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quarta-feira, agosto 08, 2012

Dívida

No andar na linha do Estoril onde passava muitos dos seus dias de reforma, o velho diplomata recebia a visita daquele colega mais jovem, que sabia que ocupava um cargo de chefia média nas Necessidades. Era alguém com quem apenas se tinha vagamente cruzado, em algumas escassas ocasiões de trabalho. Dele só tinha, como imagem, a chamada "opinião dos corredores", a qual, num ministério onde as pessoas tendem a viver muito distantes umas das outras, funciona como uma espécie de "processo individual", em permanente atualização por conversas ouvidas. Dessa imagem fazia parte a ideia de que se tratava de um rapaz mais esperto do que inteligente, com uma ambição não ponderada por uma ética exigente e que, até no casamento, não descurara a procura de alguém que o ajudasse a subir socialmente. Nada que fosse novo no tecido humano da "casa", como era bem sabido. Enfim, o velho embaixador estava algo intrigado e curioso com o que iria sair daquele inesperado pedido de conversa.

O colega mais jovem trouxera-lhe, como oferta, uma garrafa de um vinho branco, cuja qualidade elogiou bastante e que esperava que o embaixador apreciasse. Era "lá da quinta", uma subliminar referência a presumíveis origens abastadas, que douram sempre um currículo social em construção. O embaixador pediu à mulher para colocar o vinho a refrescar e, minutos volvidos, ultrapassados que foram os comentários em torno das notícias mais recentes sobre as movimentações na "casa", a conversa foi direita ao tema que o visitante pretendia abordar: ia haver promoções dentro de pouco tempo, os candidatos eram muitos e o jovem vinha pedir ao embaixador se acaso não poderia "deixar cair uma palavra" em seu favor junto do secretário-geral, cuja proposta a fazer ao Conselho diplomático seria, como sempre, decisiva. O argumentário era estafado, embora porventura verdadeiro: estava já há muito tempo em Lisboa, fora ultrapassado "de forma indecente" na última promoção e esta era uma oportunidade para, num prazo razoável, poder vir a obter uma chefia de missão no estrangeiro. Como o embaixador era um amigo de peito do secretário-geral, sabia-se que uma palavra sua - "com o prestígio que o senhor embaixador tem!" - podia fazer toda a diferença.

O embaixador estava surpreendido com o topete do jovem. Afinal, mal o conhecia e tinha tido o desplante de vir meter-lhe uma "cunha", de uma forma tão descarada. Deixou correr a conversa e, sem se comprometer, usando circunlóquios, o velho diplomata divagou um pouco sobre a "carreira", contou algumas histórias (como se sabe, os embaixadores gostam de contar histórias...) e citou casos passados de promoções, bem como de algumas desilusões nas ditas, relativas a colegas conhecidos. Com as artes do "métier", não disse nem que sim nem quem não. E, assim, o jovem atrevido ficou sem saber se, no final, ele faria, ou não, uma "démarche" a seu favor, junto do secretário-geral.

Entretanto, tinha chegado a hora do lanche. O embaixador disse à mulher para trazer um Alcains de qualidade, que um general qualquer lhe tinha oferecido, abrindo, para acompanhar o queijo, a garrafa de vinho branco que o jovem colega lhe trouxera. Mudando de conversa, serviu o vinho, que até nem era mau de todo, embora comentasse que um tinto, ou mesmo um porto, talvez acabasse por ser mais adequado. Por largos minutos, com a conversa já muito longe do tema anterior, o embaixador foi insistindo com o colega mais novo para o acompanhar no esvaziar da garrafa, o que este fez, tomando dois ou três copos.

Fazia-se tarde e despediram-se, sempre sem qualquer compromisso assumido. Regressado à sala, o embaixador recebeu uma leve reprimenda da mulher, pelo facto de, em lugar de ter guardado a garrafa que lhe havia sido oferecida, anunciada como de grande qualidade, para uma ocasião mais própria, tê-la praticamente gasto num improvisado lanche, forçando mesmo o ofertante a beber grande parte dela. Não tinha sido bonito!

O embaixador riu-se e a mulher só veio a perceber que, no gesto do marido, tinha havido alguma especial intenção quando este lhe disse: "A garrafa? Não quis ficar a dever-lhe nenhum favor. Na saca a trouxe, na barriga a levou"...

segunda-feira, agosto 06, 2012

Diplomacia e ping-pong

Devo dizer que ontem fiquei muito surpreendido - positivamente surpreendido - com a excelente prestação dos nossos jogadores de "ping-pong" (dizer "ténis de mesa" acho normal, mas chamar à modalidade "tenisdemesismo" como ontem surgiu na televisão, é de um ridículo atroz) nas Olimpíadas. Não fazia a mais leve ideia de que o desporto tivesse evoluído tanto, em Portugal.

Veio-me à memória, neste contexto, que a Embaixada de Portugal em Luanda organizou, nos anos 80, um torneio de ping-pong entre todos os seus seus funcionários. Chefiava aquela nossa imensa missão diplomática o embaixador António Pinto da França, que conferia ao trabalho uma dinâmica muito pouco usual, feita de empenhamento profissional e da geração de um excecional ambiente de relações humanas. Leia-se, a este propósito, o seu divertido (e bem instrutivo, para se perceber Angola) diário de Angola*, a que se seguiu a publicação do um outro diário sobre a anterior estada na Guiné-Bissau**, a que só não faço excessiva publicidade porque fui o autor do prefácio.

Julgo que a ideia do torneio foi do nosso colega Júlio Vasconcelos, tendo merecido grande entusiasmo por parte de toda a gente, numa terra onde havia muito pouco de lúdico para fazer. Juntaram-se várias ofertas para prémios, que já não sei bem como foram obtidas, numa Luanda onde havia uma quase total ausência de bens à venda nas lojas. O embaixador anunciou-nos que decidira contribuir para os prémios do torneio, com a oferta de uma dúzia de garrafas de um vinho da Adega Cooperativa de Tomar. Tratava-se de um temível "néctar" cuja mais notória qualidade tinha sido consagrada como "bom para decapante"- expressão consagrada pelo Fernando Andresen Guimarães, pelo José Guilherme Stichini Vilela e por mim próprio -, tal a sua acidez e agressividade no paladar. Nos frequentes e muito simpáticos almoços e jantares promovidos pelo embaixador na sua residência, o tal vinho "imbebível" surgia, a espaços, à mesa, o que logo nos levava a uma forçada e conjuntural abstinência, feita sob a troca de olhares cúmplices entre nós, com alguma surpresa do embaixador, que observava incrédulo a nossa conversão coletiva a uma pontual cura de águas.  

Como "vingança" pela presença do nabantino produto, surgiu então, entre nós, uma ideia. Decidimos que o 3º classificado do torneio de ping-pong teria direito a 7 garrafas, o 2º classificado a 4 garrafas e o 1º classificado seria "punido" apenas com 1 garrafa, cumulados com outros prémios. (O critério seguia uma historieta, à época famosa, sobre os supostos "prémios" atribuídos pelo PCP a jovens "pioneiros", que entravam num concurso: o 3º classificado tinha tido direito a três semanas de férias na Bulgária comunista, o 2º classificado a uma semana e o 1º classificado a um fim-de-semana.)

