quinta-feira, dezembro 29, 2011

Havel e Corvacho

Neste final de ano, morreram Václav Havel e Eurico Corvacho.

Visitei Havel em Praga, acompanhando António Guterres, no final dos anos 90. Conheci pessoalmente Corvacho, em 1974/75, nos tempos do MFA.

A morte de Václav Havel mereceu grandes e merecidos títulos. O herói da Revolução "de veludo", um humanista e um democrata, concitou loas de todos os quadrantes. Contrariamente a Alexander Dubček, Havel escapou à habitual tragédia das figuras-charneira da História e viu, em vida, consagrado o seu papel. Intelectual e escritor, apoiou o caminho do seu país em direção à União Europeia, depois da partilha da Checoslováquia. E morreu em glória.

Muito menos leitores deste blogue ouviram falar de Eurico Corvacho. Foi um militar de abril, próximo da "esquerda militar", o grupo que então mais se ligou ao Partido Comunista Português. Foi comandante da Região Militar Norte e a sua imagem surgiu pela primeira vez aos portugueses, pela televisão, a denunciar a atividade de um grupo de extrema-direita que se opunha à Revolução, o ELP - Exército de Libertação de Portugal. Foi membro do Conselho da Revolução. E morreu esquecido.

Havel e Corvacho tinham pouco a ver um com o outro? O discurso maniqueu, tão no "l'air du temps", dirá que Havel quis a democracia para o seu país e que Corvacho apenas queria implantar uma nova ditadura. Eu digo que, cada um, à sua maneira, teve uma ideia de liberdade para o seu país. A História favoreceu aquele que, afinal, tinha razão. Ainda bem.

Nadir Afonso

O "Diário de Notícias", que hoje comemora 147 anos (parabéns!) traz na primeira página esta magnífica obra de Nadir Afonso, o arquiteto e pintor flaviense, com mais de 90 anos. Achei que valia a pena reproduzi-la.

Sentimentos

Deveria merecer o maior respeito de todos nós o sentimento da população da Coreia do Norte, expresso nos últimos dias, pela norte do seu "líder" Kim Jong-Il. 

Quando vejo alguns comentários medíocres e jocosos, na imprensa e nos blogues, a propósito do sofrimento público daquela gente, sinto a obrigação de lembrar que os norte-coreanos vivem uma dupla tragédia.

Por um lado, são vítimas inocentes de um dos mais fechados regimes do mundo, que, há mais de 60 anos, lhes cerceia qualquer informação, os policia intelectualmente e os faz serem meros figurantes num gigantesco "trompe l'oeil" que edulcora a tristíssima realidade do mundo que habitam. E, por outro, esse mesmo condicionamento psicológico indu-los a serem muito genuínos na expressão dos seus sentimentos, porque os conduz a tomar como uma irreparável perda a desaparição de um dos obstáculos à sua própria libertação.

A solidariedade que nos deve merecer a tragédia que afeta os norte-coreanos obriga a que respeitemos a sinceridade da sua dor.

Direitos humanos

O ministério dos Negócios Estrangeiros russo publicou, pela primeira vez, um relatório sobre o cumprimento dos direitos humanos no mundo. 

Nesse texto, Portugal é criticado por não ter transposto uma diretiva comunitária sobre direito de livre circulação e residência. A diplomacia russa considera também que 24% dos brasileiros são discriminados em Portugal.

Abre imensas e legítimas expectativas o facto de Moscovo manifestar a sua preocupação com o tema dos direitos humanos.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Túnel do Marão

Desde há vários meses, as obras do túnel que um dia atravessará o Marão estão suspensas. 

Há uns anos, um empresário de águas (e já então feliz proprietário de um "franchising" das Pousadas de Portugal, a quem comprou por-tuta-e-meia uma das mais carismáticas pousadas do país, conferindo-lhe hoje uma decoração digna de uma "pensão da Tia Anica"), conseguiu mobilizar, por muito tempo, a justiça de Penafiel, para tentar ser compensado por alegados (e, depois, não provados) prejuízos ambientais ao seu negócio, causados pelas obras do túnel. Com o tempo ganho, a estrada se não afastou da tal "pensão". Surgiu depois um novo aliado: os constrangimentos financeiros do país. E assim está bloqueado um dos projetos mais importantes para a diluição da interioridade transmontana, uma terra onde, note-se, nunca se construíram autoestradas ao lado umas das outras. O túnel, incompleto, por lá está, com as estruturas a estragarem-se no inverno e os ex-empregados desempregados. Quem tem culpa? Sei lá! Só sei quem a não tem...

