear, é um aliado objetivo de Assad, mas tem como principal agenda a manutenção do poder do Hezzebolah, cuja influência é determinante no Líbano e, em Gaza, junto do Hammas. Num polo oposto, a Arábia Saudita, que vive numa orfandade geopolítica desde que os EUA iniciaram um evidente "desengajamento" na região, teme agora a nova liberdade de Teerão, gostaria de ver Assad derrotado e está a reforçar o eixo sunita para dias que alguns preveem potencialmente muito perigosos. Dos outros poderes regionais relevantes, só Israel se mantém com um "restrain" notável, apenas aproveitando a conjuntura para fazer ações cirúrgicas junto do Hezzebolah.

Como ficou evidente desde o primeiro momento, a Rússia constitui o principal apoio de Assad, não podendo sequer a aliança objetiva de Damasco com o Irão ser considerada ao mesmo nível. Estas relações datam dos anos 50. As razões russas são de óbvia natureza estratégica. Moscovo está desde há muito preocupado, e com razão, com a desregulação crescente na região, temendo que a influência islamita radical possa vir a alargar-se pelas zonas do Cáucaso do Norte, de onde partiram milhares de combatentes para ajudar a insurgência anti-Assad. Além disso, a Rússia aproveita para não perder as suas apostas logísticas na área, nomeadamente para garantir a preservação da base de Tartus, que ajuda a reforçar a sua atenção à zona mediterrânica, facilitada agora pelo "take over" da Crimeia. A sua resposta positiva ao apelo do governo sírio, formalmente para combater o Estado Islâmico - mas, na realidade, para atacar também os combatentes anti-Assad -, teve a curiosidade de, por algum tempo, transformar a presença russa na região na única que tinha uma legitimidade incontestável: um pedido de um governo ainda tido internacionalnente como legítimo. Esta "nuance", naturalmente pouco sublinhada pelo mundo ocidental, acabou por dar a Moscovo espaço diplomático para se associar com "magnanimidade", no Conselho de Segurança, à resolução que legitimou a presença da coligação que combate o Estado Islâmico.

Termino com uma constatação, que pode não agradar a muita gente: este cessar-fogo não teria ocorrido tão cedo se a ação russa não tivesse equilibrado a situação no terreno. Isso pode ter tido como consequência um "ressuscitar" de Assad, mas, pelo menos, pode vir a calar (algum)as armas por algum tempo. Alguns mortos se pouparão.

segunda-feira, fevereiro 29, 2016

Lúcio Lara (1929-2016)


Em Angola, morreu Lúcio Lara, de que aqui deixo uma fotografia do tempo da guerrilha. Era, a grande distância de todos os outros, a mais histórica de todas as figuras ainda vivas do MPLA. Sem uma ambição que o catapultasse para a ribalta governativa, Lúcio Lara esteve sempre na sombra de Agostinho Neto e, ao que se sabe, quis apenas desempenhar funções no âmbito partidário. Tido como pessoa de extrema austeridade, nunca o seu nome foi associado a qualquer interesse de natureza económica.

Quando, entre 1982 e 1986, vivi em Luanda, trabalhando na nossa embaixada, recordo-me que o nome de Lúcio Lara era tido, com razão ou sem ela, como um pilar da ortodoxia política e do alinhamento pleno com a então União Soviética. Nesses quase quatro anos, apenas por uma vez me cruzei pessoalmente com Lara, numa cerimónia pública, dele obtendo apenas um silêncio levemente sorridente perante a menção que fiz da minha qualidade de diplomata português. Por essa altura, não obstante os esforços do nosso embaixador, António Pinto da França, as relações entre os governos de Luanda e Lisboa mantinham-se muito tensas e o "Jornal de Angola" trazia, com uma frequência quase diária, ataques a Portugal. Todas as tentativas do embaixador de se aproximar de Lúcio Lara, quanto mais não fosse para um gesto de cortesia, não tiveram o menor sucesso.

