domingo, março 01, 2015

O dever

Não me parece uma falta de extrema gravidade a existência de uma dívida do dr. Passos Coelho à Segurança Social. Pode acontecer a qualquer um.

Só que o dr. Passos Coelho não é qualquer um, é o primeiro-ministro do país, a quem sempre exige uma conduta impoluta, como se vê a Justiça exigir noutro contexto.

Por isso, representa uma evidente falta de cultura democrática, em lugar de procurar justificar-se em formalismos, não ter apresentado desculpas públicas ao país. O país ficaria satisfeito e o primeiro-ministro teria saído bem desta pequena história. 

Assim, não saiu.

Renso

Quando o novo primeiro-ministro italiano, de quem antes pouco tinha ouvido falar (não acompanho em pormenor a vida política italiana, devo confessar), tomou posse, o seu nome - Renzi - ficou às voltas na minha cabeça. Aquele apelido dizia-me alguma coisa, mas não conseguia pensar o que fosse.

Um dia, a luz surgiu-me. Um nome "próximo" era vulgar aos meus ouvidos, desde a infância. Fazia parte dos amigos que, com o meu pai, se sentavam na esplanada do Girassol, no jardim, nas férias de Verão, em Viana do Castelo. Chamavam-lhe "Renso". Um dia, tinha eu aí uns oito ou nove anos, referi-me a ele como o "senhor Renso". O meu pai corrigiu-me: "Deves chamar-lhe senhor Coutinho. Só os amigos próximos o tratam por Renso" disse, com um sorriso enigmático. Tomei devida nota.

Passaram uns anos e, no grupo do Girassol, que o meu pai continuava a frequentar em férias, ouvi um dia dizer que "a mulher do Renso tem andado adoentada". Nessa ocasião, inquiri, finalmente, da origem do "petit nom". E fui esclarecido.

O "Renso" tinha sido colega de escola primária do meu pai. Na realidade, chamava-se Coutinho. A crueldade dos colegas levou-os a apodá-lo de "toucinho". Com o tempo, a miudagem veio a mudar criativamente o "toucinho" para "ranço". A corruptela da vida transformou, finalmente, o "ranço" em "renso". Daí ao "senhor Renso" foi um passo curto. As voltas que os nomes dão!

Que o Estado Islâmico não pegue nisto, é o mínimo que se pode desejar, atenta a incompatibilidade entre Maomé e o toucinho...

sábado, fevereiro 28, 2015



Epígrafe

De palavras não sei. Apenas tento
desvendar o seu lento movimento
quando passam ao longo do que invento
como pre-feitos blocos de cimento.
 
De palavras não sei. Apenas quero
retomar-lhes o peso   a consistência
e com elas erguer a fogo e ferro
um palácio de força e resistência.
De palavras não sei. Por isso canto
em cada uma apenas outro tanto
do que sinto por dentro   quando as digo.
 
Palavra que me lavra. Alfaia escrava.
De mim próprio matéria bruta e brava
-- expressão da multidão que está comigo.

José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

Regresso à escola

Há semanas, tive necessidade de obter uma certidão da minha licenciatura. Desloquei-me à secretaria da minha faculdade e, quando referi o ano de fim do meu curso, a simpática funcionária que me atendeu (já não era a Dona Irene, do meu tempo) voltou-se para as colegas e, como se apresentasse uma avis rara, disse alto: "Está aqui um aluno dos anos 70!". Ficou toda a gente a olhar para mim, comigo a não me reconhecer no qualificativo de "aluno"! A colega logo reagiu: "Esses anos já estão lá em baixo..." o que significava que jaziam nas catacumbas da faculdade tais registos do antanho, imagino que com patine de teias de aranha. (E devem ter ficado a perguntar-se: para que é que este homem quer uma certidão de licenciatura?). Dias depois, lá surgiram as papeladas que me diziam respeito e tiveram a amabilidade de me trazer, por curiosidade, no livro de registos, uma fotografia minha desses tempos, com forte cabelame e uma imponente bigodaça. As figuras que fazíamos!

