domingo, abril 23, 2017

Declaração de voto

Não pretendo ser original. Em França, vou "votar" contra Marine Le Pen. 

Dos quatro candidatos em real liça (Hamon está, há muito, fora de jogo), Le Pen é, de longe, a mais perigosa. Pelo que representa, pelo que arrasta consigo, pelo seu populismo demagógico, feito de ódio disfarçado, de intolerância e de potencial violência, quando não de ameaça autoritária contra o sistema democrático e, com alguma probabilidade, contra o futuro da nossa comunidade em França. Acresce a disrupção prometida no terreno europeu, que, a ser levada à prática, seria imediatamente catastrófica para nós.

François Fillon é o triste coveiro de uma direita democrática, que se está a afastar do caminho da decência mínima, mimetizando oportunisticamente a agenda da extrema-direita. É uma tragédia para o sistema político francês ver o partido construtor da V República, herdeiro de De Gaulle, titulado por alguém que fugiu à palavra dada e está cercado de acusações desqualificantes de improbidade. Esta direita francesa deixou de ser "republicana", no belo sentido que a palavra por lá tem.

Se eu tivesse hoje a mesma inconsciência que, em 1976, me fez votar Otelo, estaria a fazer figas por Jean-Luc Mélenchon. Nos quatro anos que vivi em França, acompanhei cuidadosamente o seu percurso declaratório. É muito divertido ouvi-lo, é um tribuno "grave", com aquela "indignação" saída "das ruas", que cai sempre bem e absolve as consciências. Pode ter graça "fazer de conta" que aquilo que se proporia fazer se chegasse ao Eliseu iria "mudar o mundo". Mas destruir a Europa. Não vai, felizmente. Os Varoufakis já mostraram que têm os pés bem assentes... no ar! Por cá, o Bloco gosta dele. Está tudo dito! 

Resta Macron? Fillon seria um presidente ferido de morte política, mas a sua eleição não colocaria problemas insuperáveis à continuidade, sem maiores sobressaltos, da gestão da Europa - e essa é a minha última "fronteira". E Le Pen e Mélenchon, por vias diferentes, sê-lo-iam. Provou-o como primeiro-ministro de Sarkozy e há razões para crer que a sua apressada conversão ao credo liberal é mais um estratagema voluntarista de modernidade, a dar-se ares de "reformador". A França "adora" o Estado, à esquerda ou à direita, e a direita é, por lá, desde há décadas, a mais descarada concubina da máquina pública. Com Fillon, os temas de "costumes" teriam uma provável regressão, mas os direitos dos nossos cidadãos ficariam salvaguardados. E isso faz parte da minha "agenda" nesta eleição.

Macron é, no sufrágio de hoje, a novidade. Aquele estilo "kennediano" (com uma "Jacqueline" atípica, concedo...), muito ao jeito de Julien Trudeau no Canadá, do espanhol Alberto Rivera do Ciudadanos, "boyish look" com fácies compensatório, acarreta um receituário de "mainstream" - nem esquerda nem direita, o que, como aprendemos com o filósofo (também francês) Alain, "cheira" sempre a direita. Há por ali muito do "appeal" do "jovem" Giscard d'Estaing dos anos 70, uma mistura do centrismo clássico de Jean Lecanuet com o liberalismo de François Léotard, ambos votados ao histórico fracasso do centro francês (talvez pela mediocridade endémica da democracia cristã local). Macron diz que alguns gostam de ouvir e, como lembrava Pedro Adão e Silva, é hoje candidato do otimismo, um sentimento raro mas mobilizador. E isso pode ser decisivo. Um ponto a seu favor: defende o projeto europeu. É claro que já ouço a voz de alguns amigos: "Mas que projeto?" E eu pergunto-lhes: "O vosso é o de Mélenchon?" "Nej tak", como se respondía à bomba de neutrões.

Sou um possibilista. Não tenho um Jospin em quem possa "votar", um Rocard que me possa mobilizar. O meu "voto" é contra Le Pen, pela ordem que, creio, deixei claro. É um voto no "menor dos males"? É, assumidamente. 