Lúcio Lara, que nasceu no Huambo e era filho de pai português e mãe angolana, veio viver e estudar em Portugal, até abandonar o país para ingressar na luta armada, criando com Agostinho Neto o MAC (Movimento Anti-Colonial), que daria posteriormente origem ao MPLA. Foi em Lisboa que conheceu e, em 1955, casou com aquela que iria ser a sua mulher, Ruth. Ruth Lara era portuguesa, aqui nascera em 1936, filha de alemães fugidos ao início do nazismo. Quando Lúcio Lara decidiu abandonar o país, para lutar pela independência da terra onde nascera, Ruth acompanhou o marido. Viveu então nas várias paradas por onde a luta anticolonial levou Lúcio Lara (Conakry, Leopoldeville (hoje Kinshasa) e Brazaville). Depois da independência, e quando passou a viver em Angola, contrastando com o empenhamento militante de Lúcio Lara, a sua mulher teve sempre funções de escasso destaque, embora ligada ao MPLA na área educativa.

No ambiente politicamente muito fechado que era o de Luanda do tempo em que por lá vivi, surgiu, a certa altura, aquilo que, à boca pequena, foi considerado um "escândalo" político, cujos contornos demorou algum tempo a determinar. Um intelectual conhecido, Costa Andrade (conhecido como "Ndunduma"), antigo guerrilheiro e biógrafo de Agostinho Neto, havia escrito e encenado uma peça teatral que, supostamente, ironizava com a vida familiar do presidente Eduardo dos Santos. O autor foi detido, o ministro da Educação foi demitido e a mulher de Lúcio Lara, por alguma razão ligada à conceção do espetáculo, foi afastada das funções que ocupava. Lembro-me bem que, à época, todos especulávamos sobre se, desse incidente, decorreriam consequências para o estatuto político de Lúcio Lara. Nada aconteceu e, aparentemente, o episódio nunca afetou a extrema lealdade que Lara manteve para com José Eduardo dos Santos. Ruth Lara viria a morrer em 2000.

Como referi, Lúcio Lara viveu em Portugal. Por cá esteve ligado ao MUD Juvenil e, ao que tudo o indica, ao PCP, tal como Agostinho Neto. Por essa época, terá escrito poesia no jornal coimbrão "Via Latina". Um dos seus pares nessa aventura literária foi o meu colega Luís Gaspar da Silva, embaixador e antigo secretário de Estado, já falecido.

Conta-se um episódio entre os dois, no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo (eram famosos, pela seu poder "abrangente", os abraços de Gaspar da Silva). Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar o amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo  o seu antigo colega da "Via Latina", a revista onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.

Uma última nota me ocorre neste singelo obituário. Que pensaria Lúcio Lara da Angola de hoje?

domingo, fevereiro 28, 2016

Temos de pagar?


Um grupo de aventureiros decidiu este fim-de-semana pôr-se a andar pela serra da Estrela, em tempos de tempestade, para puro deleite e gozo pessoal. Não estavam em nenhuma atividade profissional que os obrigasse a correr esses riscos. Era uma mera atividade lúdica. 

Acresce que, num contacto prévio com a GNR, foram fortemente desaconselhados a levar a cabo a incursão, tendo em atenção o agravamento previsível das condições climatéricas. Estiveram-se "nas tintas" para esses conselhos.

As coisas correram mal e, claro, pediram auxílio à GNR. Mobilizaram-se então meios militarizados, saíram limpa-neves, acomodaram-se os (ex) foliões em morada pública, gastou-se dinheiro do erário paro ocorrer àquele bando de inconscientes.

Temos de ser nós a pagar?

Cansa-me assistir regularmente ao espetáculo de meios militares - homens, helicópteros, navios, etc - e de outras estruturas públicas serem chamados para acorrer, nas montanhas ou no mar, a pessoas que, por puro deleite e gosto insensato pelo risco, se metem em alhadas. 

Será que os contribuintes portugueses têm obrigação de suportar os custos decorrentes da inconsciência desta gente? A lei prevê que o Estado possa ser ressarcido por estes gastos? Alguém sabe responder?

sábado, fevereiro 27, 2016

O tapete

Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, acaba de reconhecer que o cartaz sobre "os dois pais de Jesus" foi "um erro". Marisa Matias e Francisco Louçã terão dito o mesmo.

Louve-se a coragem da líder bloquista. A autoridade ganha-se assim.

Ficam desta forma "sem tapete" político os zelosos defensores daquela patetice, que por aí surgiram. Vão agora criticar Catarina? E Louçã? E Marisa? Ou calam-se?

Talleyrand bem ensinava: "surtout pas trop de zèle"...

