segunda-feira, dezembro 04, 2017

Eurogrupo, mentiras & Mendes

Cada dia que passa, tendo a ser muito cuidadoso quando leio uma notícia mais ou menos surpreendente. De imediato, verifico qual o órgão de comunicação social que a difundiu, porque, cada vez mais, a verosimilhança da informação depende muito, aos meus olhos, da credibilidade de quem a transmite. Estou mesmo convicto de que, no mundo de "fake news" que aí anda, esse vai ser o critério e o caminho do futuro.

(Regressamos, de certo modo, ao velho método de classificação de notícias que aprendi nas informações militares, que hierarquizava as fontes de A a E, em ordem decrescente de credibilidade da fonte, e as notícias de 1 a 5, conforme a sua decrescente verosimilhança. Um dos meus chefes dizia que A1 era uma notícia que nos era dada pela nossa mãe, que um E5 era uma "boca" do maior mentiroso que conhecêssemos e que "o nosso dia-a-dia é feito de C3". Tinha razão.)

Vem isto a propósito de Marques Mendes não ter acreditado na notícia que o 'Expresso" publicou no dia 1 de abril, sobre o facto de Mário Centeno ter sido sondado para a presidência do Eurogrupo. Eu também li a mesma notícia, mas vi quem a assinava: Luísa Meireles. Fiquei perplexo. A mim, tal como Marques Mendes, também me custava muito a crer que Centeno pudesse algum dia vir a presidir àquele órgão, mas a circunstância da notícia estar assinada por Luisa Meireles criava-me um conflito interior. É que eu conheço muito bem o rigor da jornalista, que sabe do que fala e não difunde "bocas". Se ela escrevia aquilo é porque havia algo de sólido por detrás. Ainda pensei telefonar-lhe, mas ela nunca revelaria uma fonte. Porém, para mim, independentemente da fiabilidade da fonte de Luisa Meireles, a hipótese continuava a ser implausível, e vivi até ao fim agarrado a esta posição. Que estava errada. Ainda bem.

domingo, dezembro 03, 2017

A cor do Filipe


O Filipe tinha uma figura pequena, magra, com um permanente e simpático sorriso de boa pessoa que era. Filho de um dos muitos irmãos do meu avô e, com um rancho de rebentos, ficara a viver em Bornes de Aguiar, dedicado à pequena agricultura.

Quando, pelos Verões, na Páscoa ou fins-de-semana, o meu avô, no seu tropismo eterno pela terra onde nascera, regressava de Vila Real a Bornes, rara era a noite em que o Filipe não surgia pela Casa do Pereiro, para dois dedos de conversa com o "tio doutor". Nos bancos da varanda à volta do pátio ou no escano da lareira, o Filipe atualizava então o meu avô sobre a vida da aldeia, desde as colheitas da Quinta da Pala, onde o Filipe vivia, a caminho de Eiriz, até às saídas para a tropa ou para a emigração, que iam deixando a aldeia cada vez mais cheia de velhos e viúvas de vivos.

Lembrei-me ontem do Filipe, o Filipe da Pala, como dizíamos. Isso acontece sempre que visito o cemitério de Bornes. Na sua campa, junto da qual sempre passo, com fotografia ligeiramente sorridente, está a data da sua morte, que é precisamente a do meu casamento.

O Filipe tinha uma imensa paciência para mim, que, desde a infância, passava por Bornes curtas temporadas com os meus avós. Levava-me a passeios de conversa pelo Fundo de Vila ou pelo Porto, uma zona que ia dar ao Cruzeiro, no coração da aldeia, junto à capela. 

Era no Cruzeiro que se situava uma das perdições do Filipe: a "venda" do Chico. Naquela casa, onde se vendia um pouco de tudo, propriedade de um outro primo, o Filipe passava de quando em vez, para beber uma "pinga" e ficar à conversa com a gente lá da aldeia. Às vezes, algum exagero nas doses ruborizava-lhe as faces, mas, que eu saiba, nunca se lhe alteravam os espíritos de forma dramática. Mas foi assim que, numa noute, chegou a casa do meu avô, no final de um jantar. Recordo-me tão bem!

O meu avô era um compulsivo inventor de cenas divertidas e, numa dessas noites, o seu sobrinho Felipe, de quem ele muito gostava, acabou por ser a vítima incauta de uma dessas partidas, que ficou para sempre na memória alegre da família. 

Apelando ao conhecimento vinícola do Felipe, o meu avô pediu-lhe a opinião sobre um vinho tinto de que alguém lhe tinha oferecido um garrafão: "Ó Filipe, tu que sabes de vinhos é que me podias dizer o que é que achas desta "pinga", que me trouxeram de Vila Pouca". E encaminhou-se para um armário, adiantando já que o tal vinho lhe parecia "demasiado encorpado". Mas o sobrinho é que ia dizer de sua justiça.

O Filipe, que, àquela hora e naquela noite, já tinha ligeiramente mais do que a sua conta, ainda pretextou falta de conhecimentos para estar à altura da responsabilidade da tarefa que o tio Francisco lhe destinava, mas lá acabou por aceder a dar o seu parecer, não fossem serem postos em causa os seus créditos de alegado conhecedor. O meu avô trouxe-lhe então um copo cheio, que o Filipe começou por levantar e olhar à transparência de uma lâmpada, decretando: "Lá boa cor tem ele!"

Depois, inclinou o copo para beber e - surpresa das surpresas! - nada lhe entrou na boca. O copo continuava cheio mas o seu conteúdo não deslizava. Pudera!, era geleia, feita pela minha avó, que a distribuíra por vários recipientes, entre os quais alguns copos sem pé! O Filipe, perplexo, olhava o copo, com os circunstantes ainda sem entenderem o que se estava a passar, com o meu avô a explodir de riso contido. Levemente toldado como estava, e não tendo ainda identificado o conteúdo do copo, saiu-lhe então uma frase que ficou nos nossos anais familiares: "Até hoje, nunca nenhum se me tinha negado!"

sábado, dezembro 02, 2017

O meu amigo reacionário

Tive e tenho vários amigos reacionários. Nem todos saudosos de Salazar, da sua ordem ou do império, alguns aceitando, mais ou menos a contragosto, que o direito de voto seja igual para um sábio ou um ignorante, outros ainda clamando pela ilegalização dos comunistas e por um país musculado, com pena de morte e tudo. Gente adepta de muitas outras coisas desse jaez, com uma agenda feita de nostalgia de um outro Portugal, que eu detesto. Ainda há pessoas dessas e, por muito que isso possa parecer surpreendente, tenho amigos desses. 

O Álvaro não era exatamente assim. Álvaro Magalhães dos Santos era um homem urbano, integrado na ordem democrática. Mas era um refinadíssimo reacionário, um direitolas “até dizer chega”. Ontem, durante um jantar geracional, falámos bastante dele.

Em Vila Real, onde nasceu, foi professor e dirigiu a casa da Mocidade Portuguesa, o que diz já alguma coisa. Licenciado em Germânicas, saltaria, anos mais tarde, do ensino para a área da publicidade. Andou pelo jornalismo, onde exerceu escrita humorística. Alguns se lembrarão do “Vicente Gil”, que enchia uma página da Capital. Escreveu no Diabo (“where else?”) e no Correio da Manhã, onde se especializou em imaginativos “balões” com graças políticas nas fotografias. Para grande pena minha, que não obstante a diferença de idades tinha com ele uma grande proximidade pessoal, o Álvaro desapareceu há cerca de uma década. Ainda hoje me faz falta como amigo.

Era um contador de histórias notável. O seu reportório parecia inesgotável, com memória rara para anedotas, que dizia com imensa graça. Passei horas a ouvi-lo, a ele que sabia iludir, como ninguém, o mundo que nos separava nas ideias políticas.

Um dia relatou-nos um episódio curiosíssimo, ocorrido em Londres. Ele, que fora professor de inglês, tinha um gosto especial pelo mundo anglo-saxónico. Londres era a “sua” cidade e, quando por lá vivi, “asilou” algumas vezes na minha casa, como já o havia feito na Noruega. (Um parêntesis para dizer que o Álvaro era, muito provavelmente, o mais elaborado forreta que alguma vez conheci). Mas o episódio tinha sido bem antes desse tempo.

O Álvaro comprara um dia para um filho, no Hamleys, uns brinquedos, nas vésperas de um Natal. À chegada ao hotel, deu-se conta de ter deixado o saco no táxi, como às vezes nos sucede. Não tendo referências do transporte, com o avião a partir horas depois, deu por perdida a compra, o que, conhecido o seu apego ao dinheiro, o deve ter deixado furibundo. Mas era a vida!