16 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Excelente analise, Senhor Embaixador. O Senhor conhece bem o « doente ». O que é terrível, é que podemos dar as voltas que quisermos ao problema, se quisermos salvar a Europa, ou o que resta da Europa, e conservar uma “chance” de a repor nos rails, Macron é a única solução.
Mas o gosto, depois de depor o voto na urna, “tout-à-l’heure”, será amargo para aqueles que vão votar nele. Porque Macron sabemos donde vem e para onde vai.

Macron é uma “fabricação”dos media franceses. De Patrick Drahi, dono de ‘Libération” e do “Express”, gigante das telecomunicações (portuguesas também, não é assim?) , conhecido pela sua capacidade a destruir empregos e a sua capacidade de contorcionista em matéria fiscal, a Vincent Bolloré, dono de Canal+, a Bernard Arnault, dono dos “Echos”, a Xavier Niel, dono do ‘Parisien”, ogre dos telecoms, que ingurgitou a quase totalidade da imprensa social-democrata com a compra do ‘L’Obs’,

Esta situação dos média provocou a queda espectacular da França ao 45° rang da classificação da liberdade de imprensa, estabelecido por « Reporters sem Fronteiras », entre a Roménia e o Botswana. E isto porque um pequeno grupo de homens de negócios com interesses exteriores ao domínio dos media acabaram por possuir a maioria dos media privados com vocação nacional. Nunca se viu isto em França desde 1945.

Quando se viu o antigo banqueiro Bernard Mourad, director de Altice Media Group, isto é, SFR Presse. na equipa de campanha de Macron, compreendemos que o grupo do CAC40 estava por trás de Macron.

Macron será a continuação, sob uma cobertura de modernidade, colorida com as cores aciduladas de Silicone Valley, das politicas usadas que “lepenisaram” as classes populares francesas durante três décadas,

Os média , completamente sob o poder da alta finança, lançaram em pouco tempo, um homem da banca Rothscild em candidato à presidência da Republica Francesa.

Tenho a impressão, há umas semanas para cá, de assistir durante esta campanha a um putsch democrático em ralenti, com um terrível sentimento de impotência. Um pouco como o que ressalta do seu próprio comentário, Senhor Embaixador.

E assim vamos votar útil, claro.

Anónimo disse...

"por cá, o Bloco gosta dele. O que está tudo dito"

Também fica dito que o Montenegro talvez tenha razão. Afinal os 50 candidatos podiam sair da menor valoração dos votos do BE. Afinal estes democratas tem sempre formas eruditas de se mostrarem melhores que os outros! É uma chatice a Democracia...

Anónimo disse...

Será que o "famoso" hitler não terá sido eleito também por exclusão de partes e depois deu naquilo.
Quando os eleitores estão carregados de emoções e muito pouca racionalide, as democracias de hoje bem podem clamar pela carbonária que a mesma já não ouvirá nadinha. Aburguesou-se, tornou-se "élite" e agora quer comer bem, beber melhor e ter boa vidinha.

Anónimo disse...

Está a debitar soundbites o komentador do Expresso (semanário de reverência), o tudólogo Ricardo Costa...da família dos quatro Costados.



Anónimo disse...