Portugal e a sua Justiça

É um bom amigo americano, desde há já alguns anos. Crítico da atual solução de governo em Portugal, país que conhece bem, trouxe-me alguns dados sobre a avaliação de como setores do seu país olham, com muita circunspeção, para o nosso panorama político. Tentei sossegá-lo. 

A conversa, como é sempre a de um jantar em que a única agenda é a celebração da amizade, passou depois para outros temas. Vieram à baila as relações com Angola, ambos curiosos em presumir os impactos do reacender do novo caso político-judicial. De caminho, e a propósito, acrescentou:

- A vossa Justiça é muito estranha! Porta-se com aparente coragem neste episódio angolano e, noutros casos, atua de uma forma que desprestigia abertamente Portugal. Vocês talvez não façam ideia da imagem que o tratamento do caso Sócrates projeta negativamente de vocês, no exterior. Como sabes, eu não gosto nada do homem e até suspeito de que muito daquilo que se diz que ele possa ter feito tenha algum fundamento. Mas não é isso que interessa. Portugal, como país democrático, é imensamente punido pelo modo como o processo do Sócrates está a ser tratado. Vocês colocam-se ao nível do "terceiro mundo", desculpa lá! Tu achas que, num país como a Áustria ou mesmo a Grécia, passaria pela cabeça de alguém ter preso um antigo primeiro-ministro por largos meses e, depois, soltá-lo e mantê-lo sem uma acusação formulada, sem um fim ainda à vista? Além disso, o facto de peças do processo virem regularmente a público, sem que ninguém tenha sido punido ou o acusador público demitido, dá ideia de uma total inimputabilidade dos agentes judiciais. Agora, com esta prisão do procurador, que curiosamente tratava de um dos casos mais sensíveis, como é Angola, a vossa Justiça, desculpa lá, é de gargalhada! 

Pedi mais dois cafés. Para mim, porque precisava, pedi também um whisky. 

Bloquices


Até eu, que sou "de outra freguesia", fiquei desagradado com esta imagem da campanha do Bloco de Esquerda. Nada tenho a ver com a religião católica, mas acho de muito mau gosto estar a mexer com as convicções das pessoas

Não me parece que a causa homossexual fique beneficiada por esta iniciativa, antes pelo contrário. Enfim, mas eles (ou elas), lá pelo Bloco, lá sabem. E, quando houver novas eleições, talvez aprendam a ser mais "crescidinh@s"

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Ato de contrição



Há cerca de um mês, publiquei por aqui uma nota "devastadora" sobre o disco de Sérgio Godinho e Jorge Palma, que reproduzia um concerto feito em Sintra. Um amigo que esteve no espetáculo disse-me, entretanto, que o espetáculo havia sido muito melhor do que o disco.

Na noite de ontem, fui ao Coliseu ver o novo espetáculo da dupla. Foi uma belíssima sessão, muito bem construída, duas horas de excelente música.

Faço aqui um ato de contrição. Repetindo aquilo que Fernando Henrique Cardoso disse um dia, quando chegou a presidente do Brasil, a propósito da sua obra académica anterior, "esqueçam tudo o que escrevi".

As dúvidas da dívida


Com total sinceridade, devo dizer que compreendo que as formações da “esquerda da esquerda”, que apoiam o governo, tenham necessidade de vir a terreiro colocar alguns pontos marcantes da sua agenda ideológica. 

De facto, sendo co-responsáveis pela viabilização de uma solução governativa cujo programa só limitadamente apoiam, é mais do que natural que procurem utilizar a sua conjuntural visibilidade no novo “arco da governação” para sublinhar temáticas que fazem parte do seu caderno reivindicativo. 

Vem isto a propósito da questão da dívida.

Alguns dirão que PCP e Bloco estão a “atirar o barro à parede”. Eu diriam simplesmente que estão a ser coerentes. Da mesma forma que o PS está a ser coerente com o que sempre afirmou: a questão da dívida – e a diferença entre “reestruturação” e “renegociação” não é apenas semântica – não deve ser colocada por Portugal em termos exclusivamente nacionais. 

O único quadro possível para o seu tratamento é o da União Europeia, no âmbito de uma resposta comum. Pretender suscitar autonomamente a questão desencadearia, necessariamente, efeitos incontroláveis de isolamento face aos mercados refinanciadores. 