Nos últimos anos, "regressei" à universidade. Já tinha feito uma incursão, há uns tempos, na Universidade de Aveiro, onde orientei uma tese de mestrado. Depois, na UTAD, presidi durante cerca de quatro anos ao respetivo Conselho Geral, uma experiência muito interessante, embora nem sempre fácil. Em Coimbra, colaboro com a respetiva Faculdade de Economia, de cujo Conselho Consultivo faço parte, desde há quase cinco anos. Na Universidade Autónoma, faço este ano letivo parte do corpo docente na área das Relações Internacionais. E, na Universidade Nova de Lisboa, além de integrar desde 2013 o Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, tive hoje a grata experiência de ser arguente em duas teses de mestrado na área das Relações Internacionais. Sabe-me bem este regresso à escola. 

Falando da Grécia


quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Tertúlias


Faço parte de várias tertúlias. Nenhuma delas tem uma agenda de intervenção pública, mas em todas aprendo coisas úteis. Como regra, congregam pessoas, homens e mulheres, que se sentem bem a falar umas com as outras, mesmo se oriundas de círculos muito diferentes e com perspetivas, políticas e não só, às vezes contrastantes. Algumas dessas tertúlias são semanais, outras acontecem todos os meses, outras "quando o rei faz anos". Umas são temáticas, outras de mero convívio, às vezes com copos e vitualhas à mistura. 

A tertúlia é uma magnífica terapia contra o sectarismo, a bem da tolerância. Ouvir os que pensam de forma diferente da nossa enriquece-nos. Conversar com quem connosco partilha identidades conforta-nos. O fim de ciclo de uma tertúlia começa a pressentir-se quando os debates se transformam em discussões acaloradas. Já assisti à diluição de algumas tertúlias de que fiz parte, algumas vezes com pena, outras com alívio. Mas sou um "tertuliano" militante, confesso.

quarta-feira, fevereiro 25, 2015

Ucrânia


Paulo Sande, Bernardo Pires de Lima e eu próprio discutimos na Económico TV a crise político-militar na Ucrânia.

Pode ver esse debate aqui e aqui.

Trocadilhos

Gosto de trocadilhos criativos na designação de lojas. Ontem passei pelo "Ás de Comer". Há dias, pela lavandaria "Lavarte". E lembrei-me da clínica veterinária com que deparei um dia no Rio: "Cãopacabana". A Maria Lúcia Lepecki, recém chegada do Brasil nos anos 70, foi quem me chamou pela primeira vez a atenção para esta inócua mas divertida aventura no reino da "paranomásia" (é verdade, é assim que isto se chama). Ela que se encantava com a involuntária ironia da "A Reparadora dos Anjos" e a quem uma vez levei uma fotografia da estreita "Rés vés", uma loja que havia em Campo de Ourique e cujo subliminar trocadilho só funcionava para quem se lembrasse da frase completa.

"Portugal no primeiro quartel do século XXI"

Terá lugar amanhã, quinta-feira, dia 26 de fevereiro, na Fundação Calouste Gulbenkian, a conferência "Portugal no Primeiro Quartel do Século XXI - Estratégias Rumo ao Futuro".

A realização será presidida pelo general Ramalho Eanes, contando com a participação do Bastonário da Ordem dos Engenheiros, eng. Carlos Matias Ramos, do presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, dr. Artur Santos Silva, do professor Jorge Miranda, do almirante Fernando Melo Gomes e de mim próprio.

Caber-me-á desenvolver o tema: "Política externa e diplomacia nacional - a envolvente europeia e mundial. Adequação da política externa portuguesa à nova realidade existente".

 

terça-feira, fevereiro 24, 2015

Elegia

já nada é o que era
e provavelmente nunca mais o será
e mesmo que o fosse
algo me diz que já não seria o que era
porque o que era
era o que era por ser o que era
do que eu me lembro muito bem
embora eu então não fosse o que agora sou
mas o que agora sou
ou estou a ser
é deixar de ser o que sou
porque eu sou deixando de ser
deixar de ser é a minha maneira de ser
sou a cada instante
o que já não sou
e o mesmo se deve passar com tudo o que é
motivo por que não admira que assim seja
quer dizer
que nada seja o que era
e se assim é
ou já não é
seja ou não seja


Alberto Pimenta, in 'Ascensão de Dez Gostos à Boca'

Esse mesmo!

Custa-me falar deste assunto, por razões facilmente compreensíveis. Mas sentir-me-ia pior não o fazendo.
 