A opinião que aqui expressa é consequente com o seu conservadorismo centrista, chamemos-lhe assim, que sempre nos revelou. O odiozinho ao BE, o europeísmo atávico, são algumas das características a que nos vem habituando. Nisto de eleições e no caso presente, das francesas, o que está em cima da mesa é uma opção muito simples: manter a França sob a órbita alemã e continuar a caminhar sem rumo, ao compasso de Berlim, do BCE e não fugir demasiado do pensamento neo-liberal, ou o contrário, retirar a França do Euro e da EU (a Nato é menos relevante), fazendo, com isso, implodir o projecto europeu. Macron nada fará para que países como Portugal, Grécia, etc sejam aliviados dos programas de austeridade impostos por gente desprezível como o MF alemão, o cabotino do Eurogrupo, da Comissão, etc. Com Macron, a ser eleito, a solidariedade europeia mantém-se como até agora – no limbo. Naturalmente, esta posição francesa, que mais não será do que a continuação do tem sido com Hollande e antes dele, é o preço que Paris terá de pagar para que a ALE não a humilhe ainda mais, ou seja, não lhe exija medidas e programas económicos como aqueles que Portugal sofreu. Macron não tem um projecto, uma ideia, nada. Macron é um saco de vento. Mas, os sacos de vento políticos nem por isso deixam de atrair umas tantas baratas tontas. E outras menos tontas, que ingenuamente continuam a acreditar que o tal projecto europeu ainda merece mais umas transfusões para continuar. Resta saber como serão as legislativas mais tarde e como o dito Macron irá conseguir governar. Em política não se é de “Direita, Centro-Direita, Centro, Centro-Esquerda, ao mesmo tempo”, tem-se um programa que identifica o candidato, o coloca num determinado patamar político, ou seja, dá-se a cara, sem receio, para o melhor ou para o pior. Macron, demagogicamente, coloca-se em vários tabuleiros. A ver se pega. Parece que pegará. E a França lá continuará a servir de tapete de Berlim, como até agora. Uma voz ignorada nos conselhos europeus, no Eurogrupo, no Ecofim, etc. Para já nem falar na Nato. E depois do Brexit, será uma presa mais fácil dos desígnios alemães. Não desanimemos, porém, visto que, com paciência e tempo o tal projecto falhado europeu, acabará, mais tarde por sucumbir. Já está podre, aliás. Embora uns tantos crédulos não queiram aceitar a evidência. Não defendo aqui uma ou outra das opções anti-europeias, mas tão só o fim da EU e do Euro e por junto da influência de Berlim nas economias europeias. A ALE provocou duas Guerras Mundiais (a última das quais praticando o genocídio, através do Holocausto). Foi derrotada em ambas as vezes. Mas, sabiamente, aproveitou-se das fragilidades europeias (e de alguns Tratados) para impor a sua influência económica (e política) e conquistar o que tinha perdido no final da 1ª G-G e depois em 45. E uma vez mais, meteu a França no bolso das calças. Macron não será mais do que um criado de libré de Merckel (e essa sinistra figura, o Schauble).
J.Pereira

Jaime Santos disse...

Enquanto a Esquerda da Esquerda continuar a sonhar que recupera a soberania de Portugal aumentando a dívida, estamos conversados. Infelizmente, é exatamente assim que pensa o senhor Mélenchon em relação à França. A Direita soberanista é ao menos consistente nas suas propostas (não me refiro a Le Pen, cujo programa lembra o keynesianismo falhado que BE e PCP-PEV nos querem vender). Não se pode ter tudo e o seu contrário, sr. Pereira. Quais são as políticas defendidas pelos distintos Economistas à Esquerda? Desvalorização competitiva, protecionismo (ver http://www.lemonde.fr/idees/article/2017/04/18/25-nobel-d-economie-denoncent-les-programmes-anti-europeens_5112711_3232.html, que assenta que nem uma luva às Esquerdas), inflação e repressão financeira (obrigar os bancos a deterem obrigações públicas a baixas taxas de juro, o que quer dizer um imposto sobre os depósitos a juntar à inflação). Os ricos que paguem a crise como de costume. Só que deixará de haver ricos, pelo menos a julgar pelos belíssimos resultados obtidos na bolivariana Venezuela, onde falta tudo. Portanto, em vez de tentar acabar com os ricos (nunca percebi o que é que isso traz de bom aos pobres exceto talvez algum conforto aos ressentidos), porque não tentar acabar com os pobres? Demora mais tempo mas os resultados são bastante melhores. Chama-se Social-Democracia sabia, não anda de boa saúde mas está viva, contrariamente a esse espectro inútil do Comunismo, porque o espectro real que nos ameaça esse é hoje bem outro...

Helena Sacadura Cabral disse...