Contudo, isso não é incompatível com o facto de Portugal dever surgir na linha da frente de quantos se dispõem a estimular a abertura de um debate europeu sobre o assunto, persistindo em tentar revisitar a opção pela mutualização da dívida. Para os credores dos países endividados, a quem será necessário relembrar coletivamente os chorudos lucros que têm vindo a obter com as nossas dívidas, essa seria, aliás, a solução preferível a outros modelos mais tradicionais de “apagamento” escritural.

Nunca esquecerei o espetáculo triste que foi ver o dr. Passos Coelho afirmar um dia, à saída da Chancelaria federal alemã, que opção por esses “eurobonds” deveria ser excluída. Uma coisa é não se conseguir fazer vingar aquilo que seria bom para o país, outra coisa é fazer um mimetismo subserviente com a postura alemã.

Neste domínio, todos nos lembramos, com certeza, da excitação que atravessou o país aquando do surgimento entre nós do “manifesto do 74”, subscrito por personalidades de quadrantes políticos muito díspares. Essas pessoas disseram o óbvio: esta dívida não é pagável e há fortes dúvidas de que possa ser sustentável. O “manifesto” desfez-se na espuma dos dias, muito embora a situação não tenha mudado desde então. Porque as condições externas não foram ainda favoráveis.

Repito: percebo que a questão da reestruturação da dívida seja cara aos partidos mais à esquerda. Mas parece-me muito evidente que seria muito caro para o país segui-la. E, cá por coisas, acho que eles também sabem isto. 

quinta-feira, fevereiro 25, 2016

A gestão dos demónios



Portugal, goste-se ou não, é visto externamente como um país em crise. No plano financeiro, as nossas contas, que estão longe de ser sãs e vivem num evidente limiar de risco, são ainda observadas com sobrolho carregado pelas instâncias que gerem os “barómetros” de avaliação dos nossos compromissos macro-económicos. Não vale a pena iludir o facto de que essas entidades externas estão ainda a fazer o luto de uma administração portuguesa que era em absoluto seguidista ao seus ditâmes e com a qual se sentiam amplamente confortáveis.

Por outro lado, é hoje muito claro que variados meios internacionais olham, com uma perplexidade não isenta de um juízo negativo de valor, para uma solução governativa que inclui, entre os seus apoiantes parlamentares, formações políticas que se afastam do “mainstream” da generalidade dos executivos europeus. Este olhar crítico não se esgota na vertente económico-financeira: embora menos evidente, a questão política de fundo permanece “on the back of the mind” de alguns parceiros mais zelosos.

António Costa deu provas de uma grande habilidade ao conseguir conciliar até agora a observância dos compromissos europeus essenciais no domínio financeiro com a satisfação do caderno reivindicativo dos seus apoiantes e – o que é menos sublinhado – com a necessidade de dar resposta ao cumprimento das determinantes do Tribunal Constitucional. Há quem acuse esta sua agenda de ser ideológica. E depois? A outra “agenda”, a aposta austeritária, não o era?

O verdadeiro teste que este governo tem perante si é o da eficácia concreta das opções que fez. Ir “contra o vento” é sempre uma decisão corajosa, mas a justeza da decisão está menos nessa audácia, ou na satisfação dos prosélitos pelo gesto assumido, e muito mais na habilidade em não se deixar abater por ele.

Mas também é claro que o “clima” externo não é imutável. Entendo, aliás, que Portugal tem hoje uma interessante responsabilidade no plano europeu. É que se a fórmula tentada por António Costa para tornear o “tem de ser assim” tradicional viesse a ter sucesso, o nosso país poderia vir a tornar-se num “case study” que não deixaria de ter impactos significativos no próprio debate europeu em torno da abordagem dos desequilíbrios macro-económicos.

Uma questão me parece, contudo, estar por resolver.

Deliberadamente ou não – e sou adepto da segunda leitura – este orçamento e o discurso político que o acompanha surge pouco “business-friendly”. Estimular o crescimento pela procura será sempre uma opção com escassa sustentabilidade nos seus efeitos se, em paralelo, não for feito um esforço bem sucedido para a captação de investimento produtivo, interno e externo, em especial em face do quase residual investimento público que se prevê.

António Costa já demonstrou a sua determinação em observar os compromissos financeiros europeus, não obstante os partidos apoiantes do governo terem, nesse domínio, uma perspetiva muito diversa, quer em relação às metas dos tratados, quer no tocante às políticas europeias, nomeadamente ao euro.