Não tarda muito e ainda ouço a gente da minha terra a cantar a velha canção: "quem me rouba, quem me rouba, quem me rouba é ladrão. Ai, ai, ai, inda ontem fui roubado, ai, ai, ai, nas voltinhas do Marão".

A data

Leio nos jornais que a Samoa vai mudar de data nesta sexta-feira. Isto é, ao final do dia de quinta-feira passará diretamente para sábado. Como é que isto é possível? É muito simples. Por essa zona do mundo existe o meridiano da chamada "linha internacional da mudança da data" e a Samoa "muda-se" para o lado mais ocidental desse meridiano, para alinhar com o ritmo de vida da Austrália e Nova Zelândia.

Há mais de duas décadas, tive de ir a uma reunião internacional (de trabalho, acreditem!) às ilhas Fidji e, no percurso, que fazia na direção EUA-Austrália, tinha de atravessar aquela linha imaginária. Ao pedir as "ajudas de custo", no "4º andar" do MNE, as simpáticas senhoras minhas interlocutoras fizeram-me notar que estava a pedir um dia a menos do que aqueles a que tinha direito. Com efeito, a certo passo, eu saía de Honolulu ao final da tarde de, por exemplo, terça-feira e, meia-dúzia de horas depois, chegava ao aeroporto de Nadi, nas Fidji, já de quinta-feira. Lembro-me bem da pergunta: "mas afinal, o senhor doutor, onde é que dorme na 4ª feira?". Foi complicado fazer perceber que, devido à deslocação de leste para oeste, os meus dias anteriores iriam ser cada vez maiores, ao ponto de um deles ser simplesmente eliminado à chegada à "linha internacional", atravessada a qual se "saltava" um dia.

Sempre imaginei a "tragédia" que teria sido explicar essa viagem ao mundo administrativo das Necessidades, se acaso ela se tivesse feito em sentido contrário...

terça-feira, dezembro 27, 2011

Líbia

No fim deste ano que viu o mundo árabe passar por convulsões cuja resultante final está muito longe de estabilizada, lembrei-me desta história, que contei já algumas vezes a amigos. Mas que nunca tornei pública. Agora, já posso fazê-lo.

Naquele dia, na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia.

Íamos os dois sós, no carro. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas!

Estava a chegar à conclusão que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Ficámos longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Que será feito dele?

A Rússia e o mundo árabe

Muito se tem falado das dificuldades de alguns países do ocidente para encontrarem um modus vivendi com as instáveis decorrências políticas das "primaveras árabes", depois de, durante décadas, terem tido os ditadores derrubados como amigos públicos. E ainda "a procissão vai no adro". O caso líbio absolveu parcialmente as culpas de alguns e a realpolitik, que não tem apenas cultores deste lado, vai fazendo o resto.

Mais intrigante tem sido a posição russa em todo este contexto. A Rússia é um parceiro histórico na região, desde os tempos da União Soviética. Mesmo num período em que a sua debilidade económica era mais notória, o seu estatuto no Conselho de segurança da ONU, bem como as relações que mantinha com certos atores problemáticos da região, justificaram a sua permanente cooptação para os quadros de diálogo, de que o "quarteto" (com os EUA, a UE e a ONU) sobre a questão israelo-palestiniana é caso mais notório.

É sempre interessante acompanhar a linguagem de Moscovo no tocante ao Médio Oriente alargado. Por ela perpassa uma preocupação em evitar a sedimentação de uma presença intrusiva dos países ocidentais nos diversos processos, na tentativa de contrariar o que lhe parece ser um desequilíbro geopolítico que se possa criar em seu desfavor. Esse cuidado é historicamente matizado por algumas notas de adesão, embora frequentemente em moldes algo equívocos, a temáticas tidas como de interesse comum ou já consagradas no "politicamente correto": o combate ao terrorismo, a não-proliferação nuclear, o livre acesso à rotas de fornecimento petrolífero. Sem surpresas, muito menos enfático é o seu apoio ao "empowerment" democrático dos povos árabes e à preservação, sem relativismos culturais, dos direitos humanos.