E lá teve lugar a cerimónia de entrega dos prémios, presidida pelo próprio embaixador. Nunca percebemos se ele se deu conta do estranho critério de premiação seguido. Nada nos disse, mas todos ficámos com a sensação de que poderá não ter apreciado excessivamente o nosso gesto de humor, que apenas pretendia transmitir um subtil protesto... Um destes dias pergunto-lhe!

* "Angola, o dia-a-dia de um embaixador, 1983/1988
** "Em tempos de inocência - um diário da Guiné-Bissau"

terça-feira, julho 31, 2012

O convidado surpresa

O nosso embaixador havia-me dado me conta de que a sugestão que eu fizera fora vista com alguma perplexidade. Estava numa visita oficial ao Chile, a convite do respetivo governo, naquele final de 2000. No belo edifício que acolhe o Ministério das relações exteriores, o meu homólogo oferecia-me um simpático almoço. Com antecedência, perguntaram-me se eu queria convidar alguém, em especial. Eu disse que sim e indiquei um diplomata chileno, de quem era amigo pessoal.

A questão, para quem a entendesse como tal, é que esse diplomata era um antigo militar do exército de Pinochet, que havia acedido à diplomacia por essa via. O seu percurso na carreira diplomática chilena, no lento regresso da democracia ao país, embora com Pinochet ainda vivo, não estaria a ser muito fácil. Por essa razão, a minha sugestão, se bem que acatada com prontidão, terá sido vista com uma certa estranheza.

Para mim, tudo era muito simples: tratava-se de um amigo, com quem coincidira num posto no estrangeiro e com o qual, ao longo desses anos e nos posteriores contactos, nunca perdera um segundo a discutir política - talvez porque ambos sabíamos que, dadas as nossas opostas posições de partida, esse era, como foi, o segredo para deixar frutificar a nossa amizade.

Na minha intervenção durante o almoço, cuidei em saudar e agradecer a presença do meu amigo. A certo passo, veio à baila da conversa o meu programa de visita em Santiago. Na parte oficial, entre vários outros pontos, incluia-se uma deslocação ao palácio de La Moneda, para apresentar cumprimentos ao presidente da República em exercício. Ao falar-se da parte não oficial, dei conta de, nessa própria manhã, ter ido colocar um ramo de cravos vermelhos na campa de Salvador Allende.

Nesse instante, alguns olhares na mesa cruzaram-se, como que interrogando-se sobre o eventual antagonismo entre o simbolismo dessa homenagem e a escolha que eu fizera como meu convidado pessoal. Estou certo que este último, conhecendo-me bem, foi, seguramente, o menos surpreendido de todos os convivas, em face daquela minha revelação.  

domingo, julho 15, 2012

Credenciais

A apresentação de credenciais por um embaixador, junto de um chefe de Estado estrangeiro, é um ato protocolar que difere bastante de país para país, dependendo dos usos e costumes locais, muitos deles marcados pela respetiva história. Em muitos casos, o próprio chefe de Estado introduz alterações às práticas nacionais, de acordo com a sua personalidade.

Foi o que sucedeu, aqui em França, com o presidente Nicolas Sarkozy. Sendo Paris uma das capitais do mundo com maior número de embaixadas, e tendo alguns países a propensão para não deixarem os seus embaixadores "aquecer o lugar", o ritmo de apresentação de credenciais acaba por ser muito intenso. Ao que me dizem, o presidente Jacques Chirac, não obstante o peso desse formalismo, fazia questão de falar uns minutos com cada novo embaixador, deixando perguntas ou comentários que tocavam as relações bilaterais. O seu sucessor, Nicolas Sarkozy, tinha optado por um fórmula mais "leve". Cerca de 20 novos embaixadores eram colocados, lado-a-lado, numa sala e o presidente cumprimentava-os sucessivamente, recebendo as respetivas cartas credenciais, as quais, de imediato, passava para o lado, para um seu colaborador, deslocando-se para frente do diplomata seguinte, até concluir a vintena de cumprimentos.  Nessa altura, os embaixadores eram chamados a colocar-se numa espécie de semi-círculo em frente ao presidente o qual, por escassos minutos, trocava com alguns deles umas palavras de circunstância. Alguns colegas entenderam sempre este método demasiado expedito e menos conforme com a dignidade da sua função como representantes de um Estado estrangeiro. Outros compreendiam que, com uma agenda política carregada e com as relações diretas entre os chefes de Estado e de governo a processarem-se, nos dias de hoje, muitas vezes diretamente, era pouco sensato estar a pedir ao chefe de Estado francês um maior dispêndio de tempo. 

Em 2009, na minha apresentação de credenciais, testemunhei uma cena curiosa. Eu tinha acabado de saudar o presidente francês, deixando-lhe, em brevíssimos segundos, uma palavra de identificação de quem eu era e entregando-lhe as minhas cartas credenciais. Nicolas Sarkozy passara, de imediato, para o diplomata seguinte, uma senhora, representante de um país africano, que procedeu de forma idêntica à minha. Ou quase. Mal o presidente havia seguido para a cena com outro embaixador, senti um toque no braço, por parte da minha colega, que, em voz baixa e preocupada, me disse: "Que acha que devo fazer? Esqueci-me de entregar ao presidente as minhas cartas credenciais!", mostrando-me, com uma cara algo angustiada, o seu envelope. A cena fora tão rápida que o presidente nem notara que, além do cumprimento, não recebera o documento que oficializava a qualidade da embaixadora. Sosseguei-a: "Não se preocupe, dá isso depois a alguém...". E tudo se resolveu, acabada a cerimónia, com a discreta entrega do envelope ao chefe do protocolo, que sorriu, divertido, perante o relato do sucedido.

Noutros quadrantes, as cenas podem ter outro sabor e picante, como, há anos, contei aqui

sexta-feira, julho 13, 2012

Grandes e pequenos

Ontem, durante um almoço de trabalho de alguns embaixadores europeus com a nova presidente da Comissão de Negócios estrangeiros da Assembleia Nacional francesa, Elisabeth Guigou, falou-se, como recorrentemente acontece, do conceito de "países grandes" e de "países pequenos" na União Europeia, a propósito da necessidade da gestão europeia não aparecer dominada por qualquer "diretório" auto-assumido, que afaste alguns das decisões que a todos importam.

O meu colega luxemburguês, George Santer, com a sua proverbial boa disposição, que muita falta vai fazer em Paris, quando, daqui a dias, trocar esta capital por Berlim, citava alguém, dizendo que, em rigor, só há dois "grandes" países na Europa: "La Grande-Bretagne et le Grand-Duché du Luxembourg..."

segunda-feira, julho 09, 2012

O poder dos intérpretes

É uma rua "paralela" à Étoile: rue de Presbourg. Passei por lá há pouco. O tempo de um semáforo deu-me oportunidade de atentar na explicação de ser o antigo nome de Bratislava, hoje capital da Eslováquia.

