Há mais de uma
década, escrevi no "Diário de Notícias" este artigo, quando ainda não havia Estado islâmico, quando a França não tinha feito a sua (meritória) intervenção do Sahel, quando na Líbia não tinha sido destruída como Estado. Lembrei-me desse texto hoje.
A reacção da comunidade internacional perante actos terroristas permanece marcada por um debate ideológico que, sendo importante como exercício político, reduz forçosamente o consenso em torno das medidas para lhes fazer face.
Uma certa
direita abespinha-se quando alguém pretende trabalhar as raízes do terrorismo,
sejam os quadros de exclusão social e política em que o mesmo prospera, sejam
os conflitos regionais que ajudarão a potenciar a radicalização. Nela se
encontram os que reagem belicosamente quando alguém coloca em causa a bondade
da intervenção no Iraque ou questiona as conquistas estratégicas que
Washington tem feito sob a capa da luta anti-terrorista. Para esses polícias do
espírito, arguir com a injustiça da situação palestiniana ou com as
ilegalidades face ao Direito Internacional, como elementos que têm que ser
avaliados no quadro dos fundamentos da vaga terrorista, significa, de imediato,
colocarmo-nos no universo da justificação, que o mesmo é dizer, ajudar a causa
dos terroristas. Este “terrorismo” ideológico deve ser denunciado, sem
contemplações, como um novo maccarthismo, porque as situações de
injustiça ou de ilegalidade não deixam de o ser apenas pelo facto de terem sido
recuperadas por uma agenda radical.
Alguma
esquerda, por seu turno, numa obstinada cegueira anti-americana, esquece o
carácter retrógrado da mensagem do islamismo radical, a imposição da sua
mundividência que está subjacente às motivações terroristas e afasta, com uma
facilidade pouco abonatória, o frontal questionamento face à natureza bárbara
dos actos indiscriminados que ciclicamente atingem civis inocentes. Numa
ambiguidade imperdoável, essa mesma esquerda esquiva-se a condenar liminarmente
os actos terroristas, como que temendo que, ao fazê-lo, pudesse pôr em causa a
legitimidade de outras reacções de natureza violenta, em casos extremos de
lutas de libertação. Ao colocar a questão palestiniana, ou a presença
estrangeira no Afeganistão ou no Iraque, como a directa essência justificativa
do problema, esta doutrina parece esquecer que, mesmo que tais questões hoje se
resolvessem, por um milagre que ninguém espera, as fontes da instabilidade
islâmica radical iriam continuar, porque já adquiriram uma dinâmica própria que
ultrapassa tais elementos conjunturais. Além disso, o facto de alguém se
colocar contra os EUA, por muito desfavorável que possa ser a imagem da sua
administração, não lhe confere um automático certificado de honorabilidade ou
atenua qualquer culpabilidade, pelo que este maniqueísmo primário se torna
igualmente inaceitável.
As recentes
acções terroristas com alvos indiscriminados configuram um figurino novo de
desestabilização, diferente das acções selectivas que predominaram no passado.
E suscitam a grande questão que todos somos chamados a responder: estamos ou
não dispostos a dar luta, política e prática, a uma agenda islâmica de assalto
radical às sociedades seculares, que são a forma organizada de vida em que queremos
assentar o nosso futuro?
Para além da
necessidade de medidas de prevenção e combate aos actos terroristas, e mesmo
com vista a conferir-lhes legitimidade, é importante chamar a racionalidade a
terreiro e procurar saber se, à esquerda e à direita, estamos preparados para
desenvolver uma acção política de promoção dos valores das sociedades laicas,
das formas de expressão democrática para o exercício do poder político, de
respeito pelo Estado de direito, de defesa dos direitos humanos
internacionalmente consagrados, nomeadamente os direitos das mulheres e das
minorias.
Esta é a
questão essencial, para cuja resposta é também necessário que se ouça, mais
alto do que se tem ouvido até agora, a voz do islamismo moderado, aquele que
consiga conciliar o respeito por uma religião que é promotora de elevados
valores éticos com a preservação das regras básicas de convivência e
tolerância, próprias das sociedades modernas.
Este é o único
debate ideológico que tem uma legitimidade incontroversa. Não perceber isto é
contribuir para a nossa divisão e a nossa hesitação perante um adversário que
põe em causa todos os modelos de sociedade onde hoje cabe, e queremos que
continue a caber, a salutar confrontação política que só a democracia nos
permite.