O caso sírio é aquele onde a posição russa se revela em todo o esplendor da sua ambiguidade. Colocado perante um caso trágico de violência e repressão, num dos cenários onde tem ainda algum "leverage", Moscovo tem vindo a deixar passar os dias e os mortos, numa frieza descredibilizante do seu papel à escala global. O inaceitável "wording" do seu projeto de resolução na ONU, equiparando o que não é comparável - as ações violentas de setores da oposição com a barbaridade da repressão governamental -, revela bem que o poder russo continua tentado por reflexos de meros jogos de poder.

É pena. Por razões de outros grandes equilíbrios à escala global que não vêm para o caso, o mundo precisava de uma Rússia mais aderente e construtiva de uma agenda multilateral e normativa de princípios, que potenciasse a sua influência e se revelasse bastante menos dependente de uma mercantil lógica de fins, evitando a colagem a regimes a que o destino aponta a inexorável direção do caixote do lixo da História. O que se passou, há precisamente duas décadas, em Moscovo, deveria servir de lição. A Moscovo. 

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Ping-pong

Se os leitores deste blogue quiserem ter o cuidado de revisitar, um pouco mais abaixo, o post "À esquina da Gomes", sobre o café mais carismático de Vila Real, poderão verificar na fotografia que, sobre as suas instalações. há uma série de janelas, que aparentemente pertencem agora aos escritórios da seguradora francesa Axa. Mas nem sempre foi assim: nesse andar, por muitos anos, situava-se a "urbanização", um serviço chefiado pelo engº Barreto, pai do conhecido sociólogo António Barreto, um dos membros de um avantajado rancho de filhos, alguns dos quais cruzei nos tempos de liceu.

Com um deles, o também sociólogo José Barreto, fui co-autor de uma bem sucedida patranha (numa cidade que sempre teve uma história de grandes "partidas"), algures em meados dos anos 60. 

Sabedores que o Sport Club de Vila Real tinha organizado, ao longo do dia, um torneio de ping-pong, instalámo-nos os dois na "urbanização" (o Zé Barreto deve ter subtraído a chave ao pai), ao final da tarde, e, em nome do "Norte Desportivo", um jornal "azul" de referência nortenha, contactámos telefonicamente a organização do torneio. Explicámos que, lamentavelmente, não havia sido possível ao jornal enviar um repórter, pelo que pedimos que nos fossem transmitidos os resultados do torneio pelo telefone. "Todos?", perguntou o nosso interlocutor, abismado, lá da sede do Sport Club, na Rua Direita. "Todos, claro! Queremos dedicar uma página completa ao torneio". E foi assim que, durante aí uns 20 minutos, o pobre do homem (que sabiamos bem quem era, esperando que o contrário não fosse verdade!) lá ilustrou, com abundantes números, a "reportagem" a "sair" no dia seguinte: "José Fraga/Claudino Areias: 21-12; 19-21; ganhou José Fraga "à melhor", com 23-21". E por aí adiante, com dezenas de outros jogos. 

O Zé Barreto tinha, entretanto uma função vital: como a chamada era supostamente "interurbana", havia que fazer "bip" a cada três minutos, o que se tornava progressivamente difícil, com a "barrigada de riso" que íamos tendo. Quanto tudo acabou, para além de um sentimento de pena pelo nosso esforçado interlocutor, perpassou-nos algum temor sobre o que se iria passar no dia seguinte. Mas logo se veria!

Na tarde desse dia, colocámo-nos estrategicamente numa mesa da Pompeia, o café em frente à tabacaria do Bragança, onde o Fernando "Choco" traria, na sua motorizada, o rolo dos jornais, chegados no comboio da tarde. Por essa hora, notava-se uma pequena multidão na rua, pelos passeios entre a loja do Chico "americano" e a funerária do Zézé. Imagina-se que, derrotados ou campeões, muitos participantes do torneio da véspera estariam ansiosos em ver o seu nome em letra de forma. Arribado o "Choco", vimos os escassos "Norte Desportivo" disputados com ânsia, com aquelas folhas enormes, cuja tinta sujava as mãos, a serem percorridas... em vão!

