Há já bastantes anos, acompanhei o então presidente Jorge Sampaio numa visita oficial à Hungria. No curso dessa deslocação, Sampaio teve um encontro com o primeiro-ministro, Viktor Orbán. Foi uma conversa de cerca de meia-hora. A Hungria ainda não era membro da União Europeia, embora já o fosse da NATO, desde há escassos meses.
Não vem aqui para o caso o teor detalhado dessa conversa, quando estavam iminentes os ataques militares à Sérvia, por virtude da tragédia que se vivia no Kosovo. Passei muitos anos na vida diplomática e, fruto dessas andanças, ouvi uma imensidão de políticos estrangeiros em registo privado. Mas recordo-me sempre - e conto isto a amigos, desde há muito - que, ao terminar essa conversa entre Orbán e Sampaio, estava um pouco perturbado. Não apenas por algumas coisas que ele então disse, pela forma como as disse, mas também pela maneira como nos olhava ao dizê-lo. Ambos saímos desse encontro - e estou certo que Jorge Sampaio tem isso bem presente - com um sentimento estranho, cujo fundamento confirmámos noutras conversas, nesses dias de Budapeste.
Sempre fui um defensor do alargamento da União Europeia mas, nessa tarde na Hungria, dei-me conta, não sei se pela primeira vez, que alguma da "nova Europa" que aí vinha trazia consigo algo de diferente, que tinha bastante menos a ver connosco, com a nossa forma de estar no mundo, do que era habitual entre aqueles que connosco se cruzavam nos corredores de Bruxelas.
Várias vezes entrei em choque com amigos dos países bálticos ou outros vizinhos da Rússia por virtude do modo como olhavam para Moscovo. Nessas conversas, contudo, eu podia perceber o trauma profundo de países que haviam estado sob a tutela soviética e até justificar, nas suas atitudes, alguma irracionalidade anti-russa, mais recentemente ajudada pelo manifesto autoritarismo ameaçador de Putin. Mas com Orbán era diferente. Era outra maneira de equacionar o poder, era um sentimento de afirmação nacional que, mesmo que implicitamente, como que tocava alguns fantasmas indizíveis do passado do centro do continente.
O tempo veio a dar razão a esta minha perceção. Todos assistimos, durante os últimos anos, ao progressivo desprezo de Orbán pelas regras de separação de poderes na Hungria, à produção legislativa que, no limite, foi cerceando direitos, numa "mainmise" progressiva do aparelho político-institucional, no sentido da limitação da alternância do poder. A Europa, salvo algumas posições do Parlamento Europeu e pontuais reações da Comissão, passou a conviver, aparentemente sem pejo, com um parceiro que, dia após dia, se vai afastando do património de valores em que se funda a comunidade a que todos pertencemos - e que a Hungria se comprometeu a respeitar na sua adesão. Mas nem por isso Orbán deixa de figurar, sorridente, entre os seus pares, nas fotos de família dos Conselhos europeus. E os outros sorriem para ele, o que é bem mais grave.
Quando hoje penso na humilhação que fizémos passar ao governo austríaco, em 2000, por ter feito uma aliança de incidência governamental com um grupo de extrema-direita, e comparo com o que se vive em governos desta Europa de 2015, quase que me apetece pedir desculpa pela pressão a que então sujeitámos Viena. E quando observo o inqualificável comportamento de Viktor Orbán e das autoridades húngaras face aos refugiados que, em desespero, pretendem atravessar o país para chegaram a uma Alemanha que, com grande dignidade e generosidade, admite recebê-los, tenho a sensação de que não faço parte da mesma Europa que esse cavalheiro.
Há dias, Orbán proferiu uma frase que melhor define o seu espírito "europeu". Perguntado qual era a diferença entre a "cortina de ferro" do tempo soviético e o "muro" de 175 km que mandou construir entre o seu país e a Sérvia, disse isto apenas: "O primeiro era contra nós, este é a nosso favor".