Ontem, acordei com a data - 11 de novembro - na cabeça. À hora de almoço, “caiu a ficha”, como dizem os brasileiros: era a data da independência de Angola, claro!
Ainda há dias, ao preparar a intervenção que, na terça-feira passada, ia fazer no Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio de Janeiro, tinha-me lembrado de que, com argúcia e visão estratégica, o Brasil tinha sido o primeiro país a reconhecer a República Popular de Angola, proclamada nessa noite em Luanda. Portugal, a viver o ano da “brasa” de 1975, a 14 dias de um 25 de Novembro que iria desempatar a sua luta política interna, perdeu tempo a perceber por onde ia a História. E isso iria ter o seu preço.
Ao longo da minha carreira, assisti a várias receções comemorativas da data, promovidas por embaixadores angolanos, em diversos lugares do mundo. Mas a mais memorável dessas ocasiões foi mesmo em Luanda, em 1982, poucos meses depois da minha chegada, exatos sete anos depois da independência de Angola.
Nesse dia de há precisamente 40 anos, o embaixador Silva Marques chamou-me para me informar que teria de representá-lo na receção que o governo de Angola oferecia ao corpo diplomático estrangeiro, ao final da tarde, no Hotel Costa do Sol. Não podendo ser o ministro conselheiro, Fernando Cardoso, por uma qualquer razão, a substituí-lo, competia-me a mim a tarefa.
Eu estava na carreira há pouco tempo, aquele era o meu segundo posto. Angola estava em guerra civil, a Luanda política era uma realidade política que eu procurava conhecer, pelo que a ocasião acabava por ser muito interessante para observar os circuitos diplomáticos e oficiais locais.
Em Luanda, os estrangeiros viviam em bolsas de contactos, quase sempre muito diversas e distantes entre si, as entidades políticas locais refugiavam-se em circuitos pouco acessíveis. Romper essas fronteiras era um processo complicado, pelo que encarei a tarefa com grande curiosidade. E, pela tarde, ainda com uma bela luz, lá fui, no meu vetusto Volkswagen “carocha” preto, com um buraco no chão por onde às vezes entravam baratas, que tinha sido herdado da tropa colonial, guiando pela Corimba e pela Samba, a caminho do Costa do Sol, na estrada costeira para sul.
À chegada, como era de regra, depois de uma inspeção de segurança nada rigorosa para os tempos que se viviam, fomos recebidos pelo Protocolo e encaminhados para o que recordo ser um espaço exterior. Por ali estavam os diplomatas estrangeiros e, presumo, gente do Ministério das Relações Exteriores de Angola. Algumas senhoras davam graça à festa, mas poucas.
Numa Luanda tensa, em conflito, não era de estranhar que os convidados se juntassem em grupos, por afinidades óbvias: europeus e outros “like-minded” a um lado, diplomatas dos países socialistas a falarem entre si, com alguns africanos a dividirem-se. Sendo dos mais jovens dos presentes, conhecendo ainda poucos embaixadores, devo ter acostado a alguns “encarregados de negócios” desemparelhados, suplentes como eu era.
Embora recentemente terminado, depois de anos de obras paradas, o Costa do Sol estava longe de ser o principal hotel da cidade. Acima dele, na hierarquia das unidades hoteleiras de então, estavam os hotéis Presidente, Trópico e Panorama. O edifício não deixava de ter a sua graça, situado num lugar cimeiro sobre o mar, um pouco antes do Futungo de Belas, que era o antigo conjunto turístico então ocupado pelo presidente da República.
Naquele hotel, pouco tempo depois, viriam a ser alojados militares portugueses na reserva, que foram para Angola ao serviço da Coteco, que dava treino técnico ao militares angolanos, empresa que creio ligada ao almirante Rosa Coutinho. Um desses oficiais era um amigo pessoal dos tempos do 25 de Abril, o piloto da Força Aérea, Arlindo Ferreira, que infelizmente já lá vai, há muito. Por razões a que a política da época não era alheia, esses militares, por regra, teimaram sempre em evitar todo e qualquer contacto com a nossa embaixada. A exceção era o Arlindo que, com alguma regularidade, vinha jantar a minha casa, comigo a ir uma vez ou duas ao Costa do Sol, a seu convite. Mas isso só iria acontecer meses mais tarde.