Ora é decisivo que o primeiro-ministro e o governo consigam dar provas concretas que não são reféns da política de hostilidade à iniciativa privada que está na matriz identitária dos seus apoios políticos. Não é só a credibilidade dos socialistas e a sua coerência perante o seu passado que está em causa. Também por aqui passa parte importante da desmontagem dos “demónios” desencadeados em torno da presente solução governativa, na ordem interna e externa. Espero que o governo tenha disto consciência clara.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

A carreira e a fonética (2)

- Vai ali o Draga. Você conhece-o? 

Estávamos a olhar para o pátio, das janelas das antigas Económicas, nessa segunda metade dos anos 70.

Eu tinha acabado de entrar para o MNE, há muito pouco tempo. Quem me colocava a questão era um conselheiro já antigo, um homem com graça e que dava a confiança aos colegas mais novos de os aculturar às coisas da "casa".

Não, eu não sabia quem era o tal Draga, um cavalheiro com ar distinto, que parara para falar com alguém.

- É embaixador. Na verdade, ele não se chama Draga, mas é assim que é conhecido.

- Porquê? Então como é que ele se chama?

- Chama-se Braga Condé...

A carreira e a fonética

O cenário era um hotel de uma cidade de um país europeu, onde tinha lugar um evento, em que Portugal participava, com uma delegação presidida por um membro do governo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

O embaixador português naquele país tinha-se deslocado da capital para integrar o grupo. Estávamos todos no café, já depois de jantar. 

Já não sei bem a propósito de quê, veio à conversa o nome de um diplomata nosso colega, na altura creio que já reformado, de seu nome Serpa Neves. O membro do governo nunca o chegara a conhecer e inquiriu algo sobre ele.

Vi que o embaixador ficou atento ao que se dizia. A certa altura, com um sorriso, deixou cair na conversa:

- Esse homem, se fosse de Viseu, podia ter tido uma carreira internacional fulgurante.

Ficámos todos surpreendidos. Viseu?

- É que, se fosse de Viseu, seria "sherpa"...

"Sherpa" é o nome dado aos colaboradores diretos dos chefes de Estado e governo que prepararm as reuniões internacionais a alto nível, como o G8 ou o G20.

Toda a delegação portuguesa riu com a graça do embaixador. Com uma exceção: o chefe da delegação. Ficou sério e o convívio da noite acabou praticamente por ali. E não era de Viseu, podem crer!

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Um abraço para o Económico


Há já alguns meses que deixei de escrever para o "Diário Económico", o que fiz com regularidade, durante bem mais de um ano. Não houve qualquer dissídio que tenha levado à minha saída, apenas a minha vontade de parar por uns tempos na imprensa económica. E experimentar, meses passados, outros terrenos nesse domínio.

Mas, em termos humanos, o "Diário Económico" sempre me tratou bem. Fui acolhido como um "deles", por toda a gente com quem contactei naquela casa. Só deixei amigos por lá.

E porque são amigos e porque vivem um momento terrível em termos da sustentação financeira do projeto, quero deixar-lhes aqui um abraço de solidariedade e os votos da melhor sorte possível. 

terça-feira, fevereiro 23, 2016

"Interesting times"

Há um curioso tropismo que faz com que a chefia municipal de Londres, criada em 2000, tenha sempre caído em mãos mais ou menos radicais, ainda que de sinal contrário.

Durante oito anos, uma figura da ala esquerda do Partido Trabalhista, Ken Livingstone (o "Red Ken") ocupou o cargo de "mayor". Livingstone, que tinha um histórico de fazer a vida negra às lideranças trabalhistas, não "desiludiu": Tony Blair soube-o bem.

Desde 2008, um conservador heterodoxo, Boris Johnson, é o "maverick" de serviço. O primeiro-ministro David Cameron não conseguiu assegurar o seu apoio à campanha pelo "sim" à Europa e, dessa forma, atendendo à sua imensa popularidade, Johnson acaba por converter-se no seu principal obstáculo ao sucesso no referendo. E, se Cameron perder o sufrágio, Boris Johnson será, ao que tudo indica, o próximo primeiro-ministro do Reino Unido - ou do que dele restar, depois da mais do que provável secessão da Escócia. 

Enfim, "interesting times", como Hobsbawm deu por título à sua biografia (que vivamente recomendo), embora referindo-se a tempos em que a turbulência europeia era de uma outra natureza.