Fui a Bratislava, pela primeira vez, como turista, ainda no tempo da Checoslováquia. Em termos de beleza, não se compara com Praga, sendo embora uma cidade bastante agradável para viver, ao que me dizem. Um choque de modernidade provocado no tempo do "socialismo real" construiu-lhe, no centro, uma sinistra ponte sobre o Danúbio, que rasgou o coração histórico da cidade, arrasando um bairro judaico, destruindo uma zona que deve ter tido uma apreciável unidade arquitetónica. Agora que ando pela UNESCO, refletindo nos atentados ao património, tenho pensado nisso com alguma frequência.

Desde então, fui várias vezes a Bratislava, em especial quando vivi em Viena. Em fins de semana, ia por lá à ópera, para simples passeio ou para a feira de antiguidades. E tenho hoje por lá amigos eslovacos.

Um dia, creio que 1997, recebi em Lisboa o presidente do parlamento eslovaco, Ivan Gašparovič. O país era então candidato à União Europeia, mas o governo autoritário eslovaco, chefiado por Vladimir Mečiar, era execrado pelos países comunitários, sensíveis aos justos protestos da oposição sobre as limitações colocadas à liberdade da comunicação social, às inaceitáveis pressões sobre a vida política e aos métodos brutais da sua polícia. 

No encontro que tive com o meu interlocutor eslovaco, para além de expressar a simpatia de princípio de Portugal pelas aspirações europeias do país, repeti, com a necessária delicadeza de termos que a ocasião e o seu elevado estatuto impunham, as preocupações que o estado de coisas que se vivia no país a todos criavam - e neste "todos" incluía outros países candidatos à adesão, que viam o seu processo sofrer atrasos pela singularidade negativa do exemplo eslovaco.

A conversa foi feita por intermédio de um intérprete eslovaco, que insistiu em que eu falasse português. À medida que ia ouvindo a versão que lhe era dada das minhas palavras, notei que o meu interlocutor ia ficando nervoso, crispado e muito tenso. O que eu dizia, porém, bem como a forma que eu utilizava para o dizer, não justificava minimamente esse estado de espírito. Na resposta que deu à minha intervenção, contestou, com alguma rudeza, o que acabara de ouvir. E, de forma um tanto inopinada, apressou o fim da reunião. Fiquei algo perplexo, mas não liguei muito ao assunto.

Dias mais tarde, ao nosso embaixador em Viena, acreditado em Bratislava, chegou um protesto informal das autoridades eslovacas, reclamando pelo modo, tido por menos cordial, como eu tinha interpelado a segunda figura da hierarquia do país. Lembro-me de ter reagido e, já não sei bem como, fiz chegar a minha maior estranheza pela ocorrência ao meu contraparte no governo eslovaco, que conhecera brevemente numa reunião em Bruxelas. Se há tradição que a diplomacia portuguesa tem é a preservação do diálogo e uma constante prática de cordialidade, mesmo em momentos mais tensos, onde a firmeza se impõe. Eu sabia muito bem o que tinha dito, e que diria de novo, e se havia alguém que era culpado de qualquer "misunderstanding" essa pessoa era o intérprete eslovaco. Mas como me era possível provar isto?

Pouco tempo depois, percebi que algo tinha mudado: recebi um convite oficial para me deslocar à Eslováquia. Era uma visita com algum risco, porque não se podia permitir que fosse aproveitada pelo regime como traduzindo um gesto que indiciasse qualquer fragilização da atitude crítica que prevalecia na Europa sobre o comportamento do regime. Insisti, por isso, em encontrar os principais partidos políticos de oposição, tendo visitado a sede de um deles e recebido dois outros responsáveis oposicionistas no hotel. Esta é uma prática que nunca agrada aos nossos anfitriões oficiais, mas coloquei-a como condição sine qua non para a realização da visita. E, para evitar declarações isoladas à imprensa, proferi uma conferência sobre o processo de integração num instituto dedicado aos estudos europeus, com uma surpreendente enchente e um animado debate.

Apenas um pormenor mais. No programa da visita, pedi que fosse incluído um encontro com o interlocutor que encontrara em Lisboa, para lhe apresentar cumprimentos. Não tinha disponibilidade, como eu imaginava. Ivan Gašparovič é hoje presidente da República da Eslováquia.

Várias vezes me tenho interrogado sobre a quantidade de confusões políticas que os intérpretes já devem ter provocado por esse mundo fora.

sábado, julho 07, 2012

O senhor comandante

Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, há precisamente 30 anos, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu posto na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, grande parte deles expatriados por razões empresariais, por semanas ou meses, que atenuavam a sua solidão na leitura de alguns jornais (que não se vendiam localmente mas que me chegavam por mala diplomática, e que frequentemente lhes emprestava), na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que infelizmente perdi de vista desde então, era o Hélder Martins, funcionário da STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. Sou um completo incapaz para toda e qualquer espécie de jogos de cartas, mas, até à sueca, consigo "chegar". A única atividade lúdica alternativa - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - tinha-se esgotado, pelo que me decidi a entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando-me, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha falado, instantes antes, que me apetecia uma "Cuca", mas estranhei ser qualificado de "senhor comandante". Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu era diplomata na nossa Embaixada, mas não notei na cara dele nenhuma surpresa pelo título com que eu tinha sido brindado. Optei por não reagir.

No dia seguinte, no almoço no Trópico, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores entre nós, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". Rimo-nos um bom bocado, pelo que permanecia o mistério do "comandante". Mas ambos esquecemos o assunto.

Passou, talvez, um mês. Por diversas razões, deixei de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que me saudou, ao longe. No dia seguinte, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele. 

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há dias, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...". 

("For the record", que fique claro que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiariedade com a "colega"...)

Ainda há dias, ao viajar na TAP e ao ouvir, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, veio-me à memória que também "fui", um dia, "comandante" da companhia.

Imprensa de referência

Vi, há pouco, na televisão, um velho amigo de Portugal e dos portugueses, Xanana Gusmão, por ocasião de um ato eleitoral em Timor-Leste.

Recordei-me que, outubro de 1999, Xanana fez uma triunfal visita a Portugal. Com o país ainda a viver a ressaca da emoção que o mobilizara pela causa timorense, a chegada do líder histórico da Fretilin provocou uma onda de grande mobilização. A simpatia e a genuinidade de Xanana Gusmão fizeram o resto.

Nessa ocasião, foi-me pedido que, em representação do governo, me fosse despedir dele ao aeroporto militar de Figo Maduro, de onde partiria para um qualquer destino europeu, num Falcon na nossa Força Aérea. Vi que estava exausto, embora feliz, com o fraternal acolhimento que Portugal lhe proporcionara, em que pudera testemunhar a profunda sensibilização do povo português para com a questão timorense.