Uns anos mais tarde, também num táxi londrino, meteu conversa com um motorista e contou o episódio, que devia ser traumático para quem era tão cioso da sua bolsa. O homem perguntou-lhe se tinha recorrido ao serviço de “lost & found” dos táxis. O Álvaro retorquiu que não, porque partira quase de seguida para Portugal. O taxista disse da existência, algures em East London, de um grande armazém onde eram recolhidos objetos deixados no “black cabs”. Quem sabe se o saco perdido do seu cliente não estaria por lá...

O Álvaro foi a matutar naquilo para o hotel. A compra não havia sido muito cara, mas a possibilidade de a recuperar ficou a borbulhar na sua cabeça. Ir de taxi ao tal armazém era impensável: ficaria talvez mais caro do que o preço do brinquedo. Decidiu, finalmente, ir de metro, não obstante nevar sobre Londres por esses dias. A jornada ia fazer-lhe perder uma tarde na National Gallery (onde a entrada era gratuita...), mas paciência!

Da saída do metro até ao tal armazém ainda foi um bom bocado, sob a neve que caía e o encharcado desagradável pelos passeios. Mas ele estava determinado. O armazém tinha um ar exteriormente algo decrépito. Tocou uma campaínha, atendeu-o um rapaz com um ar de “punk” que lhe indicou um balcão, por detrás do qual havia uma quantidade impressionante de estantes, com caixas. Imaginou o mundo que por ali estaria. Esperou um bom bocado, até que lhe apareceu um tipo corcunda, de óculos muito graduados, com sotaque irlandês.

O Álvaro tinha-se munido da data em que, cerca de três anos antes, viajara no táxi no qual se esquecera da prenda para o filho. Com calma, mas com método, viu o homem procurar um de entre vários livros de registo, de formato longo, estendendo-o sobre o balcão. Notou que estava todo manuscrito, com várias indicações, do registo das viaturas à natureza dos objetos perdidos. À indicação de que tinha sido num táxi entre Regent Street e Bayswater, onde o Álvaro estivera num hotel baratucho, como era seu timbre, o funcionário do armazém perguntou: “A que horas foi?”. O Álvaro disse que tinha sido pouco depois das sete da tarde e viu o homem fazer um esperançoso sinal afirmativo com a cabeça, enquanto percorria com o dedo as linhas do livro. “Disse-me que era um saco do Hamleys? Tinha um tom avermelhado?” Não era possível! Tinha, de facto, um tom avermelhado! O homem, sempre sem expressão, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para um dos longos corredores com prateleiras. O Álvaro ainda teve a tentação de olhar o registo que, aparentemente, mobilizara o homem, mas este havia tido o cuidado de colocar o livro longe da sua vista.

Passou aquilo que pareceram ser uns longos minutos. No silêncio geral em que o armazém estava mergulhado, ouvia-se apenas o arrastar do que parecia ser uma escada de acesso às prateleiras, uns ruídos de afastamento de objetos. Finalmente, o homem surgiu, ao fundo. Trazia na mão uma caixa grande de cartão que pousou sobre o balcão. O Álvaro estava radiante! O homem conferiu de novo o livro de registo e, voltando-se para o meu amigo, disse, sempre sem expressão: “Não está cá nada!”. O Álvaro caiu das núvens. “Mas, então, e essa caixa?”. O homem, pela primeira vez, pareceu surpreendido. “Esta caixa? Ah! Não tem nada a ver consigo. Estava mal colocada e trouxe-a para corrigir o registo”. Tanto esforço para nada! Intrigado, o Álvaro teve uma derradeira reação: “Mas porque é que me tinha dito que o saco era em tons de vermelho? Pensei que isso significasse que tinha aí registado isso!”. Pela primeira vez o rosto seco do homem abriu-se um pouco, num esgar entre o sorriso e o que pareceu ser um tom de gozo: “Os sacos do Hamleys são sempre em tons de vermelho”.

O Álvaro levava um bom quarto-de-hora a contar este episódio, recheando-o de pormenores, de notas que nos faziam vivê-lo como se estivéssemos a participar da cena. Tenho pena de nunca mais o poder ouvir de novo. O que ele teria dado para estar ontem na “ceia” do “primeiro de dezembro”, nesta cidade sobre cuja rua onde nasceu ele escreveu um livro insubstituível, como ele próprio era!

sexta-feira, dezembro 01, 2017

O lorgnon do senhor Lito


Neste dia do ano em que, evocando outros tempos, me reúno às vezes em Vila Real com gente da minha geração, numa tradicional “ceia” do “primeiro de dezembro”, deu-me para contar uma história, também desses outros tempos, passada com dois amigos vila-realenses, antigos colegas de escola primária.

Foi em 1967, há precisamente 50 anos. Ao final de uma manhã, bateram à porta da casa do Porto onde eu tinha um quarto alugado, como estudante, na rua Miguel Bombarda. O Olívio Carvalho e o Domingos Lito tinham chegado no Cabanelas, o autocarro que ligava Vila Real ao mundo - através das curvas do Marão, com paragem no Príncipe, no largo do Arquinho, em Amarante, e um cheiro a regueifas vendidas na camionete por uma senhora de bigode, à passagem por Paredes. 

A deslocação tinha como finalidade proceder à operação de venda, por um preço que esperavam ir ser uma imensa “nota”, de um velhíssimo lorgnon, uns óculos manuais que teriam pertencido ao avô do Domingos, o Senhor Lito, um histórico e abastado comerciante da cidade. O Olívio vinha coadjuvar tecnicamente a operação, com a sua consabida lábia e o olho para as antiguidades que, curiosamente, iria marcar muito do seu percurso profissional futuro.

De mim, a expedição apenas pretendia o que julgavam ser o meu conhecimento da cidade do Porto, das suas lojas mais credenciadas, onde o negócio pudesse vir a fazer-se com maior proveito. A porta onde tinham batido era, contudo, fraca: eu não sabia rigorosamente nada de antiguidades, conhecia apenas as montras de alguns estabelecimentos comerciais do ramo. Lá lhes dei duas ou três dicas e fui vagamente para umas aulas, mais para cumprir calendário do que com qualquer outro propósito útil. (Nesse ano, eu haveria de concluir apenas mais uma cadeira do meu curso, mantendo o hábito estreado no ano anterior. Meses depois, desistiria dessa opção académica. É que, a ter continuado a esse ritmo unitário anual, julgo que estaria a acabar Engenharia Eletrotécnica mais ou menos por este ano ...).

Combinámos encontrar-nos ao fim da tarde, no Estrela d’Ouro, um café na rua da Fábrica onde eu fingia que estudava e bilharava bastante mais. A cara com que o par de conterrâneos fez a sua entrada no café não prenunciava a realização de um negócio estrondoso. O Domingos vinha murcho com o escasso encaixa de capital que fizera. Como teorizou o Olívio, havia no mercado das antiguidades portuenses um excesso de lorgnons, pelo que a verba recolhida ficara aquém das expetativas. Mesmo assim, se eu lhes pudesse dar guarida nessa noite, o dono da “massa” ofereceu-se para pagar uma jantarada e um copo, regressando a dupla à “Bila” no Cabanelas da manhã seguinte.

Com o meu colega de quarto ausente, ofereci-lhes a sua cama, imagino que com algumas ironias machistas sobre o modo de partilha do leito. E lá partimos para a noite do Porto, esse sim, o verdadeiro curso que por ali eu andava a tirar...

Jantámos, muito bem, na Regaleira, no primeiro andar do Bonjardim. No final, generoso, o Domingos fez as contas: sobravam ainda algumas boas notas. Propus irmos beber um vermute (estava na moda) à Tentativa. Era cedo, o ambiente estava fraco, mas, mesmo assim, foi-nos difícil arrancar dali o Domingos, já embeiçado por uma pequena que lhe esportulou umas bebidas carotas. Dali, rumámos à Candeia, um pouso mais interessante na rua do Almada, onde alguma regularidade me dava um acesso franqueado. O strip na cave estava prestes a começar e aí foi o Olívio que se distraiu e mandou vir umas garrafas de Magos a mais, a pedido de uma jovem oriunda do nosso império. Sem haver outros fundos disponíveis, lá teve o Domingos que pagar a despesa, o que provocou um rombo considerável no pecúlio que sobrava da venda do lorgnon. Se o álcool tinha arruinado a contabilidade do Domingos, também a tornava menos relevante no seu espírito, pelo que, “perdidos por cem”, ainda lhes fui mostrar as delícias baratuchas da Japonezinha, na praça da República. A carteira do Domingos já não dava, porém, para aventuras de monta, muito menos para um qualquer “follow up” romântico, pelo que restou aproveitar o histórico baile com que a noite fechava. 

Regressámos, um tanto cabisbaixos e um pouco toldados, à casa onde eu vivia, onde o pé-ante-pé que pedi para o acesso discreto ao meu quarto se transformou, subitamente, num tropel que acordou a idosa dona da casa, que não deixaria mais tarde de me vir fazer observações críticas sobre o uso imoderado que às vezes eu fazia das instalações. 