Nos últimos três anos, este governo foi acusado de não ter uma política europeia. E não teve. Ou melhor, tinha a que lhe ditava o seu tropismo para um mimetismo silencioso e sorridente para com quem distribuía as cartas do jogo. Era cómodo, era barato e sempre ia "dando" uns milhões - pagos com juros de palmo a quem, na Europa rica, vive à tripa forra com a desgraça, e com os juros, dos outros. E ainda ficávamos obsequiosamente gratos, o que deve dar um gozo imenso a quem nos olha hoje com um irónico e sobranceiro sorriso setentrional.
 
Subitamente, o governo "decidiu" ter uma política europeia. Do silêncio fragoroso, emergiram vozes, que surgiram das Finanças, essência da política externa que nos resta. Só que, ao contrário daquilo que foi o sentido do combate europeu de Portugal durante décadas, a nova "coragem" política à mesa do Conselho de Ministros, que no passado nos colocava em saudável confronto com os contribuintes líquidos, na linha de defesa de uma Europa mais solidária, passou a revelar-se face aos deserdados da sorte europeia. Portugal "faz" de Benelux, finge de nórdico, tem tiques de ricaço, p'cebe?. Num duplo sentido, só percetível por alguns, quase poderíamos dizer que é a Cova da Moura a "armar" a Quinta da Marinha.
 
Aprendi na escola primária que colocarmo-nos ao lado dos mais fortes para poder bater nos mais fracos tem um nome muito feito. Esse mesmo!

Os embaixadores

 

Era uma vilória pequena, a uma grande distância de Lisboa. O dia estava muito quente. O embaixador, de passagem, decidira beber uma cerveja num snack-bar local. A sala tinha bastante gente, pelo que optou por uma mesa mais isolada, distante da porta, onde o ar condicionado parecia funcionar de forma mais eficaz. E entreteve-se a ler um jornal que encontrou por ali.

Uma exclamação fê-lo levantar os olhos: "Ó embaixador!". Tentou perceber quem o chamava, mas não viu ninguém dirigir-se-lhe. Pelo contrário, alguns dos circunstantes viraram-se para um cavalheiro que acabava de entrar, cuja cara não era muito percetível, com a luz da rua a recortá-lo por detrás. Viu-o cumprimentar, à passagem, vários dos presentes e sentar-se a uma das mesas. Era um homem alto, já bastante entrado na casa dos 70.

Um dos seus companheiros de mesa pediu para o balcão: "Ó Pinto! Traz aqui um café para o sr. embaixador. Em chávena fria, como ele gosta". Notava-se que o recém-chegado gozava de prestígio local. O silêncio e a atenção que envolviam as palavras com que se dirigia a quem o rodeava confirmavam isso mesmo.

O embaixador visitante estava cada vez mais curioso. Quem seria aquele seu colega? Conhecia bem a carreira e, muito em especial, sabia quem eram os que tinham ocupado postos de embaixador. Nenhum correspondia àquela figura.

Procurou fixar melhor a cara do novo cliente e, poucos instantes depois, fez-se-lhe luz: era de facto um diplomata, uma boa dezena de anos mais velho do que ele. Recordava-se vagamente que ele havia sido vítima de uma intriga e de uma perseguição por parte da hierarquia, pelo que acabara por nunca lhe ser atribuída a chefia de uma embaixada. Conhecia-o de vista, desde há décadas, mas não se recordava de, alguma vez, ter trocado com ele qualquer palavra. Estava reformado, há já uns bons anos.

A insistência com que fixava a mesa acabou por não passar desapercebida e o antigo colega cruzou com ele, de súbito, um brevíssimo olhar, que logo desviou. Reconhecera-o, pela certa, e pareceu ter ficado preocupado. Um cumprimento de outro cliente "Boa tarde, senhor embaixador!" foi recebido com um esgar inquieto pelo homem, que terá entendido que, naquela sala, estava alguém que sabia que o seu estatuto profissional não era exatamente aquele que a vilória tinha consagrado, provavelmente desde há vários anos.

A situação estava a começar a tornar-se algo pesada. O  embaixador, logo que pôde, pagou a cerveja e caminhou em direção à porta. À passagem pela mesa em que o seu velho colega de carreira estava sentado, lançou, alto, com um sorriso simpático: "Boa tarde, embaixador! Tive muito gosto em vê-lo!". E saiu. Satisfeito.  