Lembro-me de me ter safado pela porta que a Pompeia tem para a avenida, temente aos impactos da desilusão. Nunca percebi quantos, com o tempo, nos identificaram como autores da "partida". Uma coisa tenho a certeza: o meu interlocutor dessa noite ainda hoje, mais de quatro décadas passadas, cruza-se comigo com cara pouco amigos. Ó Sr. Mário, deixe lá, já foi há tanto tempo!

Em tempo: dedico este post ao meu amigo Zé Barreto, leitor do blogue, que deixou um comentário no "À esquina da Gomes", onde éramos companheiros de mesa.

Notícias do défice

Neste "boxing day" (no Reino Unido, o dia de hoje é um feriado em que se davam prendas aos mais pobres e em que agora se vai aos primeiros saldos), as notícias do Google trazem-me isto, em destaque de um matutino, sob o chocante título "Filipa de Castro termina noivado": "Filipa de Castro estava noiva de Pedro Tabuada e, no Verão, chegou a dizer que se iriam casar no próximo ano. Mas algo correu mal entre o casal e a relação terminou há algumas semanas".

Devo dizer que sinto um perfeito embaraço, como representante diplomático português, por ser incapaz de titular externamente esta parte - pelos vistos, bastante relevante - do nosso país. É que eu nunca ouvi falar nem na senhora (que está, aparentemente, "destroçada", mas, felizmente, a "aguentar-se firme") nem no cavalheiro. Ora, não se explicando o que cada um faz ou a razão pela qual neles se fala, presume-se que isso é uma evidência que só ignaros sociais desconhecem. Ora, já no verão, a acreditar no jornal, Filipa ("de Castro", será parente da Inês?) já tinha falado em casamento (onde? à CNN? à Bloomberg? à "Flash"?), o que prova ser figura conhecida (o jornal fala em que é "empresária"), que justificou essa entrevista sazonal. Mas também não conhecia (ainda) Pedro Tabuada, sobre cuja atividade não são dados pormenores (o que é ainda mais amesquinhante para mim, porque, como aqui se diz, "cela va sans dire") com o qual "algo correu mal" (o jornal, com certeza, não deixará, oportunamente, de explicar o quê), o que justifica que a relação já tenha terminado "há algumas semanas". 

"Há algumas semanas?" E então a imprensa deixou passar todo esse tempo sem reportar o evento? A nossa comunicação social já não é o que era. 

domingo, dezembro 25, 2011

Anónimos

Não, este post não é sobre os prudentes comentadores deste blogue que, por modéstia, não nos privilegiam com os nomes e apelidos, obrigando-nos a um esforço de imaginação sobre quem poderá estar por detrás dos seus judiciosos textos.

A história é do tempo da velha Emissora Nacional e foi-me ontem contada por um amigo.

Uma locutora, com aquele serenidade das gerações em que a "locução ofegante" ainda não fizera escola e se não transformara em pandemia, apresentava uma obra de música clássica. Melhor: duas obras, que se iam suceder, na emissão, uma à outra. E, desta forma, iluminou os "senhores ouvintes":

- Seguidamente, senhores ouvintes, vamos ter oportunidade de ouvir uma obra musical de um anónimo do século XVIII. Logo de seguida, do mesmo autor, porque segundo a nota que aqui tenho é também de um anónimo, ouviremos uma outra sua obra. Esperemos que gostem.

"Vim a pé!"

Fiquei gelado, quando ouvi a frase: "Vim a pé!".

Era uma noite de inícios de 2009, em Montfermeil, uma cidade na periferia de Paris, onde há hoje fortes tensões étnicas e em que vive uma significativa comunidade portuguesa, felizmente alheia a essa triste realidade. Vínhamos a sair da "mairie" em direção a um pavilhão gimnodesportivo, onde iria ter lugar uma recolha de fundos para um ação social, organizada por um cidadão português, que eu tinha decidido apoiar com a minha presença.