O pior seria o acordar, na realidade. Feitas as contas à luz crua do dia, o Domingos constatou ter ficado apenas com uns parcos trocos, como saldo da venda do lorgnon. E tive mesmo de ser eu a entrar com uma pequena ajuda para a compra dos bilhetes do Cabanelas, no regresso a casa do par de menos bem sucedidos vendedores de ocasião. 

O Olívio já se foi, o Domingos perdi-o de vista há muito. Lembrá-los neste dia de encontro geracional pareceu-me uma boa ideia.

Senteno


O título pode parecer estranho, mas com ele pretendo sublinhar que tudo o que, por ora, se diga sobre a ida de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo deve ser iniciado com um prudente e kiplinguiano "Se". Há que aguardar a confirmação final da escolha.  

Vale a pena lembrar a complacência com que o novo ministro português foi recebido, pela primeira vez, no Eurogrupo, nos idos de 2015, com Schäuble ainda a fazer o luto de Maria Luís Albuquerque, tendo ao lado, solícito, o sorriso cinicamente encaracolado de Dijsselbloem.  Todos nos recordamos, com certeza, do ar de aluno “marrão” de DombrovskIs, debitando bálticas reticências na Comissão sobre a capacidade das gentes do Sul para porem a sua casa em ordem. 

Que se terá passado para que, num prazo não muito longo, o infrator pudesse surgir com fortes hipóteses de passar a árbitro? Terá a Europa da ortodoxia arrepiado caminho, arrependida das receitas que impôs, sem dó e com nenhuma piedade, decidindo que, afinal, uma linha mais contemporizadora é que tinha a razão do seu lado? Estarão aí, ao virar da curva, a atenuação dos rigores do Tratado Orçamental, a reestruturação europeia da dívida, a sua mutualização pelos eurobonds?

Nada disso. A Europa do euro não se arrepende um milímetro daquilo que a "troika" nos impôs, nunca deixa um elogio a Mário Centeno desacompanhado da nota de que o seu sucesso se deve às condições que encontrou, graças ao "bom trabalho" dos seus antecessores. E não prescinde, claro está, de todos os objetivos macroeconómicos e respetivos calendários.

Mas, então, o que é que mudou naquelas cabeças, para poderem encarar vir a aceitar Centeno?

Desde logo, a Europa pode necessitar de ter alguém, oriundo de um Estado não-grande, que possa ser um "honest broker" no Eurogrupo, preservando o lugar há já muito prejudicada família socialista (que irá futuramente perder a vice-presidência do BCE, com a saída de Vitor Constâncio). Centeno, cuja competência está mais do que demonstrada (não necessitando para isso de ter dirigido o Gabinete de Estudos do Banco de Portugal...), é alguém que demonstrou, na prática, que é possível manter fidelidade às metas do rigor macroeconómico sem, necessariamente, persistir na aplicação cega das receitas anteriores, isto é, explorando seletivamente algumas margens orçamentais, fruto do crescimento induzido e de fatores favoráveis da conjuntura, através de moderadas reversões que acabam por tornar o "bolo" política e socialmente mais palatável. Centeno provou ser possível "humanizar" as políticas austeritárias e isso pode ser interessante para uma Europa em desespero de aceitabilidade e apaziguamento interno.

quinta-feira, novembro 30, 2017

Mário Centeno


Nunca acreditei nas reais possibilidades de Mário Centeno vir a ser presidente do Eurogrupo, na leitura que fazia dos equilíbrios políticos que nele se projetavam. Erro meu. 

Não sabemos ainda se virá a ser escolhido, mas, mesmo que isso não venha a acontecer, o anunciado conjunto de apoios que a sua candidatura já concitou é um fantástico reconhecimento para o próprio, uma vingança do tamanho do mundo para António Costa, o primeiro-ministro que o descobriu para a política, e uma “fava” natalícia antecipada para muita (mesmo muita) gente. 

Se acaso Centeno vier a ser eleito, tal como já aconteceu com Guterres na ONU, preparemo-nos para as medíocres ironias paroquiais que por aí abundarão, desqualificadoras da importância do lugar e do poder efetivo do seu titular, com prenúncios do pior para o futuro dos equilíbrios no seio da “geringonça”. 

Portugal é assim há muitos séculos, a inveja, o despeito e o ódio ao sucesso dos outros fazem parte da nossa matriz identitária como povo e são, com toda a certeza, uma das fortes razões que explicam por que não passamos da cepa torta.

quarta-feira, novembro 29, 2017

Lusofonias

A convite da Sociedade de Geografia, fiz hoje uma palestra sobre os problemas com que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa se defronta para o seu pleno desenvolvimento. Era este o tema que me havia sido proposto e entendi segui-lo à letra. 

Imagino que, no auditório, muitos tivessem ficado algo chocados quando elenquei, sem subterfúgios e com total frontalidade, cerca de três dezenas de razões pelas quais, a meu ver, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é o que hoje é - e, infelizmente, não é mais do que isso.

Acho que, de quando em vez, faz falta um pouco de verdade, crua e dura, nesse muito complexo e contraditório mundo de quantos se exprimem em língua portuguesa. É que há por ali sentimentos ambivalentes e realidades bem curiosas.

Imediatamente antes de fazer a palestra da Sociedade de Geografia, tinha estado numa reunião em que alguém contou que visitava Angola no dia em que se realizava um Sporting-Benfica. Essa pessoa disse do seu espanto (e do seu agrado, já agora), ao ouvir numa rádio luandense uma referência ao jogo, em que designava o prélio como o “dérbi da Segunda Circular” - com a absoluta certeza, por parte do radialista, de estar a ser plenamente entendido pelos seus ouvintes locais.

Não pude deixar de lembrar-me, naquele momento, de um timorense que conheci em Nova Iorque, que nunca visitara Portugal, e que me disse que um dia gostaria de conhecer ”a segunda ponte do Feijó”, lugar até onde chegavam as filas de trânsito nas manhãs lisboetas, que a rádio lhe reportava nas tardes do seu Timor natal.

Belmiro de Azevedo

Belmiro de Azevedo, que hoje desaparece, é um nome grande do mundo empresarial português. Com grande visão, soube criar um grupo económico muito sólido, que gerou largos milhares de empregos, em Portugal e no estrangeiro. Faz parte dos novos empresários que surgiram depois do 25 de abril e que, com os anos, consolidaram um papel determinante na economia do país.

Falámos em diversas ocasiões, em Portugal e no estrangeiro. Em Paris, recordo-me de o ter apresentado num jantar de empresários, No Porto, onde o encontrei pela última vez, ocasião em que me felicitou por trabalhar “na concorrência”, pude testemunhar o seu empenhamento desinteressado numa obra solidária, a que eu próprio dei uma modesta contribuição. 

Belmiro de Azevedo era um homem muito frontal, determinado, com ideias próprias e opiniões fortes, e coragem para as assumir. No trabalho, dizem-me, era de extremo rigor, atitude a que se atribui grande parte do seu sucesso.

O jornal “Público”, em cuja orientação cuidou nunca intervir, foi por ele financiado desde a primeira hora, num gesto que constituiu uma contribuição generosa para a diversidade e a qualidade da imprensa em Portugal. Escrevi “generosa” porque Belmiro de Azevedo, ano após ano e até à sua morte, só acumulou prejuízos com o investimento. Não desistiu nem mudou de atitude.

O triste gesto que o PCP hoje teve na Assembleia da República, recusando juntar-se ao voto de pesar aí aprovado, releva de uma visão deselegante, fruto da sua hostilidade endémica a todos os projetos empresariais privados que assumam uma certa dimensão. O Bloco absteve-se. Nada de novo. 

Deixo a minha palavra de pesar à Família de Belmiro de Azevedo.

Deus não dorme





Conheço Mário Mesquita há muitos anos, desde as mesas da Granfina, nos idos de 70. Por esses tempos, procurei-o um dia no “República”, onde ele era jornalista, para tentar “plantar” uma notícia sobre uma movimentação para-sindical na Caixa Geral de Depósitos, onde eu trabalhava. A Censura não deixou passar. Semanas após o 25 de abril, foi ele quem teve a iniciativa de destacar, no mesmo “República”, um trecho de um discurso que eu havia feito num juramento de bandeira na unidade militar onde estava colocado, em que fiz uma forte crítica ao MFA, “pela esquerda”, que me levou a ser chamado a uma reprimenda ao Estado-Maior do Exército. 

Mário Mesquita e eu nem sempre navegámos simultaneamente em idênticas marés, mas tenho a certeza de que sempre andámos pelas mesmas águas. Também nunca fomos íntimos e ele é, dentre a “ínclita geração” de estudantes açoreanos aportada a Lisboa e com a qual tive o gosto de conviver - a de Medeiros Ferreira, Jaime Gama ou Eduardo Paz Ferreira, entre outros e outras - aquele com quem sempre mantive uma maior “cerimónia” pessoal - vá-se lá saber porquê! 