A receção oferecida pelas autoridades angolana no Costa do Sol era de pé, um cocktail tradicional. De início, surgiram canapés e, claro, bebidas. Dizia-se que, mais tarde, ia haver um jantar. O convite anunciava isso.
O dia caiu, rápido, como acontece em África. A certo ponto, já na noite, passada mais de uma hora desde que por ali errávamos, de copo na mão, enfardando alguns escassos croquetes e salgados, vagueando entre conversas, detetou-se uma agitação e correrias de pessoal, prenunciando o óbvio: a chegada das autoridades.
Foi então que vimos um grupo de uma boa dúzia de governantes atravessar, com alguma ligeireza, a zona onde nos encontrávamos, para o que abrimos alas. À frente, vinha o presidente José Eduardo dos Santos, que nos saudou com um sorriso e um gesto de cabeça, sem cumprimentar nem dizer nada a ninguém, como aliás sucedeu com todos os que o acompanhavam. Duas ou três senhoras integravam o séquito.
O grupo dirigiu-se de imediato para uma mesa que estava alinhada num dos lados da receção e abancou. Os seus componentes ficaram sentados ao longo da mesa, mas só de um lado, ficando a olhar para as centenas de pessoas presentes, num modelo “última ceia”. Perante a multidão de gente de pé, eram os únicos sentados.
De imediato, do edifício do hotel, como que por milagre, surgiu um batalhão de empregados, que serviu essas pessoas, que começaram logo a comer. Nós, imagino que algumas escassas centenas de convidados, ali ficámos, a olhar a ceia do senhor presidente e do seu grupo, com os nossos copos na mão, quiçá já vazios, porque ninguém cuidava de nós. Não voltávamos as costas à mesa presidencial, por respeito, pelo que ali ficámos impotentes espetadores do voraz assalto feito às vitualhas pelas autoridades. O nosso apetite, valha a verdade, ia crescendo, na constante visão do grupo oficial bem saciado.
E foi assim que tudo se passou durante mais de meia-hora, durante a qual alguns embaixadores, menos preocupados com as consequência de uma saída “à francesa”, foram abandonando discretamente a cena, a caminho dos seus carros, cansados da deselegância a que eram sujeitos. Os diplomatas mais júniores - e, como é natural, o jovem primeiro-secretário de embaixada representante do poder colonial recém-cessante que eu era - mantiveram-se em jogo.
O ágape das autoridades terminou no momento em que o presidente decidiu levantar-se da mesa, com os seus restantes convivas a seguirem-no. Depois de uns instantes com seguranças em correrias, as autoridades abalaram com a prestreza com que tinham chegado, a caminhos dos Mercedes cheios de luzinhas azuis e vermelhas a brilhar que se viam ao fundo.
Finalmente, nós, afinal os convidados para o evento, íamos ter o nosso prémio, embora em modelo de “terminação”, como na lotaria: o tal batalhão de empregados surgiu com pratos e travessas para servir os resistentes que estoicamente tinham aguentado a sessão, diplomatas e pessoal angolano, unidos pela fome. Mas, claro, não tendo direito a mesas e muito menos a cadeiras, contentámo-nos com uma refeição volante, naquele modelo onde se tenta dar garfadas e partir a comida com uma só mão, segurando o prato com a outra, com o copo, em regra, num equilíbrio instável entre dedos sobejantes, na ausência de uma terceira mão com que a natureza, desatenta às das exigências do protocolo, não nos brindou. Mas teve de ser rápido: o recolher obrigatório já vinha a caminho.
Foi assim o meu primeiro 11 de Novembro oficial.