No trajeto entre os dois espaços, ia casualmente acompanhado de um simpático casal português, já idoso. Como muitas vezes acontece neste tipo de circunstâncias, perguntei-lhes de onde eram e há quanto tempo estavam em França. O marido disse-me ser da Beira, creio que de Sabugal, e que tinha chegado a França em 1967. Comentei a coincidência desse ser precisamente o ano da minha primeira deslocação a este país. Lembrava-me bem que saíra de Lisboa, da "rotunda do relógio", à boleia, no final de julho, chegando a Paris no dia 4 de agosto.

"E o meu amigo como veio?, perguntei.

"A pé. Vim a pé", respondeu-me, com grande serenidade, sem qualquer dramatismo.

"A pé? Desde Portugal? Não apanhou nenhuma boleia? Não fez parte do caminho de comboio ou de autocarro?

"Não, vim a pé, todo o caminho, da minha terra até Champigny, com uns amigos. Demorei algumas semanas a chegar", adiantando-me um número de dias que não fixei, mas que era impressionante. Explicou-me então que dormiam nas bermas das estradas e que cantavam, para se animarem. "Rebentavam-nos os pés, mas tinha de ser", explicou, com um sorriso de total naturalidade.

Intimamente, sem o deixar transparecer, eu estava chocado. Tinha ouvido falar muito das trágicas condições em que os portugueses saíam do país nesses anos 60 e 70, das passagem da fronteira "a salto", dos "passadores", da exploração de que eram objeto por parte de outros seus compatriotas, das condições quase infra-humanas do seu transporte para França e Alemanha, mas - imperdoável desconhecimento meu! - nunca ouvira dizer que alguns haviam palmilhado todo o caminho em direção a um futuro em que colocavam toda a esperança.

Hoje, dia de Natal, lembrei-me desse nosso compatriota de Montfermeil. Na pessoa dele, desejo o melhor Natal possível às centenas de milhar de portugueses que, com dificuldades muito diversas, foram forçados a abandonar o seu país e que aqui ajudaram, com o seu trabalho e com a sua dignidade, a tornar a palavra seriedade um sinónimo de Portugal. Nunca lhes agradeceremos demais por isso.

sábado, dezembro 24, 2011

À esquina da Gomes


Sabem o que é a Gomes? A maioria dos leitores deste blogue não sabe, estou certo. Tal como acontece em todas as cidades, Vila Real tem um café de culto. Neste caso, a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, nunca custou nada atravessar a rua.

A Gomes começou na "Gomes velha", onde ainda me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e onde hoje se vai pelo bolo-rei, pelas "cristas de galo", pelos "jesuítas" ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz. Foi depois construído o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que nunca ninguém viu funcionar. E que tinha, no alto de um mastro, uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta à noite, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi, em Vila Real, o primeiro café onde as mulheres podiam ir, com naturalidade, sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre "em cima") com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada das senhoras na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", de "polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do Zé Araújo), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, onde se colocavam jornais com suporte de madeira e onde, durante muito tempo, esteve o telefone preto. Essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria isso, mas quem não for de Vila Real sabe lá quem era o Achilles) induzem uma visível timidez em certos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio, seguido de cochicho. No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que se prolonga então pela esplanada. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas.

Foi pela Gomes que eu comecei a parar, ainda nos tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política. Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste blogue me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram ao Governo civil.

A Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da Situação ou da Oposição - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem. Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. E por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada, o pessoal, embora simpático, tem um ar um tanto errático e demasiado "casual" para o meu gosto - eu venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José. Mudaram agora de traje, depois de uns balandraus que usaram, pretendidamente de côr laranja, muitas vezes já a justificarem uma visita aos sucessores do Alarcão (se não é vila-realense, passe para o parágrafo seguinte). Prova de uma mudança radical da Gomes é o facto de, julgo que pela primeira vez na sua história, "A Voz de Trás-os-Montes", no ano passado, não trazer um anúncio natalício que já havia ficado histórico na cidade: ao canto de um grande espaço em branco, havia uma nota que dizia: "se a Pastelaria Gomes necessitasse de publicidade, utilizaria este espaço"*. As instituições - e a Gomes é uma instituição - fazem-se de simbolismos. E estes devem respeitar-se, sem o que a identidade se esvai. Atenção, ó gente da Gomes!