Isso facilita a que hoje possa dizer que é com grande satisfação que vejo o seu nome eleito para a ERC, o regulador da Comunicação Social. Se a Assembleia da República queria indiscutível competência, seriedade e independência, não podia ter escolhido melhor. Quase que me apetecia fazer uma ironia e repetir o título de um seu célebre editorial no “Diário da Notícias”, também há já com muitos anos, que causou mossa e fez história: “Deus não dorme”.

terça-feira, novembro 28, 2017

Tempos


Hoje, um estrangeiro, para um amigo português:  "Vocês, em Portugal, dizem que sofrem de uma imensa seca. Mas, hoje, já ouvi várias pessoas a dizer que está mau tempo..."

Diplomacia publicitada


Há países onde o desagrado das autoridades face ao comportamento de um Estado estrangeiro se expressa em "leaks" para a comunicação social, que, depois, funcionam como forma artificial de pressão sobre essas mesmas autoridades. Perante o "escândalo" que elas próprias provocaram, voltam-se para os diplomatas dos países visados e dizem: "Vêem? Temos a imprensa em cima de nós! Têm de fazer alguma coisa!". (Sei do que estou a falar).

Portugal não tem (felizmente) essa tradição. A nossa diplomacia é mais discreta, o que não significa ser menos eficaz.

Às vezes, contudo, sinto a tentação de recomendar que se "parta a loiça". Nós sabemos que a Espanha está a atravessar, como nós, uma seca terrível. Temos de ter compreensão pelos seus problemas, mas não devemos ter a mínima aceitação para alguns transvases que se fazem em áreas dos seus territórios e que afetam, ainda mais, os caudais dos rios comuns. É que tenho a firma convicção que são essas práticas que contribuem para que a Espanha, nos dias que correm, esteja claro em incumprimento do acordo de 1999 sobre os rios transfronteiriços.

segunda-feira, novembro 27, 2017

Dois anos


Nos últimos meses destes dois anos, várias coisas têm corrido mal para o governo de António Costa. Algumas têm razões conjunturais que ajudam a justificar os azares, em outras houve erros de monta que só a ele podem ser imputados. E porque o governo tem vários ministros, mas todos se chamam António Costa, é sobre ele e sobre mais ninguém que aterram as núvens negras. Por isso foi irrelevante a saída da ministra da Administração Interna, embora eu aconselhe a que se esteja atento à qualidade muito rara do seu substituto.

As pessoas têm a memória curta. Já não se lembram das previsões catastróficas que se faziam sobre a sustentabilidade da “geringonça” (a começar por mim, que não tenho o menor pejo em reconhecer que me enganei), da reação externa negativa ao modelo de acordo político (ter um presidente “de direita” a dar-se bem com o executivo ajudou a desanuviar esse ambiente, como me dizia um amigo dos “States”), do “diabo” a vestir o fim anunciado do “quantitative easing” e de coisas assim. A economia ajudou, com a Europa (em especial o BCE) a portaram-se bem e a confiança dos portugueses acabou por variar na razão inversa do mal-estar das oposições. Marcelo ajudou até ao momento em que percebeu que a viatura tinha um pneu furado; regressará, logo que pressentir que o furo foi remendado. 

António Costa tem cometido alguns erros escusados, como foi o caso do Infarmed, como já tinha sido o episódio das férias, como foi o discurso pós segunda leva de incêndios. E sofre - e vai sofrer mais, a partir de agora - com o facto do vento ter definitivamente mudado. Há um momento na vida dos governos em que a tempestade passa a surgir de frente, em que a imprensa deixa por completo de dar o benefício da dúvida, em que as mentiras “pegam” com mais facilidade, agora ajudadas pelos “clikbaits” e pelas partilhas acéfalas de títulos nas redes sociais. O manhoso de Santa Comba não viveu para ver que são os dias de hoje que lhe dão razão quando dizia que “em política, o que parece é”.

Creio prematuro pensar-se que o governo entrou em decadência terminal. Claro que o otimismo da Primavera passada já não vai voltar. Cada erro, a partir de agora, passa a ser pago com língua de palmo. Mas se as pessoas perceberem que, de facto, a sua vida muda para melhor graças às medidas do governo, se este não tropeçar demasiadas vezes em si próprio e se souber mostrar, simultaneamente, direção, firmeza, eficácia e humanidade, o PS pode estar para lavar e durar no poder. Assim aceitem esta realidade e isso convenha aos seus “camaradas” de jornada.

Realismo real

É muito interessante ver a capacidade “encantatória” que a monarquia britânica consegue criar, nestes momentos em que se anuncia que um príncipe vai casar. Apesar de todos os azares (a maioria deles auto-infligidos) que nas últimas décadas abalaram a casa real britânica, estes trabalhados momentos mediáticos, com a novidade de surgir uma noiva divorciada e etnicamente diversa de todo o resto da família, insuflam um curioso vento de renovação. A grande profissional que dirige aquele “show”, continua a revelar uma notável capacidade de adaptação. Como republicano, tiro-lhe o meu chapéu.

Pedro Rolo Duarte


Vai para oito anos, o jornalista Pedro Rolo Duarte publicou no seu blogue esta crónica que havia lido na rádio.

Pedro Rolo Duarte morreu há dias, aos 53 anos. Recupero, com gratidão, a imagem desse simpático texto.

domingo, novembro 26, 2017

Touché!

“Tu estás mas é doido?!”. Foi assim que reagi, um dia, a um convite do João Laranjeira de Abreu para entrar, como colaborador, para a Federação Portuguesa de Esgrima. O João havia sido atleta olímpico da modalidade e, se bem me recordo, defrontava-se, à época (seria 1969 ou 1970), com dificuldades de natureza administrativa na respetiva federação. 

Aparentemente, alguma ilusão piedosa sobre a minha capacidade de organização (quem me conhece sabe que sou um imenso e incurável desorganizado) tê-lo-á persuadido de que eu poderia ser útil à tarefa. Com algum esforço, consegui “safar-me” do encargo, mas confesso que sempre que vejo na televisão uma partida de esgrima me recordo da minha “afinidade” não concretizada com a modalidade.

O João era então meu colega de estudos nos “ultramarotos” da Junqueira, que Adriano Moreira quis transformar de antiga escola de quadros para a administração colonial numa verdadeira faculdade de ciências sociais, até Marcelo Caetano o “pôr com dono”. 

Com o correr dos tempos, viemos a ingressar ambos na diplomacia. O destino afastou-nos sempre geograficamente, nunca coincidimos a trabalhar juntos, mas fomos mantendo contactos esparsos, ligados por uma forte amizade.

Há dias, nesse espaço estranho que é o facebook, surgiu-me o seu nome. Inquiri se era mesmo ele, tendo de volta recebido a confirmação de que sim. Da troca posterior de mensagens, vim a verificar que anda pelo sul das Américas e que, infelizmente, a saúde não o tem ajudado, “to say the least”. 

Porque sei que me lê, tendo-me revelado que o que vou escrevendo por aqui é uma das suas mais regulares ligações ao que se passa no nosso país (acontecem-me, às vezes, dias felizes assim), quero deixar-lhe um forte abraço de amizade, com votos de que tudo lhe possa ir correndo o melhor possível. 

Quero aproveitar para garantir ao meu amigo João Laranjeira de Abreu que a esgrima não perdeu nada com a minha não colaboração, mas que recordo ter ficado então muito “touché” pelo convite.

sábado, novembro 25, 2017

O susto


Sabe-se hoje que o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), que o país político conheceu bem, nos anos que imediatamente antecederam e sucederam ao 25 de abril de 1974, nasceu em 18 de setembro de 1970. Embora a sua existência efetiva, nos dias que correm, seja pouco mais do que teórica, emergindo apenas nos períodos eleitorais, diz-se que com vista a recolher a significativa subvenção pública anual a que vai tendo direito, a verdade é que, historicamente, o MRPP pode gabar-se de ser o segundo mais antigo partido político português, depois do PCP.

Há horas, ao olhar a escada do Instituto Superior Técnico, na noite da Alameda Afonso Henriques, lembrei-me do MRPP. Em meados de dezembro de 1970, já bem dentro da madrugada, eu saía sozinho de uma reunião do associativismo universitário que tinha tido lugar na Associação dos Estudantes do Técnico, onde tinha estado a representar o ISCSPU (isso mesmo, com um “U”). Já não sei bem a razão pela qual as coisas se tinham prolongado, mas os debates inter-associações (chamados de RIA), tinham, por vezes, “serões” inesperados. 