O Rossio, a Betesga, Guterres e Barroso

O exercício televisivo ontem conduzido por Paulo Dentinho e António José Teixeira, com a mútua entrevista a Durão Barroso e António Guterres, ficou aquem daquilo que poderia ter sido. "Meter o Rossio na Betesga" é um exercício difícil e a ambição foi excessiva. 

Desde logo, como aproveitamento para lançamento da revista XXI, a iniciativa falhou. Salvo uma breve menção no início do programa, a publicação "desapareceu" muito cedo como pretexto para a conversa. E é pena. Havia boas questões que alguns dos textos da publicação poderiam ter suscitado (e claro que não falo do meu, cujo tema - Schengen - não era de todo relevante para o debate). Assim, a meu ver, a conversa com as duas personalidades portuguesas com maior visibilidade internacional em tempos recentes acabou por não ser algo muito estimulante. 

O antigo presidente da Comissão Europeia assumiu uma postura que poderíamos chamar de "euroentusiasmo" correto, isto é, optou por sublinhar os inegáveis feitos da integração, pretendendo esconder que, não obstante estes, a Europa está num estado caótico, com divisões internas muito fortes e sem um sentido de direção. Remeter toda a responsabilidade para os Estados membros foi também uma forma de iludir as responsabilidades de quem teve nela funções executivas relevantes, as quais, se diferentemente exercidas, talvez tivessem podido atenuar alguns dos problemas atuais.

António Guterres tinha um problema nesta conversa. É óbvio que tem uma leitura muito crítica da situação internacional e da partilha de responsabilidades que incumbe aos vários atores políticos pelo estado de coisas em que vivemos. A sua experiência no terreno, ainda mais recente do que a de Barroso, deu-lhe elementos muito concretos para, se quisesse, "chamar os bois pelos nomes". Mas não pode fazê-lo, num tempo em que é obrigado a fazer a quadratura do círculo, com vista a conseguir apoios à sua pretensão à ONU, procurando harmonizar à sua volta apoios contraditórios.

Barroso defendeu o seu passado, Guterres o seu futuro. Valeu a pena ouvir? Confesso que me soube a muito pouco. Sabendo-se à partida que o contraste de visões seria mínimo, como se verificou, talvez duas mesas redondas separadas em duas ocasiões diferentes, com vários interlocutores a colocarem uma bateria de questões a cada uma das personalidades tivesse tornado esta iniciativa mais viva.

Uma última nota. Na assistência, estava Jaime Gama. Embora sabendo-se ser isso impossível, teria a maior das graças, podem crer!, ter ouvido a sua opinião sobre o espetáculo a que assistiu.

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Déjà vu

Foi hoje, passava um minuto da uma hora da tarde. Eu ia atrasado para a reunião na FCSH, da Universidade Nova, na avenida de Berna. Entrei com o carro para o pátio da Faculdade (privilégio de quem é membro do Conselho da Faculdade). Um aluno ia a atravessar e eu travei a fundo. A culpa era toda minha. Pedi desculpa e fui estacionar.

Aquele episódio, sem consequências, ficou a bailar-me na memória, não percebi então bem porquê. 

Duas horas depois, antes de ir buscar o carro, "caiu a ficha", como dizem os brasileiros.

Havia sido há 43 anos, em 1973. Eu entrei naquele mesmo portão, a guiar um Fiat 128. Não tinha carta, confesso! O carro não era meu, era emprestado. Ali era o chamado "Trem Auto", onde se "tirava a carta" militar. Era o que eu ia fazer. À minha frente, já dentro do pátio, atravessou-se um Alferes. Travei a fundo, pedi desculpa, ele olhou-me de soslaio. Eu era apenas Aspirante, como se via pelas divisas.

Fui para a sala de provas. O Alferes entrou. Era o mesmo! E ia ser o meu examinador!

- Você vinha a guiar o carro? Tem carta civil?

- Não, não tenho...

- Essa agora! E então anda a guiar sem carta?

- É verdade! Trouxe o carro de perto...

- Pois, pois! Bonito!

Ele tinha toda a razão. Temi o pior. Mas passei, sem dificuldade.

Um dia, já na "peluda" (isto é, depois de fazer o serviço militar), lembrei esse episódio ao Alferes examinador. Chamava-se Leal Loureiro, foi uma grande figura da edição portuguesa, fundador da "Afrontamento". A última vez que nos vimos foi na "Bucholz", que ele dirigia. Morreu há alguns anos.