Hoje, dia de Natal, a Gomes estará fechada, creio eu (com a crise, sabe-se lá!). Mas há um lugar que, com toda a certeza, não "fecha" e à volta do qual a cidade gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do (regressado) Pelourinho. Por lá nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, a esquina é sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que do vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outros), nesta época natalícia logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que se utiliza até aos Reis. Por lá se passeiam, nos dias 25 de dezembro, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas da véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, a memória sedimentada desde a infância. Como aqui agora fiz, "preso", este ano, a Paris.

Em tempo: o anúncio regressou a "A Voz de Trás-os-Montes". Ainda bem! Um vila-realense amigo mandou-me esta imagem do antigo anúncio. Veja-se a evolução semântica de "reclame" para "publicidade"

Coreia do Norte

O ambiente de obsessivo secretismo - e, por essa via, de incessante especulação - que se cria em torno da maioria dos regimes ditatoriais teve o seu auge, desde sempre, no caso limite da Coreia do Norte. Quer ao tempo do fundador da "dinastia", Kim Il-Sung, quer no do seu filho, Kim Jong-Il, as historietas sobre alguns, nunca absolutamente confirmados, aspetos da sua vida privada, desde os excessos materiais às aventuras afetivas, fizeram, por décadas, a delícia de uma certa imprensa. Como nada é possível provar, tudo é possível dizer.

A chegada de um novo líder ao poder, em Pyongyang, aguça agora a curiosidade dos media. Não deixa de ser interessante ver o "Le Figaro" dedicar hoje quase meia página à exegese da fotografia que acima reproduzo, retirada de um filme com dois dias. Para quê? Para especular sobre a "misteriosa criatura" da jovem que aparece atrás de Kim Jong-Un. Dando por adquirido o princípio de que "na cultura tradicional coreana, um homem ainda celibatário na casa dos 30 anos é mal visto", o correspondente em Seul do jornal conservador francês detém-se em detalhe sobre a imagem da jovem, adiantando que "a sua silhueta é tão fina que voga no seu fato tradicional ligeiramente decotado", perguntando-se se "esta mulher tão jovem e de atitude tão elegante será a nova primeira-dama da Coreia do Norte". O jornal nota ainda "o rosto oval delicado, a pele de porcelana, de uma jovem que parece uma pena". Caramba! Que perspicácia! Eu não consigo "ler" tanto na fotografia.

O jornal vai ao ponto de qualificar este intrigante momento como "o mistério da mulher no mausoléu de Kum Su-San". Para o jornalista, confortavelmente instalado a sul do paralelo 38º, apoiado nas investigações do "especialistas" locais e num "rumor transmitido por uma fonte clandestina no local, mas impossível de verificar", "a feliz eleita seria diplomada da prestigiada universidade Kim Il-Sung e seria dois anos mais nova que o 'grande sucessor'", sendo originária de Chongjin, na costa nordeste da península. Cuidando o "safe side" dos desmentidos da História, o jornalista não exclui a hipótese de se tratar, muito simplesmente, de uma filha do falecido Kim Jong-Il, logo, apenas de uma irmã de Kim Jong-Un. Mas essa é uma possibilidade que, por pouco romântica, apenas merece o prudente registo.

Nos tempos em que o comunismo prevalecia em Moscovo, o ocidente criou a "kremlinologia", uma especialidade que lia sinais das posições relativas de dirigentes nos palanques e nos encontros internacionais, bem como no "body-language" das grande figuras, daí extraindo conclusões para as futuras sucessões de poder. À nossa modesta escala, lembro-me de ouvir comentar, em fotos dos "dias da raça", o menor gesto de simpatia de Salazar para qualquer vizinho de fraque, daí deduzindo cumplicidades e hipotética gestação de herdeiros, descontados os imponderáveis da lei da gravidade. 