Tenho ideia de ter passado um portão lateral e de ter deparado com o que me pareceu ser uma resma de papel, arrumada junto à grade. Não era, eram vários exemplares de umas páginas de papel policopiado, de tamanho mais comprido do que era normal, agrafadas, com uma letra de máquina de escrever muito pequena, diferente do que era vulgar. O documento tinha um título: “Bandeira Vermelha”, identificando-se como “órgão teórico“ do MRPP. E indicava ser o nº 1. Tinha sido colocado naquele local claramente com o objetivo de ser apanhado, à saída, pelos representantes associativos que se sabia estarem ali reunidos.

Eu era então um curioso por todo o tipo de papelada clandestina, pelo que logo guardei, na minha velha pasta preta, três ou quatro exemplares. Confesso não me recordar se, à época, tinha já alguma vez ouvido falar no MRPP, embora um ano e tal antes, numa reunião oposicionista no Palácio Fronteira, anterior às primeiras “eleições” para a Assembleia Nacional organizadas por Marcelo Caetano, eu tivesse sido testemunha pública de um dissídio político que, como veio a provar-se, iria dar origem à criação da EDE (Esquerda Democrática Estudantil), que desembocaria no MRPP.

Desci as escadas, preparando-me para seguir Alameda abaixo, até à Almirante Reis, onde apanharia um autocarro para os Olivais, onde então vivia. Nesse tempo, na madrugada lisboeta, era vulgar conseguir viajar em autocarros que recolhiam a Cabo Ruivo, já de madrugada. Eram abertos atrás e os condutores, quase nem paravam, só abrandavam ao nosso aceno, por forma a que segurássemos o varão e apanhássemos boleia, sem necessidade de bilhete.

Foi então que vi dois carros, estacionados naquele deserto da noite, um de cada lado do Técnico, fazerem sinais de faróis, um para o outro. Era a polícia (ou a Legião, ou a Pide), pela certa (por essa época, a noite dessa área ainda não tinha o “colorido” que mais tarde a ilustraria...) E ali estava eu, com alguns exemplares de literatura clandestina na pasta, sozinho, indefeso. Lembro-me do relativo pânico em que entrei. Se me mandassem parar e me revistassem iam encontrar não um mas vários exemplares de um documento revolucionário que eu, por estúpido e incívico “açambarcamento”, decidira trazer para dar a amigos. E que nem sequer lera!

Tentei descer as escadas aparentando a maior calma do mundo, para não dar um ar acossado. Se fumasse, teria mesmo parado para acender um cigarro. Não sei se fiz a coreografia de apertar cordões nos sapatos. Mas devo ter assobiado, para espantar o medo e o frio que me corria pela espinha, a rimar com alguma taquicardia conjuntural. Desci “com calma” a Alameda, olhando frequentemente para trás, de soslaio. Lá chegado, cosi-me às paredes enquanto não surgiu um autocarro. E, finalmente, lá cheguei a casa, aliviado, no fim de uma “não história” em que, vendo bem as coisas, ninguém me perseguiu, talvez nem sequer tivesse estado em perigo e aqueles carros, afinal, não fossem da polícia e eu tivesse apenas andado por ali a atrapalhar um qualquer arranjo romântico. Ou não.

Mas tudo para dizer, lembrado pelas escadas do Técnico por onde há pouco passei, que, ainda hoje, sou proprietário de um velho exemplar desse histórico “Bandeira Vermelha” nº 1, que um alfarrabista, já há anos, me disse valer “bem para cima de cem euros”. Ou mais.

sexta-feira, novembro 24, 2017

Na linha da frente


A União Europeia anunciou a criação, no seu seio, de uma Cooperação Estruturada Permanente em matéria de Defesa, prevista no Tratado de Lisboa. Trata-se do resultado de um processo de reflexão desenvolvido ao longo dos últimos meses, manifestamente facilitado pelo anunciado abandono do Reino Unido das instituições europeias.

23 dos 28 Estados membros da União Europeia, entre os quais se contam a esmagadora maioria dos parceiros europeus da NATO, bem como alguns países neutrais, deram nota da sua intenção de vir a integrar este modelo de cooperação. 

Portugal surgiu ao lado do Reino Unido, de Malta, da Irlanda e da Dinamarca, entre os países que não manifestaram oficialmente a sua adesão ao projecto, mesmo que o governo tenha anunciado a sua intenção de o fazer. 

Desde o seu acesso às instituições comunitárias, há mais de 30 anos, Portugal fez questão de estar presente, sempre a partir do primeiro momento, em todos os modelos de integração diferenciada que foram criados na Europa - de que Schengen e o euro são os exemplos mais significativos.

A Cooperação Estruturada Permanente agora anunciada, no âmbito do Tratado de Lisboa, não conflitua nem se substitui aos compromissos portugueses assumidos no quadro da Aliança Atlântica, nem tem como objetivo, como é caricaturado por alguns, avançar para a criação de um qualquer “exército europeu”. 

Trata-se, muito simplesmente, de definir fórmulas mais integradas de cooperação na área da Defesa entre países que, em face de ameaças que lhes são comuns, têm vindo a gerar entre si uma cultura específica de segurança e defesa, num tempo em que uma afirmação própria da Europa neste domínio, complementar com o empenhamento de alguns dos seus Estados noutros compromissos estratégicos de natureza similar, se torna vital para o reforço da identidade e da capacidade de afirmação do próprio projeto europeu de integração política.

Eventuais argumentos de natureza financeira, avançados como limitativos para a nossa participação plena no projeto, parecem ignorar as sinergias políticas e de optimização dos recursos que este modelo integrador potencia e, muito em especial, não levam em linha de conta as importantes oportunidades que o novo modelo abre para as nossas indústrias de defesa.

Mas o mais importante é a questão política: Portugal não pode deixar de estar entre os fundadores da Cooperação Estruturada Permanente, o projeto mais estruturante do aprofundamento estratégico europeu.

Neste contexto, é importante reafirmar a necessidade imperativa de Portugal integrar o núcleo duro da Cooperação Estruturada Permanente no Conselho de Negócios Estrangeiros de 11 de Dezembro. O interesse nacional reclama que Portugal permaneça na linha da frente europeia no domínio central da defesa, em que sempre se destacou como produtor líquido de segurança internacional.


(Texto que hoje surge no jornal “Público” subscrito por Nuno Severiano Teixeira, António Vitorino, Francisco Seixas da Costa, Teresa Gouveia, Luis Amado, Vitor Martins, Carlos Gaspar, Paulo Sande, Figueiredo Lopes e Maria Carrilho)

O tempo e o modo



O governo vive tempos reconhecidamente complexos. O seu excecional estado de graça, que durou quase dois anos, ardeu em Pedrógão, agravou-se em Tancos, implodiu de forma fragorosa nos fogos de outubro e foi também infetado pela crise da “legionella”. 

Neste “trend” negativo, a excelente vitória autárquica do PS quase não teve efeito de contraponto, porque logo mergulhou os comunistas num desespero que os levou a soltar pelas ruas os sindicatos, tornando ainda mais difícil o desenho do orçamento para 2018, que Bruxelas já olha com perplexo sobrolho.

Pelo caminho, o PS perdeu um aliado vital: Passos Coelho, “bête noire” da esquerda da esquerda, cujas aparições pavlovianamente traziam a “troika” de volta à memória coletiva, o que muito atenuava as tentações de pôr termo à aliança contranatura com os “mencheviques” do Rato. Nem Rui Rio nem Santana Lopes, a menos que cometam o erro de dar palco em nome do PSD a figuras que convoquem à ideia os idos de 2011/15, constituem, por ora, uma alternativa ao antigo primeiro-ministro, em termos diabolização eficaz.

Depois, há Marcelo. Do descrispador papel de anti-Cavaco, por que Portugal ansiava, o presidente começou por fazer o que lhe competia no apoio a um governo que ele percebia ter ganho a sintonia com o país e que, com alguma sorte externa e muita habilidade interna, ia completando a quadratura do círculo – isto é, seduzir Shaüble e sorrir no dia-a-dia para os amigos lusos de Varoufakis. Marcelo cavalgou a onda de popularidade de António Costa mas teve a habilidade de ir criando um espaço próprio, através de uma coreografia de afetos que o deixou na crista da onda, quando o rebentamento caiu sobre o executivo. E, sem uma oposição para recolher os louros dos desaires do governo, o presidente acaba por ser - “by default” mas também, há que dizê-lo, de forma inteligente - o grande usufrutuário da situação. Hoje, para o bem e, em especial, para o mal, o presidente é o “provedor” dos portugueses, agora que uma parte significativa do país é atravessada por alguma insegurança.

António Costa pode recuperar deste momento difícil que vive? Para as Cassandras do “quanto pior melhor”, vive-se um fim de festa. Estou muito longe de pensar assim. É claro que já nada será como dantes, os desgastes não se recuperam e o cansaço com as caras faz estragos progressivos na credibilidade do projeto. A Geringonça pode não chegar ao fim, acho mesmo que são ínfimas as hipóteses de que isso venha a acontecer. Qual seria a vantagem para o PC de manter, até à véspera das próximas eleições legislativas, o apoio a um governo que vai ser o seu “bombo de festa” na campanha? Só que isso até é capaz de não ser mau para António Costa. E o PC sabe que Costa sabe que os comunistas sabem isso.