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

José Sócrates

Há pouco, dei comigo a pensar que José Sócrates, com todas as acusações que sobre ele agora impendem por, alegadamente, ter quebrado o segredo de justiça ainda se arrisca, um destes dias, a ir dar com os costados a uma prisão.

Ilídio Monteiro


Há coincidências terríveis. Na passada semana, juntei-me com dois amigos num almoço, a convite de um deles. Já não estávamos os três juntos desde 1976, ano em que nos tínhamos deslocado numa delegação técnica portuguesa à Líbia. Foi essa mesma "aventura", de há quase 40 anos, que nos juntou.
 
Um dos membros dessa delegação tinha sido o engº Ilídio Monteiro, que nela representava a Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas, de quem falámos nesse almoço. Na decorrência dessa missão, aquele empresário acabaria por desenvolver vários e importantes negócios na Líbia, por décadas, os primeiros dos quais com base em protocolos que, no ano seguinte, foram assinados por uma nova delegação portuguesa enviada a Tripoli, em que também participei.
 
Há minutos, pela memória da semana dada por Marcelo Rebelo de Sousa na televisão, soube da morte muito recente do engº Ilídio Monteiro. Tive o gosto de me cruzar com ele várias vezes, ao longo dos anos. Era uma pessoa muito agradável, com humor e ironia, que gostava das coisas boas da vida, para além de ter sido um grande empresário no seu setor. Deixo aqui o meu pesar à sua família. 

domingo, fevereiro 22, 2015

Não, senhora ministra!

A ministra Maria Luís Albuquerque é, no plano técnico, uma das figuras mais competentes deste governo. Dirão alguns, mais cínicos e irónicos, que isso não é difícil... Talvez seja verdade, mas o que é indiscutível é que a senhora ministra das Finanças demonstra, com clareza, ter um perfeito domínio das questões que lhe compete tutelar, sendo mesmo capaz de o fazer com uma capacidade de explicitação pública muito superior ao seu antecessor. E lá virão os mesmos dizer que também isso, em si, não é obra por aí além... Quero com isto dizer que, goste-se ou não da política que defende - e eu não gosto mesmo nada - ela defende-a de forma capaz e a prova provada disso está no crescente "appeal" que faz nascer nas hostes do seu partido, onde, qual Cavaco Silva ao rodar o carro para a Figueira da Foz, surge sebastianisticamente como uma promessa, ungida daquela sedução pelos titulares das Finanças que, de tempos a tempos, empolgam os setores conservadores de um país que nunca soube fazer suas contas.

Dizia-se de um certo professor que tive que, entusiasmado pelo brilho que achava ter nas suas aulas, saía delas "aos ombros de si próprio". A senhora ministra das Finanças, verdejante oásis no deserto político em que se move, ter-se-á também deixado deslumbrar pelo nível da sua "performance" dentro do executivo de que faz parte e tem vindo a dar mostras de um comportamento que, frequentemente, roça já um perfil de arrogância e alguma sobranceria. Vê-se isso no parlamento onde dá ares de que mais ninguém "sabe da poda". Não fosse o seu sorriso gaiato e a sua cara laroca a ajudarem e as coisas seriam ainda bem piores.

O destino político da senhora ministra estará, daqui a meses, na mão dos portugueses. E esses, a seu tempo, dirão de sua justiça. Só que, até lá, a senhora ministra não tem um mandato que lhe permita, ainda que temporalmente, conspurcar fora de portas o nome do país honrado em que exerce funções. Alguém deveria conseguir explicar à senhora ministra que o espetáculo a que se prestou ao lado do seu colega alemão foi de uma indignidade, quase sem par, na representação externa do Estado. Deixar-se utilizar como instrumento comparativo por parte de Berlim na sua cruzada de isolamento da Grécia configurou uma das mais tristes figuras que alguma vez vi fazer a um governante português na ordem externa - e, podem crer!, já vi bastantes e bem lamentáveis. E prolongar essa atitude no Eurogrupo, para entrar no "quadro de honra" com que Berlim premeia os "alunos" bem comportados, ajudando cobardemente à humilhação de um país também amigo e aliado, provocou um incómodo muito raro no país, ao que se diz até nas hostes da maioria. Este governo - e meço as palavras - consegue, dia após dia, surpreender-nos na sua capacidade de rebaixar a dignidade do Estado que circunstancialmente titula.