Saímos a pé do edifício da base aérea para o avião, situado a umas escassas centenas de metros. Ao longe, dei-me conta que um grupo de jornalistas, colocados junto a uma barreira, fazia sinais e gritava "Xanana", desejosos de poder obter as últimas palavras do visitante.

O avião estava já atrasado, o "slot" para a descolagem podia perder-se, como nos tinha dito o comandante da base. A primeira reação de Xanana foi dizer: "Vou já para o avião". Olhei os jornalistas e, apontando-os ao líder timorense, fui de opinião contrária: "Eu acho que devia dar-lhes umas curtas palavras. A imprensa portuguesa tem sido fantástica consigo". Xanana hesitou um segundo, mas acabou por seguir a minha sugestão, com os militares das Força Aérea, junto dos quais eu ficara, pouco contentes com o meu alvitre.

No dia seguinte, um bem informado jornal escrevia mais ou menos isto: "Contrariando abertamente a vontade do secretário de Estado português que o acompanhava, que procurou, sem êxito, dissuadi-lo de ir falar com os jornalistas, Xanana fez questão de prestar declarações à imprensa portuguesa".

Enfim, é o que se chama imprensa "de referência".

sexta-feira, julho 06, 2012

Os tempos e os poderes

Não há poder sem simbologia. E alguns sinais são, eles mesmos, a própria e deliberada expressão desse mesmo poder. 

Há uns anos, em fins de julho de 1999, teve lugar em Serajevo, na Bósnia-Herzegovina, a reunião de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Com as delegações instaladas, o presidente finlandês, Martti Ahtisaari, que dirigia a sessão, iniciava o seu discurso de introdução quando a sala foi surpreendida pela entrada isolada do presidente Bill Clinton. O líder americano dirigia-se, pausadamente, para o lugar que, na grande mesa quadrada, estava destinado aos EUA. Pelo caminho, foi-se entretendo a parar junto de alguns dentre os 50 presidentes e chefes de governos, saudando-os, deixando-lhes uma breve palavra e, com a acumulação desses gestos, foi provocando um movimento de imparável agitação, que concentrou as atenções coletivas. A face de Ahtisaari mostrava um evidente e compreensível desagrado com a estudada coreografia de Clinton, a ponto de se ver obrigado a suspender o seu discurso, até que o presidente americano finalmente sossegasse na sua cadeira. Ao nosso lado, o presidente francês, Jacques Chirac, assistia à cena e rumorava onomatopeias de óbvio incómodo pelo comportamento de alguém que habilmente "roubara a cena" aos poderes europeus presentes. 

Lembrei-me disto, esta manhã, durante a reunião dos "Amigos do Povo Sírio", que decorreu aqui em Paris. O presidente François Hollande, que abriu a reunião, iniciara já o seu discurso perante delegações de 102 países quando surgiu, mas neste caso num passo mais natural e sem quaisquer pausas, uma figura que se dirigiu ao centro de uma sala onde já não havia ninguém de pé, salvo o chefe de Estado francês, no seu podium. O discurso não foi interrompido, mas todos os olhares divergiram, por instantes, para a secretária de Estado Hillary Clinton, que logo se sentou, sem gestos dilatórios. A entrada da representante dos EUA ficou bem registada. E gravada ficou também, no subconsciente coletivo, esta evidente coreografia temporal dos poderes de facto neste mundo.

quinta-feira, julho 05, 2012

A pasta

"Ils sont venus, ils sont tous là", fazia lembrar a canção de Aznavour. Era a conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia, nesse mês de agosto de 1992, vai para 20 anos. À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos.

Era a Jugoslávia em desagregação que por ali se discutia, por esses dias. Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós". As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos. 

O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo. 

A conferência de Londres foi um fracasso. À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória. 

Eram mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Fui sentar-me noutra mesa. 

Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa. À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala. 

Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, era do tipo "de engenheiro" e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente ainda hoje me encanta. 

No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!". Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim. 

terça-feira, julho 03, 2012

A palavra

Portugal esteve hoje presente naquele que é o "exame" anual a que a sua economia é sujeita no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição multilateral sedeada em Paris, que acolhe 34 Estados democráticos e economias de mercado. Portugal foi um dos países fundadores da OCDE, em 1948, embora o seu regime estivesse então longe de ser democrático, mas a realpolitik da "guerra fria" a isso ajudou. Pode dizer-se, com algum rigor, que foi no âmbito da OCDE que algumas elites político-diplomáticas portugueses iniciaram a sua aculturação àquilo que viria, muitos anos mais tarde, a abrir o nosso caminho a uma integração plena nas instituições europeias.

Por alguns anos, estive ligado à representação governamental portuguesa nas reuniões da OCDE. Foi numa dessas presenças que aconteceu a historieta seguinte.

Naquele mês de abril de 1998, Portugal presidia à reunião ministerial anual da organização. No primeiro dia, o ministro das Finanças, Sousa Franco, dirigira a sessão plenária. Eu ainda lhe "dei uma mão" na respetiva sessão, chegado a meio do dia de Estrasburgo, onde estivera retido por uma qualquer razão.

No dia seguinte, coube a Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de conduzir a sessão, orientar o almoço de trabalho, o qual é sempre é feito em torno de um determinado tema. Dessa vez, tratava-se do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), uma questão muito controversa, tão divisiva que o acordo nunca chegou a passar do papel. Sobre o assunto, eu havia mantido uma polémica, nas páginas do "Diário Económico", com o saudoso deputado do PCP, João Amaral. Creio que nunca lhe cheguei a dizer que vim a concluir que, afinal, era ele, e não eu, quem tinha razão sobre o assunto.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros assumiu o seu lugar na presidência dos trabalhos, no topo da grande mesa quadrada, tendo ao seu lado o secretário-geral da organização e, à sua frente, a sofrível refeição que os integrantes têm direito a digerir durante essa hora e meia de exercício declaratório. Como me competia, como secretário de Estado, sentei-me na cadeira da nossa delegação, por detrás da placa onde se lia o nome de Portugal. Claro está que, com o ministro português a assumir a presidência da sessão, eu me preparei para um almoço bem calmo.

Jaime Gama abriu a sessão, fazendo uma intervenção inicial, aí com uns cinco minutos, com que introduziu o debate. Conhecendo antecipadamente o texto, devo confessar que quase me não dei ao cuidado de atentar no que dizia o meu ministro. Só quando, em certo momento, "ouvi" um silêncio, é que percebi que terminara.

O presidente português da sessão convidou então os representantes dos Estados membros da OCDE a intervirem sobre o tema. Como muitas vezes acontece neste tipo de reuniões, nomeadamente em questões muito polémicas, há uma certa inércia em "abrir as hostilidades", com uma retração em fazer a primeira intervenção. E foi isso que aconteceu: ninguém se inscreveu para falar - o que é feito colocando, ao alto, a placa com o nome do respetivo país. Jaime Gama insistiu e voltou a anunciar que estavam abertas as inscrições. O silêncio manteve-se.