O bigode e o Thanksgiving


Devo ao "Tranksgiving", o Dia de Ação de Graças, a tradicional festa da família nos Estados Unidos, que ontem se comemorou, o facto de não usar bigode. Eu explico.

Aí por 1969, talvez para me dar um ar menos ortodoxo ou mais revolucionário, decidi passar a andar de pêra e bigode. Ao entrar para o meu primeiro emprego, em 1971, reduzi-me ao bigode, que continuei a utilizar no serviço militar e, mais tarde, na diplomacia, neste caso complementado com um cabelame que, posso imaginar!, deve ter então aterrado os meus novos chefes. Colocado como diplomata na Noruega, em 1979, "levei" comigo esse bigode de uma década, com que já tinha casado e "entrado" no 25 de abril. 

No ano em que completava três anos de Oslo, e se presumia fosse transferido, o meu embaixador de então disse-me: "Com o aspeto que esse bigode lhe dá, o MNE ainda o manda para a América Latina". Como sou dado a fartas coincidências, logo na semana seguinte recebi uma carta do nosso embaixador no México, que tinha sido meu diretor-geral, a convidar-me para ir trabalhar com ele (não fui, acabei por ir para Angola). Contei da carta ao meu embaixador, que, ufano da previsão, me retorquiu em inglês: "I told you so!".

Fiquei a matutar naquela coisa do bigode poder condicionar um percurso diplomático. É aqui que entra o "Thanksgiving". Nesse novembro de 1991 fomos convidados por casal da Embaixada americana para passar com eles essa festa da família. Lembro-me que nos tocou muito o gesto da Judy e do Bill Stevens, porque ao ambiente dessa ocasião só se partilha com os amigos mais chegados.

Na conversa depois do lauto jantar de perú, contei a história do bigode e da premonição do meu embaixador. O Bill, que tinha uma forte bigodaça, disse-me: "Por que é que não tiras o bigode? Olha! Se tirares o teu, eu também tiro o meu!". A conversa continuou e, a certo passo, ele propôs: "E se tirássemos já?". Imagino que foi alguma conjuntural euforia etílica que me levou a concordar. Minutos depois, regressámos ambos à sala sem os nossos fartos bigodes. No meu caso, interrompendo um hábito (e uma imagem) de cerca de 12 anos.

Lembro-me sempre do meu "falecido" bigode nas noites do Thanksgiving. Como a de hoje. E, às vezes, pergunto-me que será feito da Judy e do Bill Stevens, republicanos empedernidos, nesses tempos de Reagan, a quem eu provocava com a minha admiração por Jimmy Carter. Terão votado Trump?

quinta-feira, novembro 23, 2017

Remédios para as florestas

E se, em lugar do Infarmed, esse estranho “prémio de consolação” dado ao Porto pela perda da Agência europeia (eu, se fosse funcionário do Infarmed, com uma vida organizada desde sempre em Lisboa, também resistiria à transferência), o governo decidisse colocar na segunda cidade do país a nova empresa pública que vai ser criada para a gestão das florestas?

Olhar o Mundo


No programa “Olhar o Mundo”, da RTP, deste fim de semana, falo com António Mateus sobre a situação política na Alemanha e as mudanças em Angola e no Zimbabue, além de dez outros temas da cena internacional.

quarta-feira, novembro 22, 2017

Diplomacia Económica

Pelas 16.15 horas, 6ª feira, dia 24 de novembro, na Biblioteca da Imprensa Nacional, na rua da Escola Politécnica, 135, em Lisboa, farei a palestra de encerramento da Conferência Internacional “A Diplomacia Económica na Europa do Sul”

terça-feira, novembro 21, 2017

As bilhas



Imagino que haja pessoas, em especial senhoras, que vão detestar esta historieta. Mas ela, à sua maneira, ilustra um Portugal de um outro tempo que, até como exemplo negativo, vale a pena registar. Eram esses anos 1971/73, em que eu era funcionário da Caixa Geral de Depósitos. 

A pausa do almoço era entre as 12.30 e as 14.00 horas. Comia-se pelas tascas do Bairro Alto ou de Santa Catarina e, no final, aguardava-se a abertura da “porta grande”, impreterivelmente às duas horas, para iniciar o período da tarde. Nesses minutos que antecediam o nosso regresso ao trabalho em dias de sol, encostava-me, com alguns colegas, à parede fronteira à Caixa, entre a antiga Bijou do Calhariz e a estimável Tabacaria Martins, sob a placa antiga de mármore que refere as suas qualidades. 

Num dos dias iniciais desse meu primeiro emprego, vi surgir dos lados do Loreto a figura de um homem com um sorriso aberto, um ar que me pareceu um tanto atoleimado. Dirigiu-se ao nosso grupo e, pelo modo como foi recebido, logo percebi que era objeto de algum gozo entre os seus r meus camaradas de profissão. 

“Então, ó Meireles, como é que correu a jornada?”, ouvi da parte de um deles. O Meireles (o nome aqui não importa), respondeu: “Razoável! Razoável! Uma meia dúzia”. Nesse instante, a “porta grande”, no passeio em frente, abriu-se e todos nos precipitámos para ela. Fiquei sem saber o que diabo era a “jornada” do homem. 

Esqueci o assunto mas, dias depois, a cena repetiu-se: lá vi o tal Meireles juntar-se a nós, também sobre a hora de abertura da porta. Desta vez, a expressão usada por ele foi outra: “Quatro bilhas! Não foi mau!”. E toda a gente riu. 

Pela escadaria, a caminho da minha sala de trabalho, perguntei a um amigo o que era, afinal, aquela “contabilidade” de “bilhas”: “O Meireles é um pateta, um tarado sexual. Há anos que tem como diversão, à hora de almoço, passear pelo Camões e pelo Chiado e apalpar o rabo a senhoras, vindo depois para aqui anunciar quantas “bilhas” conseguiu fazer...”. Fiquei siderado. Que grande besta! Mas, pronto, era assim mesmo! 

O Meireles, ou lá como se chamava, correspondia a um modelo de javardo que, embora extremo, passava entre nós com alguma tolerância, e até algum divertimento por parte de quem, afinal, acedia ao seu convívio, na Lisboa desse tempo. 

Várias vezes, ao longo deste quase meio século, me tenho perguntado se o tal Meireles, ou lá como ele se chamava, não terá, algumas vezes, recebido, de algumas senhoras que molestava, um par de bem merecidos estalos. 

Lembrei-me deste episódio nesta altura em que uma reação bem saudável parece emergir na sociedade internacional (e na portuguesa, por arrasto) quanto ao respeito devido à dignidade das mulheres, posta então em causa por figuras do jaez do Meireles, ou lá como ele se chamava.

segunda-feira, novembro 20, 2017

Vida a sério

Começou a vê-lo, à distância, lá na praia. À medida que se aproximavam, os sorrisos foram-se abrindo. Conhecia-o, claro. Mas de onde? E como diabo é que o homem se chamava? E o que é que fazia?

O outro tinha melhor memória: “Então, meu caro?! Que gosto em ver-te! Já te reformaste? Deixaste a vida das embaixadas?”

O interpelado lá deu nota do que já não fazia. Mas continuava a não se lembrar minimamente quem era o seu efusivo “amigo”, onde se tinham conhecido, o que é que ele fazia. Ainda teve esperança de que a conversa trouxesse alguma referência que pudesse ajudar a perceber quem era. Mas nada! A medo, medindo cuidadosamente as palavras, até para retribuir a atenção personalizada de que estava a ser alvo, perguntou: “E tu, o que é que, nos últimos tempos, tens vindo a fazer na vida?”

A cara e o sorriso do outro fecharam-se um pouco: “Ora essa! Estou no governo, como sabes! Sou secretário de Estado”.

Há, de facto, dias infelizes! Não querendo dar a impressão de que desconhecia a importante ocupação governativa que o seu “amigo” se atribuía, saiu-lhe então esta “pérola”, o que acabou por ser “pior a emenda do que o soneto”: “Eu sei! Eu sei! Não é isso! Eu estava a referir-me a vida a sério, trabalho, etc...”

Posso garantir que isto não se passou comigo.

A Agência


A Agência Europeia do Medicamento não vai para o Porto. É pena que a segunda cidade portuguesa não tenha podido vir a sedear esta importante estrutura da constelação de instituições europeias, que muito ajudaria a potenciar o Porto e a região norte no quadro continental. O governo português, bem como a estrutura coordenada pela municipalidade portuense, fizeram tudo quanto estava ao seu alcance para garantir o objetivo do Porto. Mas, infelizmente, não tiveram sucesso.