Angola, a hora da política


Há tempestades anunciadas, pelo que é irresponsável não tomar, a montante de ventos e chuvas fortes no horizonte, medidas que possam atenuar os seus efeitos. O que está prestes a ocorrer nas relações económicas luso-angolanas é uma dessas tempestades. E o Estado português parece ter enterrada a cabeça na areia.

O país não terá ainda plena consciência das ameaças que hoje pairam sobre o futuro de largas dezenas de milhares de portugueses que trabalham em Angola, com as dificuldades que já sentem nas transferências salariais que suportam outras tantas famílias em Portugal. Quem encheu de PME’s sucessivas caravanas ministeriais, com “números” otimistas nas televisões, tem hoje a obrigação de se revelar eficaz em iniciativas políticas para compensar os efeitos da crise que afeta conjunturalmente a economia angolana.

Foi garantido pelo senhor ministro dos Negócios Estrangeiros que o chefe de Estado angolano declarara ultrapassada a tensão política bilateral. Então por que esperam as nossas autoridades para daí tirar as necessárias consequências? A relação luso-angolana é estratégica? Em que é que isso se pode traduzir, em gestos pró-ativos de boa vontade por parte de Angola ou no tocante a facilidades de crédito a implementar por Lisboa, com vista a apoiar pontualmente os nossos operadores económicos, naquele que é um dos mercados essenciais para as nossas empresas?

Os empresários e os trabalhadores portugueses deram provas, ao longo das últimas décadas, de uma cooperação leal com um país que, se lhes deu oportunidades, beneficiou também da sua competente retribuição, de que a paisagem contemporânea da vida angolana é talvez o melhor testemunho.

Não quero ensinar o pai-nosso ao vigário, mas lembraria que a diplomacia económica não é apenas o passarinhar entre aeroportos e salões dourados, não se esgota na assinatura de protocolos de duvidosa implementação. A ação dos agentes diplomáticos só é eficaz se reforçada pela intervenção dos atores políticos, cuja determinação visível na defesa do interesse nacional é também a condição sine qua non para a sua avaliação.

O senhor presidente da República tem aqui uma particular responsabilidade. Nesta especial relação, o papel dos chefes de Estado tem sido historicamente essencial. O professor Cavaco Silva prestaria um último serviço ao país – e, por consequência, ao seu próprio prestígio – se desse mostras públicas de se empenhar ativamemente na procura de soluções com vista a minorar os graves problemas que, no relacionamento entre Portugal e Angola, estão aí já ao virar da esquina.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

sábado, fevereiro 21, 2015

Bielorrússia

Um dia de 1996, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português recebeu uma nota da embaixada da Bielorrússia em Londres, cujo titular estava acreditado em Lisboa, pedindo "as melhores diligências" para que, de futuro, em língua portuguesa, o nome do país fosse designado por "Belarus" e não por "Bielorrússia". A ideia, ao que parece, era distanciar o país da imagem da Rússia. Em russo, a palavra "Bielorrússia" significa "Rússia branca". Recordo-me de ter tido cuidado de mandar explicar ao governo de Minsk que, em Portugal, o Estado não se arrogava o direito de controlar a tradução dos topónimos.

A Bielorrússia é um estado encravado entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia, com uma democracia de "faz-de-conta", muito típica de alguns Estados que emergiram após a eclosão da União Soviética. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, que se mantém à frente de um regime que limita as liberdades essenciais dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país.

Lukashenko teve artes de conseguir que a sua capital, Minsk, fosse escolhida para os encontros tendentes a discutir a pacificação da Ucrânia e, na passada semana, lá o vimos, impante, abrir caminho às negociações entre a Alemanha, França, Rússia e Ucrânia. Este papel "mediador" de Minsk já havia sido reconhecido em 1992, quando foi criado o "grupo de Minsk", que tem a seu cargo, no âmbito da OSCE, o acompanhamento da questão do Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão. Não deixa de ser irónico que seja necessário sediar na capital de um país liderado por um autocrata encontros de paz. Mas é a vida...