Foi então que o presidente da sessão olhou para mim, sentado num lugar bem distante do seu e disse, com a maior naturalidade do mundo: "Dou a palavra a Portugal". 

Julguei ter ouvido mal, mas, ao detetar um leve sorriso na cara de Jaime Gama, percebi que ele me "passara a bola", como forma de resolver o súbito impasse. E, um tanto atrapalhado, lá avancei com um: "Thank you, mr. chairman. Mr. chairman, the Portuguese delegation considers that..." - e já nem sei bem o que disse, durante três ou quatro minutos, em que procurei debitar a doutrina que à época tínhamos sobre o AMI. No final da minha improvisada intervenção, já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical. E o debate lá avançou.

À saída, comentei para o ministro: "Pregou-me uma bela partida...". Jaime Gama, irónico, retorquiu: "Mas eu achei que você tinha tinha pedido a palavra...!"

sexta-feira, junho 29, 2012

Crise castrense

Na ausência em férias do embaixador, eu estava a chefiar interinamente aquela embaixada, onde chegara apenas algumas semanas antes. Mal conhecia os cantos à casa e, muito menos, os hábitos do posto, que sempre variam alguma coisa, dependendo das culturas funcionais implantadas pelas chefias. 

O telefonema do adido militar para minha casa, bem cedo na manhã, prenunciava coisa grave. A "voz de caso" com que me perguntou se, logo que eu chegasse à Embaixada, eu podia recebê-lo, alertou-me.

Esses eram os tempos em que algumas temáticas afro-lusitanas nos mobilizavam muito, em que a questão timorense estava no auge, em que alguns delicados assuntos relacionados com o futuro da NATO estavam em discussão, em que a Europa se assustava com a surpresa balcânica e, enfim, em que as dinâmicas da "intelligence" clássica ainda andavam muito na cabeça das pessoas. Além disso, tinha havido mudanças fortes nas estruturas de defesa daquele país onde trabalhávamos, que eu me esforçava por decifrar e que era importante seguir. 

O trabalho dos adidos militares (em rigor, deve dizer-se "adidos de defesa") pode ser de importância para o funcionamento das missões diplomáticas, desde que seja bem executado e articulado com a chefia da missão. Em geral, os adidos dispõem de uma "network" de relações muito própria, que se auto-alimenta em matéria de informação. Vivem centrados em agendas que nem sempre coincidem com as do embaixador, mas tal não é necessariamente uma coisa negativa, porque isso lhes permite focalizar a atenção certas áreas que não estão na nossa ordem de imediata de prioridades. Por outro lado, pela forma corporativa como se articulam com os seus pares locais, têm frequentemente facilidade de "checkar" algumas informações que, aos diplomatas, pode ser mais delicado abordar através dos seus canais habituais. Talvez por ter feito serviço militar, e por julgar perceber alguma idiossincrasia da casta, sempre tive excelente relação com os profissionais desse setor com que trabalhei, independentemente de não serem idênticos os contributos que cada um deu para o meu trabalho. Mas adiante.

Chegado à embaixada, pedi ao adido para vir ver-me. Chegou com um largo dossiê e, com ar grave, disse-me:

- Agradeço a prontidão com que me recebeu e, desde já, queria pedir-lhe se, amanhã de manhã, posso fazer, na sala de reuniões da embaixada, uma reunião. São aí umas 40 pessoas. É que nem sabe o que nos "caiu em cima"...

Não, não sabia, nem conseguia supor a razão de tão urgente reunião. Mas, claro, logo disse que a sala de reuniões estava à disposição, embora fosse necessário reforçar o lote de cadeiras.

Resolvida a dimensão operacional da logística, o adido passou à parte substancial, à justificação da razão que motivava tão largo e urgente dispositivo de trabalho.

- Fomos apanhados de surpresa. Não sei se sabe, mas, todos os anos, uma das embaixadas onde há adidos militares tem a seu cargo a organização de um baile de gala, num dos bons hotéis da cidade. Este ano, era a vez da Polónia. E não é que o meu colega polaco me telefonou ontem, dizendo que, por um inesperado compromisso, não está em condições de poder assegurar a tarefa?! Ora, como é por ordem alfabética, a tarefa passou para nós. E só temos três semanas! Vou convocar já uma reunião de emergência, claro! Imagine a imensa responsabilidade que nos caiu em cima!

Eu imaginava, procurando conter a imensa gargalhada que tinha vontade de soltar, perante o fácies fechado do nosso homem, visivelmente esmagado pelo dever acrescido que lhe havia aterrado nos ombros. E não pude deixar de lembrar-me, na ocasião, de alguns textos de Lawrence Durrell, e, em especial, da imagem, que sempre vive comigo, da admirável figura do adido militar francês, no "Les Ambassades", do Roger Peyrefitte, cuja leitura vivamente recomendo a quem gostar de conhecer os bastidores divertidos da vida nas embaixadas, lugares onde a realidade, muitas vezes, ultrapassa a melhor ficção. Podem crer!

Ah! e para a história, diga-se que, mais tarde, me chegou, de fonte limpa, que o baile terá corrido muito bem.

segunda-feira, junho 25, 2012

Memórias de além muro

Haviam já passado muitos anos desde que aquele diplomata português saíra da capital de um certo país do leste europeu, onde permanecera algum tempo, nos anos 80 do século passado. A vida levara-o, entretanto, por mais de uma década consecutiva, por outras partes do mundo.

Uma sapateira, adquirida numa casa de velharias nessa cidade, seguira, entretanto, para Lisboa, com destino a um armazém onde se amontoavam outras tralhas, compradas por aqui e por ali, coisas que os diplomatas vão acumulando pelos apeadeiros da sua carreira e de que, no final, já mal se lembram.

No seu regresso definitivo a Lisboa, já a caminho da reforma, o diplomata reencontrou a velha sapateira. Veio-lhe então à memória a negociação tida com o vendedor, o inevitável regateio do preço, a competição virtual com um colega egípcio que, de acordo com o homem, também seria candidato à aquisição. Olhando agora para a sapateira, perguntava-se por que diabo teimara em comprar aquele mono, que não lhe servia para nada. A certa altura, ao revolvê-lo, do fundo de uma prateleira descolou-se uma pequena peça retangular, escura e achatada, que lá devia estar, desde há muitos anos, desde a compra da sapateira. Observou, intrigado, o minúsculo objeto, do qual que destacava um fio metálico. O filho, dado às coisas técnicas, não teve dúvidas: era um microfone.

Apesar de todas as escutas, o muro caiu. 

quinta-feira, junho 21, 2012

Cultura geral

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Numa decisão que está a provocar alguma polémica, a prestigiada escola de ciências políticas de Paris, Sciences-Po, decidiu que, já este ano, iria "aligeirar" os requisitos que, à entrada, exigia aos seus candidatos, em matéria de cultura geral.