Agora que tudo terminou, devo dizer que nunca acreditei minimamente que este objetivo pudesse ser atingido. As agências não são todas iguais e esta, em particular, tinha uma dimensão, nomeadamente em matéria de recursos humanos, que, desde o primeiro momento, me pareceu menos compatível com a sua instalação numa cidade como o Porto. Desde logo, não era por acaso que até agora estava colocada em Londres. E temos de ser realistas: cidades como Amesterdão, Copenhague ou Milão, tal como Barcelona, neste caso se não estivesse a atravessar uma bagunça, ofereciam naturalmente melhores e mais apelativas condições. 

Fica agora aberta (para sempre) a especulação sobre se Lisboa não teria sido uma muito melhor opção, como estava previsto desde o início. O argumento de que já por lá existem duas (minúsculas) agências não me convence. Lisboa era, claramente, a única cidade portuguesa com condições potenciais para albergar uma agência desta importância. Não faço ideia se ganharia, perante tão poderosos concorrentes, mas as suas “chances” seriam incomparavelmente muito maiores, nomeadamente atendendo à visibilidade excecional que a cidade está a ter por toda a Europa. Digo isto como nortenho, gostando imenso da cidade do Porto, favorecendo fortemente tudo quanto possa vir a contribuir para a descentralização do país e achando que a tradicional macrocefalia de Lisboa tem de começar a acabar. 

“Come to Salisbury”


Estávamos nos anos 80. A conversa ia calma, durante aquele encontro técnico, à margem da reunião principal dos ministros, que estava a ter lugar em Londres, na sede da então ODA (Overseas Development Agency).

A delegação ida de Lisboa tinha várias valências e cada um de nós, de acordo com a sua especialidade, tinha feito o seu “número”. Tudo com profissionalismo, com conta, peso e medida, num eficaz “inglês de reuniões”. Estava tudo a correr bem.

De súbito, um dos ingleses abordou o tema de Cabora Bassa, querendo saber como iam os nossos contactos com os países da região, eventualmente relevantes para o assunto.

Sabia-se que Portugal tinha naquele empreendimento um custo permanente, fruto do imenso e antigo investimento do tempo colonial, que a transição para o Moçambique independente ainda não conseguira, ao tempo, resolver. Os regulares atentados (hoje seriam chamados de terroristas, na nomenclatura banalizada), com corte das linhas de transmissão, não permitiam comercializar a energia, com vendas a Moçambique ou à África do Sul, que pudessem atenuar financeiramente o nosso encargo. A Renamo atuava com estranha impunidade, havendo a ideia de alguns atores regionais, entre os quais o Zimbabwe, poderiam, se quisessem, ter uma ação mais eficaz e cooperativa. Era também sobre esse caso específico que o responsável britânico queria ter a nossa opinião.

O meu colega que tinha a seu cargo o tema era uma velho “routier” das coisas africanas. Homem encantador, excecionalmente eficaz no contacto humano, tinha contudo uma proverbial e reconhecida propensão para o exagero que, não raramente, o fazia entrar num registo quase onírico. Viajei imenso com ele e, às vezes, não era fácil travá-lo. Como nesse dia aconteceu.

À questão colocada pelo inglês, ele respondeu logo, acompanhando com o gesto largo que lhe era muito comum: “Cabora Bassa? Esse é um problema que nós, em Portugal, resolveremos quando quisermos. Com o Zimbabwe ao nosso lado”.

Porque, muito simplesmente, as coisas estavam longe de ser assim, os restantes membros da delegação portuguesa entreolharam-se. 

À palavra Zimbabwe, os ingleses tinham já levantado as Bic das “yellow pads” e convergiram os olhares no meu colega.

Ele, “lançado” como ia, com o auditório manifestamente no bolso, continuou: “Ainda há dias, o Bob me mandou um recado, por um amigo comum”.

O Bob? Como logo explicou, tratava-se, então não era óbvio?, de Robert Mugabe...

A sala agravou o silêncio em que mergulhara. Os ingleses subiram nas cadeiras. Perante a ansiedade coletiva, o meu colega acedeu a partilhar a mensagem “do Bob”: “If you want to have a solution to Cabora Bassa, come and see me in Salisbury”.

Dei um salto! “Salisbury”, nome colonial da atual Harare? E, em voz alta, perguntei ao meu colega se não se tinha enganado.

De sorriso escancarado, ciente de ter todos em “suspense”, explicou, com o ar de ser uma coisa óbvia: “Eu e o Bob conhecemo-nos em Salisbúria e, nas nossas conversas, sempre usamos o nome colonial da capital do país. É uma velha “joke” entre nós!”.

(A espaços, costumo relembrar com o meu colega embaixador João da Rocha Páris, também testemunha deste episódio, como então sentimos. Se acaso tivéssemos um buraco por ali, tê-lo-íamos aproveitado para desaparecer de cena).

O “how interesting!” com que o chefe da delegação britânica reagiu, com o seu “stiff upper lip”, fez com que todos os membros da nossa delegação, como por uma combinação prévia, começássemos a recolher a papelada.

Despedimo-nos e descemos as escadas, acompanhados de um miúdo do “desk” que nos veio trazer à porta, já a fungar de riso, entrando para os carros com exagerada pressa. Eu ia na viatura com o “herói” da tarde e não resisti: “Eh pá! Francamente! Aquela galga do recado do Mugabe! Não precisavas de ter dito aquilo! Ninguém acreditou!”

Cada um lê as situações como quer e o meu colega, ao contrário de nós, vinha radiante: “Não viste a cara dos bifes? Os gajos ficaram à rasca! Eles sabem que a nossa relação com África é muito superior à deles! Aquilo do Mugabe vai ficar-lhe a moer a moleirinha”. E rescostou-se para trás no Daimler, perante o silêncio profissional do Ribeiro, o motorista da embaixada ao volante.

Segundos passados, voltou à carga: “Tu queres saber como é que eu conheci o Mugabe?”. Não, não queria. 

O que eu gostava era saber se esse meu imaginativo amigo e colega, há muito na reforma, já mobilizou o tal conhecimento entre ambos para mandar “ao Bob”, lá em “Salisbúria”, um abraço de solidariedade, neste seu difícil dia de hoje.

(A fotografia “do Bob” é do tempo em que o meu amigo, de facto, o tinha conhecido)

domingo, novembro 19, 2017

Um amigo angolano


Há dias, troquei boas risadas e recordações, ao telefone, com um amigo angolano de há precisamente 35 anos. Conheci-o em Luanda, em 1982. Ele era um jovem diplomata da geração formada depois da independência. Eu chegara a Angola, ido da Noruega, já com sete anos de carreira. Já não sei como nos conhecemos, mas a verdade é que, entre nós, se estabeleceu de imediato uma empatia que dura até aos dias de hoje, transformada mesmo numa forte amizade. 

Nessa Luanda com recolher obrigatório, entre a meia-noite e as cinco da manhã, havia muito boa gente que já não se aventurava a circular depois do pôr-do-sol. Uma noite, depois de um jantar no “grill” do Hotel Trópico, onde vivi quatro meses, falei a esse meu recente amigo do mítico bairro popular do Sambizanga, onde frutificara o independentismo angolano. E tendo comentado que devia ser arriscado andar por lá, à noite, ele desafiou-me: “Mas tu queres conhecer o Sambizanga? Podemos ir lá agora beber um copo...”. Fiquei meio sem graça e no meu “Zero Quatro”, um Volkswagen “carocha”, a cair de podre, com buracos no chão por onde entravam baratas, que a tropa tinha deixado à embaixada, e que me estava distribuído, lá fomos nós, pela noite, a caminho das ruelas de terra batida do Sambizanga, beber um copo em casa de alguém. Alguém que logo passei a contar como mais um simpático conhecimento para o futuro. São assim as gentes de Luanda.

Costumo contar um episódio em que, com esse amigo, fui um dia a um cocktail no saudoso e belo Hotel Panorama. A certa altura, quis chamar a sua atenção para alguém que estava do outro lado da sala, que eu tinha a ideia de já conhecer de qualquer sítio. Expliquei então que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi necessário dar um outro pormenor: "é o que está a fumar". Foi então que o meu amigo reagiu: "Ora bolas! O preto? Já podias ter dito que era o preto...". Era, mas eu, "travado" pelo politicamente correto, estava a hesitar lhe dizer isso a ele, que também era negro. Nada como gente sem complexos para nos colocar à vontade.

Depois de sair de Luanda, continuei a ver esse meu amigo pelo mundo - de Lisboa a Nova Iorque e a Paris. E, de outros locais, íamos trocando mensagens. Até numa tasca transmontana, numa Festa do Avante, revivemos histórias e graças, porque os nossos reencontros são sempre imensamente divertidos. Noto que nunca tive com ele uma troca política de argumentos, talvez porque, como diplomatas, cabia-nos respeitar os interesses próprios dos nossos países, tentando estabelecer as “pontes” onde e como fosse possível, sem nunca agravar as circunstâncias que, em si mesmas, já eram por vezes muito complicadas.