Em 2002, a Bielorrússia cruzou-se no meu caminho. No âmbito da presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), ao tempo em que representava diplomaticamente Portugal junto da organização, em Viena, coube-me gerir um caso interessante com a Bielorrússia. Descontente com o teor dos relatórios que a "Missão" (já explicarei porque coloco a palavra entre aspas) da OSCE em Minsk produzia, que punham a nu as arbitrariedades anti-democráticas das suas autoridades, o governo de Lukashenko optou por um procedimento hábil: forçou discretamente os trabalhadores bielorrussos a desvincularem-se da Missão e não renovou os vistos aos elementos estrangeiros que nela trabalhavam. Assim, ao final de alguns meses após esta ação ter sido desencadeada, a Missão deixou de ter condições para funcionar. E o governo de Minsk anunciou unilateralmente a data de 31 de dezembro de 2002 como limite às suas atividades, argumentando que se tinha "esgotado o seu objeto". Para a Bielorrússia, as coisas eram imperativas: a Missão da OSCE em Minsk tinha de encerrar naquela data.

Como presidente do Conselho Permanente da OSCE, em Viena, fiquei com a "batata quente" na mão. Portugal iria ficar na pequena história da organização como o país que "deixara encerrar" a Missão em Minsk, facto que podia vir a ser um precedente muito perigoso para outros Estados membros da OSCE, eles próprios pouco satisfeitos com o que a OSCE reportava sobre as fragilidades da sua vida política interna. Os meus colegas ocidentais - com destaque para os EUA, França, Reino Unido e Alemanha - pressionavam-me para que eu tentasse encontrar uma solução para que a OSCE pudesse continuar em Minsk. A Holanda, que nos sucederia na presidência no dia 1 de janeiro de 2003, preparava-se já para "lamentar" ter o início do seu mandato marcado por esse facto.

Portugal "portara-se bem" com a Bielorrússia até então. Contra a vontade da União Europeia, trabalhara para que o seu ministro dos Negócios Estrangeiros viesse a cimeira da organização no Porto, no início do mês de dezembro, a fim de que fosse possível tentar que os então 55 Estados da OSCE conseguissem acordar conclusões consensuais (isso foi possível, pela última vez, nessa cimeira do Porto, em 2002, e nunca mais o seria na história posterior da OSCE). Simultaneamente, eu próprio cuidara em manter sempre uma relação cordial com o meu colega bielorrusso em Viena. Era um homem grande, um cientista feito embaixador, que percebia claramente que a "bofetada"que a Bielorrússia estava prestes a dar à OSCE não deixaria de ter consequências negativas para o seu país, que já se defrontava com sanções por parte da União Europeia e com um ambiente de isolamento e hostilidade crescente. Ser embaixador da Bielorrússia era (e nunca deixou de ser) uma tarefa muito difícil.

Com o meu colega e "deputy", embaixador Carlos Pais, embora sem a menor instrução orientadora de Lisboa, decidimos propor ao Secretário-Geral da OSCE e, posteriormente, à Bielorrússia uma saída para a organização manter uma presença em Minsk, com um mútuo "face-saving". Nos termos desse "deal", a "Missão OSCE em Minsk", que tinha um mandato próprio, aprovado anos antes do Conselho Permanente da OSCE, encerraria formalmente, como os bielorrussos desejavam, no fim do ano. Entretanto, Em contrapartida, propúnhamos a instalação de um "Escritório OSCE em Minsk", com um novo mandato, que tentaríamos negociar com Minsk e fazer aprovar pela OSCE até ao final do ano, para entrar em vigor no primeiro dia do ano seguinte.

Depois de alguma hesitação, a Bielorrússia "comprou" a nossa ideia e fez deslocar a Viena, por duas vezes, uma delegação chefiada por um representante pessoal de Alexander Lukashenko, com o qual discuti, durante horas intermináveis, por cerca de quatro dias, o texto do novo mandato, que seria depois vertido num "memorandum of understanding". Posso hoje revelar que os quatro países ocidentais, que, com a Rússia, eram vulgarmente referidos como os "major players" dentro da organização, "fizeram-nos a vida negra" até ao último instante, com exigências nas funções futuras do "Escritório" de que os bielorrussos nem queriam ouvir falar.