Lembrei-me hoje dele, por este simples episódio da vida.

ps - embora o crime já tenha prescrito, não acredito que venha a ser absolvido em todos os comentários.

O acordo britânico

Eu estava em Londres e lembro-me muito bem da frase vitoriosa de John Major, no seu regresso da negociação do Tratado de Maastricht: "Game, set and match!". Major tinha então conseguido o "opt-out" do protocolo social e da moeda única. O cinzento líder que os conservadores britânicos haviam escolhido depois da defenestração de Margareth Thatcher, para evitar Michael Heseltine, havia obtido o que considerou ser mais um passo no estatuto diferenciado de que o Reino Unido goza perante as instituições europeias. E era verdade!

Alguns leitores mais académicos ou mais ingénuos das realidades da Europa ficam surpreendidos com esta singularidade e, acima de tudo, com a complacência com que os outros parceiros acabam por admitir, ano após ano, este tratamento especial dado a Londres. Ora as coisas são muito simples: a União Europeia é um clube de harmonização de interesses e é do evidente interesse dos restantes 27, e da União como um todo, que o Reino Unido permaneça no clube. 

A bem dizer, não há negociador europeu que não tenha histórias de ter ficado "pelos cabelos" com os britânicos. Com toda a certeza, nos dias que correm, ninguém à volta daquela mesa oval de Bruxelas tem já a menor paciência para aquele ar de filho-família arrogante de Cameron, num "boyish style" com ar de uma "gravidade" estudada, por onde perpassa um descaso óbvio pelas coisas dos outros, assumindo despudoradamente que quer para si "o melhor dos dois mundos". Mas a verdade é que lá vai levando a sua avante, porque todos reconhecem que o preço de uma saída britânica teria um impacto insuportável para uma União em estado cataléptico, com crises a rebentar por todos os lados. Perante este cenário, ceder um pouco aos britânicos terá sido considerado o menor dos males. 

A Donald Tusk e a Jean-Claude Junker terão sido dadas ordens, por quem manda na "casa", para "draftar" um compromisso onde, para além de alguma retórica meramente adjetiva, houvesse uma compreensão pelos custos sociais da imigração para o Reino Unido - é que não é por acaso que os imigrantes se juntam aos milhares em Calais e não na fronteira do Caia...

É claro que alguém teria de pagar estas cedências e, como se viu e já se estava à espera, acabou por ser o elo mais fraco, isto é, os países emissores de migrantes pobres, que tiveram de aceder a aceitar que os abonos de família dos seus filhos deixados no país de origem passem a ser dimensionados em função do seu nível de vida. A solução, dizem ironicamente alguns, é levá-los para o Reino Unido... 

Como se viu durante as longas horas de Bruxelas - em que praticamente só houve negociações bilaterais, como é de regra neste tipo de cimeiras dramatizadas -, a Alemanha foi muito discreta (Tusk devia ter as instruções de Berlim sobre as "red lines") e a França apenas procurou proteger os seus poderes na Eurozona. Dos "grandes", a Itália tem hoje mais crises internas com que se entreter e a Espanha não existe na Europa, nos dias que correm.

Restava assim a Polónia, que acabou por sofrer a dupla humilhação de ter de aceitar um compromisso que afeta claramente os seus interesses nacionais (acabando por funcionar como negociador em nome do "grupo de Visegrado", da Roménia e da Bulgária), apresentado e promovido por um seu antigo primeiro-ministro (Tusk), alguém que é uma "bête noire" para o atual poder em Varsóvia. Estou curioso para ter notícias do regresso da PM Beata ao seu país...

A Europa pode dizer que deu a Cameron alguns (serão suficientes?) argumentos para tentar ganhar o referendo em que a sua própria irresponsabilidade o meteu. Muitos são meramente semânticos e representam, de facto, muito pouco. Aí pode dizer-se que esteve bem. Porém, ao deitar mais achas na fogueira da singularidade do Reino Unido, acabou por escrever mais uma página da Europa "à la carte" em que o projeto integrador se está a transformar.