O conceito de "cultura geral" é um tanto vago e, como é notório, varia muito entre as gerações. Lembro-me de que o meu pai se referia a certas pessoas como tendo uma "cultura de almanaque", porque podiam saber as capitais dos países, nomes de escritores ou de artistas, mas eram incapazes de discretear, com um mínimo de profundidade, sobre ideias, sendo que o seu nível de leitura muitas vezes se ficava pelas lombadas dos livros.

Recordo a forte e muito negativa impressão que me fez a experiência que tive, nos anos 90, como membro do júri de admissão de novos diplomatas. Nesse tempo - não sei como é que as coisas hoje se passam - a chamada "prova de apresentação" consistia numa conversa do candidato com três dos cinco membros do júri, durante cerca de 20 minutos. O objetivo era perceber se o putativo diplomata tinha um mínimo de condições para ser admitido, isto é, se sabia expressar-se razoavelmente, se mostrava um conhecimento global das grandes temáticas internacionais e, igualmente, se possuía uma "cultura geral" aceitável. Tenho para mim que esta prova, feita com seriedade, deixa claro, em definitivo, quem não serve para diplomata, embora esteja longe ajudar a esclarecer se serve. (Num aparte: como, nesse tempo, eu tinha deliberadamente espalhado que "quem tivesse uma cunha chumbava", notei, divertido e triste, a quantidade de atestados médicos que surgiam, a pedir o adiamento da prova, quando alguns candidatos sabiam, por conhecimentos familiares ou outros, dentro do MNE, os dias em que eu fazia parte do júri).

A essa "prova de apresentação" chegavam só os candidatos que já tinham ultrapassado as provas escritas e iam ainda fazer a prova oral - hoje bem mais simples, diga-se, do que nos tempos da minha admissão. A grande surpresa que tive foi encontrar licenciados, por vezes com média elevada, oriundos de algumas universidades sérias (há, claro, algumas universidades "não sérias", cujas classificações de curso são meras curiosidades estatísticas), que revelavam, por exemplo, nunca terem lido um romance, não conseguirem dizer o nome de um pintor português ou confessavam nunca terem visto filmes que fazem parte do património universal. Um deles, um dia, confessou mesmo que "nunca tinha lido um livro inteiro", porque, na universidade, só era obrigatório ler "capítulos ou fotocópias de páginas de livros"! E ficção, nem vê-la!

Para mim, contudo, bastante mais grave era, por vezes, o desconhecimento absoluto das questões internacionais mais comezinhas, que ficam na óbvia fronteira com a cultura geral básica. Vou dar um exemplo (verídico) de um diálogo que tive, com um desses fantásticos candidatos:

- Escolha um país europeu cuja situação política conheça bem.

- A França, talvez.

- Muito bem. Como é que vê a situação política em França, os seus equilibrios internos e o papel do país no quadro europeu?

(Pausa longa)

- Bom, na França, o governo tem tido muitos problemas... é tudo o que posso dizer!

- Sim, isso é verdade, para a França e para a generalidade dos países... Não quer falar de outro país europeu?

- Talvez da Inglaterra... 

(Chamar "Inglaterra" ao "Reino Unido" era, em si mesmo, uma falta de rigor. Mas como o Anuário do MNE continua, snobmente, a designar o país por "Grã-Bretanha", adiante...).

- Ótimo. Falemos então do Reino Unido. Deve saber que há, numa parte do país, um grupo político-militar que leva a cabo atos violentos, de natureza terrorista: o IRA. Em que zona do Reino Unido isso se passa e qual é o objetivo político desse grupo?

- Ah! Isso sei bem: é na Escócia! É o movimento de libertação da Escócia!

Nesse instante, ansiei por um bom malte escocês! Apeteceu-me mesmo perguntar-lhe se acaso ele sabia a diferença entre "whisky" e "whiskey". Mas o candidato não tinha obrigação de saber isso, da mesma maneira que eu não tinha obrigação de estar a perder mais tempo com um ignorante daquele calibre. Com aprovação tácita dos meus colegas de júri, mandei o rapaz embora. Deve andar hoje por aí num qualquer emprego onde, como "cultura geral", só lhe devam exigir conhecer os últimos resultados do Euro.

quarta-feira, junho 13, 2012

O passaporte

O adido técnico entrou com um ar um tanto comprometido, no meu gabinete daquela embaixada, algures no mundo. Vinha expor-me o que disse ser "um problema", relacionado com o passaporte diplomático da sua mulher. Aparentemente, o excesso de carimbos tinha acabado por ocupar todas as páginas do passaporte, o que tornava difícil a sua utilização. Já não havia espaço para mais carimbos ou vistos.

Eu era então um jovem diplomata e tinha a meu cargo, na embaixada, a emissão e a renovação dos passaportes diplomáticos, nesse tempo longínquo em que isso era feito nos postos, totalmente à mão, sem os preciosismos de segurança que hoje existem. Por isso, sosseguei-o, dizendo que, em poucos minutos, faria um novo passaporte, anulando o anterior. Não via nenhum problema.

- Pois é! Mas há, de facto, um problema, disse-me o adido. É que a minha mulher quer manter este mesmo passaporte, não quer que lhe seja emitido um novo.

Fiquei banzado: por que diabo queria ela o mesmo passaporte? Foi então que o adido, homem agradabilíssimo e excelente colega, algo "encavacado", me explicou:

- Sabe, a minha mulher tem, no passaporte, uma fotografia muito antiga, de que gosta muito e da qual já não tem mais exemplares. Para se fazer um novo passaporte, seria necessário tirar novas fotografias e ela tem a certeza de que não vai ficar muito bem nelas... 

Pedi para ver o passaporte e percebi tudo: a fotografia correspondia a uma jovem belíssima, que a mulher do adido devia ter sido, mas já em tempos idos... Porque a idade não perdoa, a senhora que eu conhecia era bem diferente da jovem da fotografia. Aliás, pensei cá para mim, era de admirar que ainda a deixassem passar nas fronteiras, com uma fotografia tão distante da realidade.

Às vezes, sou um sentimental. E lá inventei (espero que ninguém do SEF leia isto) uma folha suplementar que fiz acrescer ao passaporte, dando mais algum tempo àquele título de viagem e, dessa forma, contribuindo para prolongar também a nostalgia estética da sua titular, ao olhar-se ao espelho.

quarta-feira, maio 30, 2012

Clareza

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, como por aqui já referi algumas vezes, a principal relação escrita entre Lisboa e os postos no exterior faz-se através dos chamados "telegramas", qualificação que ainda vem do tempo em que eram enviados, de facto, telegramas através dos correios, com os textos submetidos a uma "cifragem" prévia, a que correspondia mais tarde uma "decifragem" no destino. Hoje, esses procedimentos são feitos por meios mais sofisticados - eu diria mesmo, tão sofisticados e dependentes de tais tecnologias que algumas interrogações se colocam quanto à sua real fiabilidade. Mas devo ser eu que sou um desconfiado...