No termo de uma presidência que, por razões que não vêm aqui para o caso, já havia sido muito difícil, este trabalho de "go-betweener" revelou-se de extrema complexidade e o ter-se conseguido um resultado positivo muito se ficou a dever ao meu colega Carlos Pais que, com uma "paciência de santo", me ajudou a inventar fórmulas de texto imaginativas que combinassem um mínimo de eficácia operacional futura do Escritório, com uma "ambiguidade criativa" que conseguisse fazer a ponte. E tivemos sucesso: a "Missão" encerrou em 31.12.02 e o "Escritório" iniciou a sua existência em 1.1.03.

A prova provada da eficácia do Escritório seria dada, oito anos mais tarde, pela própria Bielorrússia, que decidiu impor a data de 31.12.10 como data limite para a atividade daquela presença da OSCE, obrigando então, e definitivamente, à saída da OSCE de Minsk, ao que parece descontente com o facto da organização ter denunciado, por intermédio daquele Escritório, mais uma vaga das tradicionais irregularidades eleitorais praticadas pelo governo de Lukashenko. A prazo, veio assim a constatara-se que o mandato que Portugal desenhou foi mesmo incomodamente eficaz.      

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

As caras da Europa

Há 17 dias, escreveu-se aqui:

"Na história recente da União, as coisas têm sido sempre assim. Por isso, não devemos estranhar que, por Bruxelas, a verdade seja por vezes aquela que um dirigente desportivo por cá lapidou um dia: “o que é verdade hoje pode não o ser amanhã”. É evidente que o sismo que a Grécia provocou na Europa tem uma natureza diferente de tudo aquilo a que as suas instituições estão habituadas a reagir. A Grécia deu ares de estar a funcionar “fora da caixa”, porque colocou questões numa matriz diversa da que está nos “manuais”.

Mas a Europa tem uma sabedoria maior do que vulgarmente se pensa. Nas horas que correm, interroga-se sobre o limiar de intransigência da Grécia, tentando perceber como lhe será possível negociar algo que seja um face saving para ambas as partes. Se Atenas der algum espaço de manobra, a Europa encontrará uma solução. Foi sempre assim, recordem-se."

Alguns acharam isto otimista. Mas isto é a Europa.

Sampaio sobre a Grécia e Portugal

 
“Portugal, desde que entrou para a União Europeia esteve sempre na formação dos consensos necessários. Vivi isso como Presidente da República com os primeiros-ministros que tive, com os negociadores, procurando precisamente que estivéssemos sempre a trabalhar para encontrar um denominador comum, em torno de princípios de solidariedade, participantes num projecto que é comum. Nos tempos que vamos vivendo, acho que os países que têm sofrido mais, não devem pôr-se uns contra os outros. Devem, pelo contrário, encontrar as alianças possíveis, num esforço efectivo de encontrar uma solução que possa servir a União Europeia. Não faz sentido os países estarem uns contra os outros. Não faz sentido… Só quero dizer isto assim, que toda a gente percebe. Não quero dizer mais do que isto. O que é preciso é que possamos continuar na União Europeia, independentemente das dificuldades que possamos encontrar, a procurar as melhores soluções para a nossa caminhada comum.”
 
("Público" 20.2.15)

O método Varoufakis

No âmbito da preparação de uma atividade docente universitária, que versa sobre a negociação diplomática, estou a recolher dados para poder utilizar o processo negocial grego na Europa como um modelo de estudo.
 
Independentemente do seu resultado final, esta negociação aberta, com forte utilização agressiva dos mídia, configura uma tática pouco comum no mundo multilateral.
 
O governo grego tinha duas frentes essenciais a atender. Desde logo, a mais vital, eram as instituições europeias e os seus parceiros nesse âmbito. Não menos importante era a sua frente interna, onde os resultados no plano europeu serão sempre medidos à luz das promessas eleitorais muito firmes que o Syriza fez durante sua campanha. Mas houve sempre uma terceira dimensão instrumental que também esteve nos objetivos de Atenas: a opinião pública europeia, com que os gregos pareciam contar, através do levantamento de uma onda de simpatia que acabasse por condicionar os restantes governos.
 