Esses mistérios constituem a eterna "graça" das ditaduras, coisa que a simplicidade do voto democrático logo destrói. É pena ver jornais com o antigo prestígio do "Le Figaro", onde preponderaram as penas de François Mauriac ou Raymond Aron, a encherem hoje as suas páginas com este tipo de especulações. Talvez isto se faça só até ao dia em que o brilho de melhores fotografias, oriundas de Pyongyang, permita um tratamento mais "profissional" nas colunas "especializadas". É que, verdade seja dita, os verdadeiros dias felizes para a democracia só estarão adquiridos quando o "Paris Match" cobrir um casamento presidencial na Coreia do Norte. Nesse dia, porém, a notícia passará para o "Figaro Magazine".       

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Bom Natal para todos

A História e a justiça

A Assembleia Nacional francesa aprovou ontem a criminalização do "negacionismo" de todos os genocídios, isto é, o seu não reconhecimento ou desvalorização no discurso público e mediático. O que estava imediatamente em causa era o reconhecimento do alegado genocídio da população arménia pelos turcos, entre 1915 e 1917, tema altamente sensível em Ancara, que reagiu com esperado desagrado.

Sobre o tema do "negacionismo", há duas posições opostas.

Há quem considere, à luz dos trágicos extermínios nazis, que não se pode deixar morrer a memória às mãos de uma dolosa contestação de factos incontroversos, que representam crimes contra a humanidade, para os quais é imperioso manter alerta a consciência das gerações seguintes.

Outros entendem que não é pelo direito que se corrige a perceção da História e que a negação pública de uma evidência se combate pelo esclarecimento e pela demonstração de uma verdade que, sendo-o, deve ser suficientemente sólida para enfrentar o seu contraditório público.

Anos 60

O "Nouvel Observateur" desta semana traz um dossiê sobre os anos 60. Nele aparece esta bela fotografia de Cartier-Bresson, tirada na Brasserie Lipp, no boulevard Saint-Germain.

A imagem é auto-explicativa: uma França, clássica e perplexa, lê o "Le Figaro", uma mais moderna lê o "Le Monde".

Talvez uma foto mais atualizada colocasse a jovem com o "Libération" à frente. Ah! e naquelas mesas da Lipp já não se pode pedir apenas uma bebida, tem de se almoçar ou jantar.

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Passagem de poder

Bela prática aquela a que ontem se assistiu em Espanha: os ministros cessantes e aqueles que os vão substituir encontram-se numa cerimónia pública, na presença dos altos funcionários do ministério, num gesto que tem o simbolismo da continuidade das funções de Estado. Em França, embora creio que sem discursos formais, tem lugar um ritual idêntico.

É pena que, em Portugal, não se tenha consagrado este costume, digno de uma grande democracia, que reflete e projeta publicamente a naturalidade da alternância. No nosso caso, à saída da cerimónia da Ajuda, onde os novos e ex-ministros se saúdam, os futuros titulares apenas encontram, à saída, um automóvel para os transportar, sendo que os antigos governantes têm geralmente de contar com um amigo que os leve de volta a casa. 

Com a vida, aprendi que alguns formalismos têm um valor que vai para além do simbólico e que ajudam a sedimentar o respeito democrático.

Artur Santos Silva

A Fundação Calouste Gulbenkian acaba de escolher Artur Santos Silva para seu futuro presidente.

A Gulbenkian é uma instituição que, desde sempre, tem prestigiado fortemente o nosso país. Artur Santos Silva, como aqui referi há alguns tempos, é uma das raras personalidades portuguesas que reúne uma quase unanimidade, pelo que dá totais garantias de poder vir a preservar, com o seu dinamismo e abertura, o fantástico legado de Calouste Gulbenkian. A sua escolha é a prova de que o bom-senso ainda prevalece neste país.

Um forte abraço de parabéns, Artur!

Força, Eusébio!

Eusébio da Silva Ferreira, a velha glória de todos nós, está doente.

Eusébio faz parte do património de um país que não pode dar-se ao luxo de dispensar aqueles que lhe deram grandes alegrias, particularmente nestes tempos em elas já são tão poucas. 

Força, Eusébio. E esperança, embora verde...

... e logo se vai ver!

Ver aqui .