Esta introdução é apenas para enquadrar uma historieta, que tem algumas décadas e que, ao que me contaram, foi então muito falada. Tratou-se de um telegrama enviado pela nossa missão na ONU, em Nova Iorque, de resposta a um outro, chegado de Lisboa. Ao que parece, o embaixador teria ficado abespinhado com uma insistência da "Secretaria de Estado" (nome pelo qual os postos no exterior tratam o MNE em Lisboa) sobre um assunto que ele achava já ter esclarecido devidamente. Vai daí, decidiu-se remeter um telegrama com um texto que poderia ser o que se segue:

Com referência ao telegrama dessa Secretaria de Estado nº 457, não posso senão reiterar tudo quanto já adiantei no meu 654, o qual, aliás, refletia a perspetiva que avançara no meu 398. Porém, em face da insistência agora feita, pergunto-me se essa mesma perspetiva, que tinha nomeadamente em conta as instruções que aqui recebi dessa SE pelo 347, do ano transato, é, em si mesma, compaginável, por exemplo, com as anteriores instruções constantes da circular 34, no seu ponto 12, desse mesmo ano. VExa compreenderá que, havendo dúvidas, será legítimo cruzar tal doutrina com aquilo a que meu colega em Roma judiciosamente aludia, há semanas, no seu 197, aditando, aliás ao seu anterior 65, texto que ganharia em ser revisitado. É que, a assim não ser, só posso concluir que ainda se manterá válida, devendo ser seguida, a linha que a nossa embaixada em Londres expressava no seu 178. É no cruzamento dessa perspetiva de abordagem, que não deixa de ter em conta tudo quanto antecede, que se situa posição desta Missão. Salvo melhor opinião, julgo ter sido cristalinamente claro.

E o embaixador assinou por baixo. Em Lisboa, ao que consta, o telegrama provocou um sururu nos serviços, obrigando os desgraçados dos arquivistas a coletarem todas as comunicações cuja numeração fora citada, sem que, por um momento, houvesse a mais pequena ideia daquilo a que o embaixador se estava concretamente a referir. Não queria ele outra coisa, diga-se!

(Nota: o exemplo da imagem é um telegrama, aliás histórico, que já foi "desclassificado". Essa é a razão pela qual o publico. Para um diplomata, um telegrama é um instrumento de comunicação "sagrado", que a deontologia profissional  impede de divulgar)

segunda-feira, maio 28, 2012

Outro abril

Ontem, um amigo criticou-me, ao telefone, alguma complacência que eu supostamente revelara, ao escrever que tinha "compreendido" o extremismo de um neonazi, deficiente de guerra, que cruzara nos anos 60, na Alemanha, numa historieta que aqui deixei registada, há uns dias. Na conversa, esse meu amigo, adiantou: "por este andar, ainda acabas a "compreender" as bombas do ELP e do MDLP, justificadas pelos dramas pessoais de alguns retornados, zangados com o 25 de abril".

Vamos por partes. É claro que eu podia ter evitado o desabafo que tive, que sabia ir contra o politicamente correto. Mas porque foi esse, de facto, o meu sentimento no momento, achei por bem deixá-lo expresso. Já não tenho idade para me coibir de dizer o que, realmente, penso.

E, porque talvez isso venha a propósito, deixem-me que conte uma cena ocorrida comigo, em S. Paulo, em 2005, na inauguração de uma exposição de pintura de José de Guimarães, na FIESP.

Eram os meus primeiros tempos no Brasil e muitas pessoas queriam conhecer o novo embaixador, recém-chegado. A certo passo do cocktail de abertura do evento, aproximou-se de mim uma senhora idosa que, com extrema simpatia, me disse, com um sotaque já muito brasileiro, mas onde se detetava a sua origem portuguesa: "Tenho sempre muito orgulho em conhecer os representantes da minha pátria! Por isso, queria saudá-lo, senhor embaixador, e desejar-lhe muitas felicidades para o seu trabalho".

Fiquei naturalmente sensibilizado com o gesto daquela simpática compatriota, que agradeci, tendo-lhe perguntado, com naturalidade, quando tinha vindo para o Brasil. Os bonitos olhos da octogenária entristeceram, antes de dizer: "Nem me fale nisso! Vim de Angola, em finais de 1974, deixando para trás tudo o que havia ganho numa vida de trabalho. Com o desgosto, o meu marido acabou por falecer pouco depois da chegada ao Brasil. Graças a amigos, consegui mudar a minha vida. Mas olhe! Nunca perdoarei àquela bandidagem que, no nosso país, fez o 25 de abril!"

Para o amigo que ontem me telefonou, devo confessar que não tive a menor coragem para retorquir à senhora que, com o maior dos orgulhos, eu também fazia parte da "bandidagem" que fez o 25 de abril, que essa fora a data que dera a liberdade à pátria de que ela tanto gostava e que esse fora um dos dias mais felizes da minha vida. "Compreendi" a senhora? Claro que sim. Ponho-me no lugar dela e pergunto-me se apreciaria que lhe oferecessem cravos vermelhos... 

Nunca me passaria pela cabeça tentar explicar àquela senhora, tal como nunca o faço quando cruzo outros portugueses que viveram e sofreram esses tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi, como bem dizia Ernesto Melo Antunes, a outra face da tragédia que foi a colonização. E que, por muitas culpas que possam ser atribuídas aos responsáveis políticos que geriram o país após o 25 de abril, a responsabilidade maior competirá sempre àqueles que, tendo tido a oportunidade histórica de negociar atempadamente a independência das colónias, não o fizeram, pela cegueira da ditadura que defendiam e nos faziam sofrer - a nós, portugueses, e aos povos dessas mesmas colónias, convém também nunca esquecer. O imenso respeito que tenho pelo drama que marcou a vida dos "retornados", que sempre afirmo publicamente, vai de par com aquele que não tenho pela classe política que o 25 de abril, em boa hora, derrubou.

A que propósito trouxe este episódio aqui? Para explicar que, tal como calei a minha profunda oposição ao neonazi que cruzei numa estrada alemã ou a minha insanável divergência com a senhora refugiada de Angola, as minhas convicções não mudaram um milímetro só pelo facto de perceber que o seu percurso de vida os terá conduzido a pensarem como pensavam. Chama-se a isso tolerância.     

sábado, maio 26, 2012

João de Sá Coutinho (1929-2012)

Através de um amigo comum, acabo de tomar conhecimento da morte, no dia de hoje, do embaixador João de Sá Coutinho.

Para a minha geração no MNE, Sá Coutinho representava, de certo modo, a "carreira" que soubera transformar-se, com naturalidade democrática, num apoio à nova diplomacia pós-25 de abril. Alguns meios mais conservadores chamaram-lhe, por essa altura, o "conde vermelho", numa alusão ácida às suas origens aristocráticas, bem simbolizadas na sua magnífica casa em Ponte de Lima.