As limitações aos direitos sociais dos imigrantes são importantes, embora muitos continuem a assobiar para o ar como se o não fossem. Alguém já pensou se, um destes dias, um qualquer Estado, à luz da exceção britânica, que lhe permite reduzir os abonos de família em função do nível de vida do país onde são recebidos, vier a sugerir que também as pensões, que são pagas no fim de uma vida de trabalho num Estado membro mas gozadas noutro Estado, devem passar a ser calculadas com base no custo de vida do local onde o reformado usufruiu dessa reforma, eximindo-se, por exemplo, aos regimes fiscais mais gravosos que teria de suportar no país que lhe paga? Admirem-se!

Isto vai bonito, vai...

domingo, fevereiro 21, 2016

Ainda a esquerda e a direita

Ontem, um certo opinador cujo nome não importa para o que aqui me traz, referia na sua coluna que, para uma geração que hoje tem menos de 50 anos, é praticamente irrelevante a memória da ditadura portuguesa, período em não fez a sua vida, pelo que não identifica minimamente com a luta pela liberdade quantos, revindicando-se das diversas formas de socialismo, durante esse período combateram o Estado Novo. O dito escriba, talvez porque sabia isso chocante para parte significativa da memória coletiva, não foi ao ponto de desprezar expressamente o 25 de abril, mas andou lá por perto.

No texto, o autor justifica ser de direita (diz também ser liberal, mas isso é irrelevante para o que importa) pelo facto da imagem que criou da luta pela liberdade estar precisamente associada ao combate contra a esquerda, contra o socialismo e contra o comunismo, seja no plano internacional, seja no quadro interno, nomeadamente naquilo em que este teria procurado contribuir para a passagem da "África portuguesa" (sic) para esse campo.

Quem é de esquerda tenderá a olhar com alguma sobranceria para esta análise. Mas julgo que faz mal, porque, no seu simplismo maniqueu, ela ajuda a explicar grande parte da atitude de uma certa geração que por aí anda e que, sendo embora fortemente minoritária, tem vindo a ganhar espaço nos media, inicialmente impulsionada pelas redes sociais, e é hoje muito adubada pela doutrina das escolas económicas do "pensamento único" de algumas universidades de sucesso.

Da mesma forma que, numa sociedade como a francesa, já não passa pela cabeça de alguém de esquerda utilizar o fantasma do colaboracionismo ou de Vichy para contestar as ideias da direita democrática, a geração que "fez" o 25 de abril e que se revê em alguns dos valores da esquerda tem rapidamente que saber descobrir um novo discurso para fazer frente à direita. Apodá-la de "fascista", como às vezes por aí se ouve, é de um simplismo ineficaz e redutor. O Estado Novo já lá vai e é pateta pensar que alguém que tem vinte e tal anos ainda se vai emocionar com o Tarrafal ou a "estátua", entre dois "shots" nos bares de Santos ou da Galeria de Paris.

O combate contra a direita pode e deve fazer-se no terreno das ideias, centrado nas políticas de hoje, mas, essencialmente, só pode ter sucesso se tiver eficácia concreta na vida das pessoas. A esquerda, para conservar o poder e justificar democraticamente a razão por que pode exercê-lo, deve conseguir compatibilizar uma forma de vida que seja confortável para largas faixas da população, que se sentem à vontade e gostam de usufruir do modelo da sociedade de mercado que é hoje o "template" comum da Europa, e que marca inexoravelmente o seu quotidiano e os seus legítimos hábitos de consumo e lazer, com uma gestão eficaz da economia, da qual seja possível extrair recursos fiscais que permitam suportar políticas públicas que reforcem a "safety net" social e promovam oportunidades para todos. 

A esquerda só será vitoriosa se conseguir tornar as pessoas felizes, o que passa por conseguir mostrar que as suas políticas são as mais capazes de democratizar o bem-estar, para recriar um ambiente de solidariedade intergeracional assumido como valor ético, para tornar a luta contra a desigualdades um imperativo da consciência coletiva, para gerar uma sociedade onde o quadro social de nascença não seja uma determinante imutável para o resto da vida. A esquerda, se quer derrotar a direita, no campo democrático que é o deste país e da Europa em que estamos, deve conseguir afirmara-se, simultaneamente, como a mais eficaz promotora e criadora de riqueza coletiva e como a força paladina da igualdade de oportunidades, o que tem como contraponto saber conviver com o mérito e o sucesso individual, sem alimentar um discurso de inveja e tensão interclassista. Se o não conseguir fazer, a direita regressará rapidamente ao poder.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...