É neste particular que se insere o esforço de diabolização da Alemanha, de que a Grécia quis erigir-se como contraponto "afetivo". Ao vocalizar a acusação de "má da fita" à Alemanha, o governo grego procurou "isolar" Berlim, contando com um sobressalto na opinião europeia que, na realidade, não se verificou. Da parte dos países do ajustamento, nos quais os gregos esperavam poder suscitar uma onda de simpatia, por terem partilhado agruras similares, nenhuma reação forte emergiu. Pelo contrário, os "ajustados" procuraram, numa lógica puramente nacional, afastar o seu caso do da Grécia, garantindo a benção dos "powers that be" - isto é, da própria Alemanha, de cuja boa vontade dependem. Falhada uma empatia operativa por parte da França e da Itália (com a qual a Grécia começou por cometer uma indiscrição imperdoável), Atenas voltou-se para a Comissão Europeia. que esteve à altura dessa confiança. Mas também, neste caso, ao dar conhecimento público do "non paper" de Moscovici, a Grécia quebrou uma relação de confiança. O desespero não é bom conselheiro num processo negocial. 
 
No plano multilateral, as coisas não haviam começado bem. A "receção" em Atenas ao presidente do Eurogrupo, Dijsselbloem, foi lida por muitos como uma provocação. Se a intenção era "assustar" Bruxelas, o modo pouco urbano como a parte pública dessa visita decorreu não ajudou em nada. Já no Eurogrupo, o governo grego começou por colocar a sua questão através da contestação da filosofia subjacente ao processo europeu tradicional, tentando situar o problema num patamar diferente daquele em que assentava o paradigma da UE. Como que para reforçar essa distância, utilizou mesmo uma figura, como o seu ministro das Finanças, que passou uma mensagem - e até uma postura física e coreográfica - de não estar disponível para ter um debate assente nos termos de referência habituais. Hoje, em perspetiva, constata-se que a postura de Varoufakis não ajudou nem ajuda, "to say the least". Ele estava convencido de que a originalidade académica das ideias que trazia acabaria por impor-se com naturalidade, porque colocaria em fácil evidência que havia alternativas sensatas ao modelo dos programas de ajustamento que a Europa utilizara até então. E, neste particular, a Grécia parecia julgar que, ao propor os modelos de "bonds" quase eternos, tinha "descoberto a pólvora". Isso fê-los, aparentemente, descuidar na preparação de planos B e C, essenciais para amortecerem recuos, sem que eles fossem vistos como humilhações. Ora são apenas estas que parecem estar agora na agenda, acompanhadas de uma escassa boa vontade do parceiros para as travestirem por forma a "salvar a face" à Grécia. A cristalização pública de posições nunca ajuda.
 
Pela minha experiência, que naturalmente vale o que vale, o efeito surpresa, numa negociação multilateral, raras vezes funciona. O passado ensinou-me que é sempre muito importante "trabalhar" um-a-um os parceiros, enquanto aliados potenciais, a montante dos encontros coletivos, tentando garantir antecipadamente, da parte de cada um deles, uma atitude de apoio nesse contexto negocial subsequente. Para tal, é essencial partilhar com aqueles que julgamos potencialmente permeáveis aos nossos argumentos o essencial daquilo que iremos apresentar, dando-lhes razões para os convencer das vantagens que poderão retirar do facto de poderem vir a colocar-se ao nosso lado. Na vida internacional, salvo no caso das ditaduras ou dos regimes autoritários, os governos não têm mandato para poderem mudar internacionalmente de posição (muito menos radicalmente) sem terem garantido que as suas opiniões públicas podem vir a entender a racionalidade dessa mesma alteração. Ora os gregos, muito por falta de tempo, mas igualmente por manifesta falta de jeito e alguma arrogância voluntarista, não fizeram devidamente esse trabalho de casa e criaram uma expetativa de reconhecimento público da "bondade" natural das suas propostas que, muito claramente, não se concretizou. Os governos europeus não foram minimamente pressionados pelas suas opiniões públicas para ajudarem a Grécia a sair do seu isolamento e o resultado foi o que se viu.
 
Este texto é escrito antes da nova apreciação no Eurogrupo das derradeiras propostas gregas e tem apenas uma intenção de discussão metodológica, não de apreciação da substância dos temas.     

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