Conheci-o pessoalmente quando, como então era da praxe, me fui apresentar nas Necessidades, no final de 1985, regressado de Luanda. Eu saíra desse posto um pouco à pressa, motivado por um convite formal que recebera da hierarquia diplomática para vir a assumir um lugar de chefia intermédia em Lisboa, nas novas estruturas criadas para a nossa próxima entrada nas instituições europeias. Mas, entretanto, alguma coisa se tinha passado. Recordo o embaraço de Sá Coutinho, então secretário-geral do ministério, quando se viu obrigado a informar-me que, por ordens "de cima" a que era totalmente alheio, a "casa" já não contava comigo para ocupar essa chefia... Na sua impotência perante o inevitável, senti-o solidário. 

A vida não fez com que nos cruzássemos muito. Às vezes, nas minhas não raras passagens por Ponte de Lima, voltei a encontrá-lo pelas esplanadas do Largo de Camões, esguio e elegante, sempre com aquele sorriso algo irónico, que era a sua imagem de marca pessoal, com que acompanhava as graças que lhe saíam fáceis, de quem olhava a vida com olhos sábios e serenos.

Há meses, a propósito de uma historieta que por aqui contei, em que ele era a figura central, escreveu-me uma carta divertidíssima, fantasiando uma suposta colocação minha em Nouakchott, aliada à decisão excecional que, segundo me "informava", teria sido tomada no sentido de o enviar a ele para Paris, forçando a minha substituição. Pelo meio, dava-me conselhos deliciosos, como a compra de um camelo para serviço na nova embaixada, aconselhando-me também a planear fins-de-semana turísticos e gastronómicos em... Bissau.

João de Sá Coutinho, que, tal como o meu pai, era um orgulhoso minhoto de Ponte de Lima, foi um grande senhor da nossa diplomacia, um profissional distinto. Acima de tudo, era um homem de bem que soube servir e honrar o seu país. 

terça-feira, maio 08, 2012

Obra-prima

Aquele membro de um gabinete político estava contentíssimo. E com razão. Naquela viagem de Estado, num mercado de arte, fizera uma compra de um belo quadro, uma cópia perfeita de uma conhecida obra-prima. E o preço fora bem razoável.

Simpático, não se cansava de avisar os outros membros da delegação das oportunidades do mercado de arte local: "Vocês não percam esta oportunidade! Aproveitem! São cópias autênticas..."

segunda-feira, maio 07, 2012

A mesa

O secretário de embaixada, naquele posto diplomático isolado, num qualquer lugar do mundo, numa cidade cujo nome me escapa, conhecia ainda mal o seu novo embaixador, que há dias havia chegado. 

Já dera para perceber que se tratava de uma personalidade algo solitária, um pouco sentenciosa, com ideias muito firmes a propósito de tudo. E parecia ser, pelo menos a avaliar por certas atitudes, uma pessoa algo desconfiada. Mas era simpático, e isso é sempre o mais importante, numa embaixada pequena, onde é decisivo preservar uma boa relação entre o chefe de missão e o seu direto e único colaborador diplomático.

O secretário ficou agradavelmente surpreendido quando, numa manhã, o novo embaixador o chamou e inquiriu: "Você, que já está cá há um tempo, diga-me lá: qual é o melhor restaurante da cidade?". O jovem diplomata hesitou um pouco. Os seus "cabedais" não davam para frequentar muito os melhores restaurantes, naquela que era considerada, ao tempo, uma das cidades mais caras do mundo. Mas, naturalmente, ouvira falar nos mais badalados lugares dessa capital. E, sob reserva de não ainda lá ido, indicou um nome bastante conhecido.

O embaixador, além de simpático, era uma homem generoso, como o gesto imediato demonstrou e o futuro viria a provar. "Se você não tiver nada combinado, convido-o para almoçar nesse restaurante", disse o embaixador. O secretário estava disponível, achou graça à ideia e, de imediato, acedeu ao pedido do seu novo chefe para providenciar a marcação de uma mesa. Na conversa telefónica com o restaurante, deixou cair que a reserva era para o embaixador português, por forma a procurar assegurar um acolhimento à altura.

Chegados ao restaurante tiveram, de facto, um tratamento singularizado. O "maître" veio esperá-los e, desde logo, identificou o embaixador, a quem designou pelo seu título. O secretário julgava que o seu chefe havia ficado satisfeito com o facto, mas só até ao momento em que se viu, em voz baixa e desagradada, criticado pela indiscrição cometida: "Quem é que o mandou dizer que eu era embaixador?" O secretário ainda balbuciou algo, mas logo foram conduzidos, em grande estilo, através da larga sala. 

Chegaram à mesa. Tinha uma vista magnífica, sobre a cidade, junto a uma varanda isolada, num espaço algo recatado e protegido do resto da sala. O secretário pensou para consigo: "Com uma mesa destas, o homem já deve estar a pensar que, afinal, fiz bem em revelar que ele era embaixador". Enganou-se.

O embaixador estacou, fez uma cara séria e, voltando-se para o "maître d'hôtel", perguntou: "Não tem outra mesa disponível?". O homem ficou siderado. Havia, de facto, vários outras mesas vagas na sala, mas aquela era, flagrantemente, "a" mesa do restaurante, seguramente a mais requestada pelos clientes. Desejoso de agradar, o funcionário ainda tentou explicar que aquele era o melhor lugar da sala. Irredutível, o embaixador escolheu outra mesa e, já perante o embaraço e a perplexidade do seu secretário, lá se sentou, pedindo o menu e a carta de vinhos.

Passaram-se uns instantes, em silêncio, até que o embaixador olhou o secretário e lhe disse: "Meu caro, você é um jovem, este é o seu primeiro posto, ainda tem uma grande experiência a ganhar. Não devia ter dito que era o embaixador de Portugal que vinha aqui almoçar. Isso identifica-nos e coloca-nos logo sob observação". O comentário era bizarro, mas mais estranha foi ainda a revelação que se seguiu: "E sabe porque é que eu não aceitei aquela  mesa, embora tivesse uma excelente vista?". O secretário não sabia, aliás, já concluíra que não percebia nada do que se estava a passar. "Porque aquela mesa que nos deram, pela certa!, é uma mesa com microfones. A nossa conversa ia ser escutada. Isto é um mundo muito complexo, meu caro. Com os anos, você verá!", disse o embaixador, já pedindo o vinho, e mudando de conversa.

O secretário ficou aquilo a que os franceses chamam "bouche bée". Começava a conhecer melhor o embaixador que lhe "calhara em rifa" e, intimamente dividido entre saber se os seus próximos anos iam ser divertidos ou complicados, perguntava-se (mas não perguntou ao seu chefe, porque percebia que já não valia a pena) que utilidade teria para os serviços secretos desse país gravarem, traduzirem e "tratarem" em termos de "intelligence" a conversa de circunstância entre um embaixador português e o seu secretário. 

Carlos Fernando Mathias

Em janeiro de 2005, poucos dias depois de ter assumido funções como embaixador no Brasil, fui informado de que estava na embaixada e tinha m...