Esse meu amigo angolano teve uma carreira de sucesso. Basta dizer que foi o primeiro embaixador do seu país na África do Sul, entre outros importantes postos e funções. Um dia, entrou para o governo, como secretário de Estado, por vários anos, em pastas diversas. Agora, no novo executivo angolano, sob a autoridade do presidente João Lourenço, o meu amigo Manuel Domingos Augusto tem a cargo a diplomacia do seu país, como novo ministro das Relações Exteriores.

Para as horas que tiver vagas na sua primeira visita a Lisboa, já combinámos uma boa conversa à mesa. O menu terá com certeza pouca política, algum futebol e muita amizade.

sábado, novembro 18, 2017

Grupo Culturgest


Aqui deixo, em registo para a posteridade, ”au complet”, o grupo que, durante anos (no meu caso, desde 2013), pelas 9.30 horas da manhã de certos dias, reuniu na Culturgest, sob a hospitalidade e a benévola tutela de Miguel Lobo Antunes. 

Reflexões, palestras e textos em jornais resultaram deste trabalho conjunto, parte do qual ficou registado no blogue Pensar Portugal.

Dezenas de pessoas de diversos área da sociedade portuguesa - do setor empresarial, da administração pública, de orgãos de soberania, das instituições europeias, da sociedade civil - contribuiram também para as atividades deste “think tank”, cujas ideias e propostas foram pessoalmente transmitidas ao primeiro-ministro e ao presidente da República.

Na imagem, da esquerda para a direita: Lino Fernandes, João Ferreira do Amaral, Júlio Castro Caldas, Miguel Lobo Antunes (de pé), João Salgueiro, Francisco Seixas da Costa, José Manuel Felix Ribeiro, João Costa Pinto e Fernando Bello.

Condecorações


O meu amigo e colega José de Bouza Serrano, publicou há pouco no seu portal do Facebook esta magnífica imagem. 

O embaixador Bouza Serrano foi chefe do Protocolo de Estado e é autor de um livro sobre o tema que faz escola entre nós. Várias vezes lhe telefonei de sítios longínquos, como ele se lembrará, inquirindo sobre a “doutrina” a seguir, em hesitações conjunturais...

A imagem lembrou-me uma historieta, que um dia já por aqui contei.

Em 1979, na Noruega, como encarregado de negócios de Portugal, chefiando a embaixada na ausência do embaixador, fui apresentado, com o meu colega espanhol Rafael Conde de Saro, atual Cônsul-Geral em Nova Iorque, ao rei Olavo V, durante uma cerimónia de gala no palácio real. Na altura, nenhum de nós tinha qualquer condecoração, pelo que devíamos parecer simples “pinguins” de casaca...

O soberano, que era um homem de grande bonomia e simpatia, quis colocar-nos à vontade e, numa inesperada cumplicidade, disse-nos: "Não olhem agora, mas vão notar que, atrás de vocês, está um embaixador - que não sei de que país é - cheio de condecorações, dependuradas na sua casaca. Devem imaginar que eu, como rei, já recebi imensas. Tenho a sensação de que, se um dia decidisse usá-las todas ao mesmo tempo, caía ao chão..." 

Rimos respeitosamente com a graça real e, passados uns instantes, olhámos. Era um diplomata latino-americano, que, tal como o cavalheiro da imagem de hoje, mas longe do seu exagero, se mostrava pouco dado à parcimónia com que estas distinções devem ser usadas.

sexta-feira, novembro 17, 2017

Globalização e realismo

Ainda antes do início do século, o então ministro grego dos Negócios Estrangeiros, Georgios Papandreou, organizava anualmente reuniões de reflexão e debate político-económico, para as quais convidava uma pessoa de cada um de cerca de trinta países. Durante vários anos, fui “o” português desse grupo, que reunia na Grécia, cabendo-me introduzir as temáticas europeias da atualidade.

Num desses encontros, um simpático economista, amigo americano de Papandreou, de quem eu não lera mais do que um ou dois artigos no “The New York Times”, fez uma apresentação que me marcou pelo seu brilhantismo. Mas que me deixou muito preocupado. O tema eram os efeitos assimétricos da globalização, quer nos países desenvolvidos, quer nas economias emergentes e em vias de desenvolvimento. Os impactos do fenómeno sobre a diversidade de tecidos económicos, à luz da experiência então já vivida, estavam, naturalmente, no eixo dessa reflexão. 

Para um país como Portugal, que atravessava ainda um período de reconversão industrial muito duro, fruto da perda de mercados protegidos, com um aproveitamento das “novas fronteiras” abertas pelo acordos da UE com países terceiros que estava longe de ser compensatório, devido ao nível tecnológico de muita da nossa oferta, os impactos sobre o emprego e a balança exterior continuavam a ser sérios. O diagonóstico do economista americano estava longe de sossegar e, curiosamente, punha em questão a narrativa eufórica sobre o processo de abertura das economias que nos era “vendido” (e, sejamos honestos, imposto) pelo “mantra” oficioso que dominava a máquina de negociação comercial externa da Comissão europeia.

Para muitos dos que estávamos reunidos na Grécia, o debate servia também como útil base para a projeção, que então já se fazia de forma incipiente, sobre os eventuais efeitos da globalização na estabilidade dos modelos de representação política nas democracias ocidentais. Recordo-me, contudo, que, à época, a ideia de que os desequilíbrios provocados nas economias dos Estados-membros da União poderia ter consequências detrimentais na governança global do processo integrador era ainda um tema praticamente arredado do debate.

Voltei a encontrar o amigo americano de Papandreou em Nova Iorque. Ele tinha entretanto ganho o prémio Nobel da Economia e viria a publicar o seu famoso “A Globalização e os seus descontentes”. Organizei em casa um interesante jantar com ele e com Jorge Sampaio. O economista chama-se Joseph Stiglitz. As suas teses são hoje mais do que conhecidas, muito embora ao seu estudo, já com quase duas décadas, ele tenha vindo a aditar variáveis que então só eram intuídas, mas que são hoje bem mais evidentes.

Lembrei-me muito de Siglitz, por estes dias, numa conferência em que participei em Turim, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, sob o tema “Vencedores e derrotados da Globalização”. Foi interessante revisitar as teses tradicionais em confronto, desde os que recusam que possa haver “perdedores” do processo, até aos que, mais ou menos subtilmente, desenham argumentários para limitar a liberdade de circulação dos fatores, por vezes recorrendo a remédios de cariz protecionista, passando também por quantos apenas tentam encontrar mecanismos para atenuar os efeitos mais nefastos da globalização.

A diferença face ao debate, de há quase vinte anos, na Grécia é que, por estes dias, já vemos mais claro, com o euroceticismo e com o Brexit, com a subida da extrema-direita e com fenómenos de rejeição da abertura comercial como o protagonizado por Trump, onde estão e como atuam os “descontentes” da globalização. E onde e em quem votam. Nos nossos debates, a China esteve muito presente, vista cada vez mais como uma ameaça e já sem a aura de “bondade” ou inocuidade que, há uns anos, a conduziu à OMC. Mas também por ali se analisaram os efeitos, nos salários e no emprego, daquilo a que eu chamaria a “globalização de proximidade”, do contributo de algumas economias do Leste europeu para o processo de desequilíbrio dentro da própria União.

Estamos hoje mais conscientes dos problemas com que nos confrontamos, talvez mesmo dos remédios para algumas das disfunções que vivemos, mas julgo poder concluir dos debates a que assisti que, perante o recuo que vivemos no tratamento multilateral do processo de globalização, o indispensável corpo institucional regulatório está hoje diminuído. Isso não é uma boa notícia para os perdedores e só acredita que isto é um jogo de “win-win” quem é ingénuo ou cínico.

Os interesses permanentes dos portugueses


Há meses, o professor Luis Valente de Oliveira convidou um conjunto de pessoas, oriundas de diversificados setores da sociedade portuguesa, para refletirem em conjunto sobre um tema da maior importância: “Os interesses permanentes dos Portugueses”. Tive o gosto de integrar esse grupo e dar a minha contribuição pessoal para o trabalho coletivo.

O grupo, que continua a laborar sobre outras temáticas, assume o nome de “Tertúlia dos Carrancas”, nome derivado do nome do palácio que acolhe o Museu Nacional Soares dos Reis, onde as reuniões têm lugar e cujo “Grupo de Amigos” as promove.

Na próxima 3ª feira, dia 28 de novembro, com o jornal “Público”, poderá ser adquirido esse primeiro estudo, que tem como relator o próprio professor Valente de Oliveira.

Claro que aconselho que comprem e o divulguem.

São três e meia da manhã...

... e eu vou deitar-me com as coisas assim. Logo veremos!