Meu caro amigo
Devo confessar que estas eleições puseram bem a nu o estado da Europa e, sobretudo, o da França, quando a escolha vai ser entre a senhora Le Pen e o senhor Macron.
Não sei, meu caro amigo, se conseguiria escolher o mal menor, tal a desconfiança que os dois candidatos me provocam.
E, sim, estou preocupada e muito, com o reflexo que esta escolha possa representar para países como Portugal. E já nem falo noutros cuja menção se torna desnecessária.
Tão pouco vislumbro como este rapaz, eventual futuro Presidente, irá governar sem partido e afirmando-se como não sendo nem de direita nem de esquerda. Está à vista o que ele será. E foi para isto que Alain Juppé foi afastado...

Anónimo disse...

Estão a França, o grupo Mediapart e a banca Rothschild de parabéns pelos resultados eleitorais.

Joaquim de Freitas disse...

A Senhora Helena Sacadura Cabral tem razão, quando escreve que estas eleições puseram bem a nu o estado da Europa e, sobretudo, o da França, quando a escolha vai ser entre a senhora Le Pen e o senhor Macron.
Fazer uma vez mais do De Gaulle, não é para toda a gente. Não, ontem fomos expulsos do ring, ficaram os dois últimos pugilistas. Que o melhor ganhe, estaríamos tentados de dizer. Se se pode falar de melhor!

Vi muitos amigos meus juntar-se a Alain Madelin, Manuel Valls, Myriam El Khomri, Jean-Pierre Raffarin, Daniel Cohn-Bendit, Bernard Arnault, Vincent Bolloré, Philippe Douste-Blazy, Jean-Yves Le Drian, e a alguns banqueiros e à metade do PS, para encorajar Macron a lançar latas de cerveja e fumígenos à falsa loira , após terem feito apostas nos “bookmakers” do MEDEF, do CAC 40 e do banco Rothschild.
Pelo que me toca, vous mergulhar num estado de indiferença político comatoso, sem alegria nem dor, que me torna livre de não escolher entre a peste e aqueles que a fabricaram para nos amarrar.

Obrigaram-me a votar em 2002 pelo vesgo, e querem que vote por Macron em 2017 contra a filha. E contra a sobrinha em 2022…pourquoi pás ?

Pobre Hamon, que passou num ápice dum discurso “de gauche” ao grito de união com o “candidato da finança, privando Mélenchon de alguns pontos que teriam permitido de mudar realmente este país…

Joaquim de Freitas disse...

Rectificação : Obrigaram-me a votar por Chirac contra o vesgo, em 2002, e querem obrigar-me a votar por Macron contra a filha em 2017. E porque não contra a sobrinha em 2022 ?




Reaça disse...

A França está embatocada, embaralhada, engasgada...não diz coisa com coisa, tal como toda a Europa, há pelo menos 100 (cem) aninhos!

Anónimo disse...

O problema, derivado à idiota laicidade da República é a islamização de França, onde reside a origem do terrorismo que tem assolado o país, não se resolve com «políticas» de imigração ou outras, porque o tempo para isso já lá vai.

Hoje, a comunidade muçulmana francesa é gigantesca, não se acultura, cresce enormemente e continuará a querer ver o Islão implantado nas terras gaulesas.

O fim do terrorismo é uma distante miragem.

Quem resolve ?

Para onde vão os refugiados cristãos que não aceitem a preponderância do islão ?

O autor do texto, deve possuir a resposta.

Anónimo disse...

Marine Le Pen com suas ideias, não seja melhor que os outros, mas a Europa está precisando de alguém assim para fazer uma limpeza, especialmente na França, que virou uma imensa mesquita a céu aberto. Quem sabe se esta limpeza não se espalhe para a UE.

Anónimo disse...

Creio que não tenho intelecto suficiente, por nunca ter sido politizado, mas... vislumbro que o corte epistemológico aconteceu.
Sabe quem conhece, que o eleitorado francês é muito"volage" e que quem lhe der muito pão, circo e uns mimos, esse eleitorado voltará a votar nos anciãos.
Esperai com muita "fortitude" 5 anos de uma travessia de deserto,que a população francesa voltará à primeira forma depois deste descarilamento de percuso.
E enfim, isto tudo está muito diferente: quem diria que os partidos "donos daquilo tudo" poderiam alguma vez ter uma votação assim e já se estão a pendurar no Macron, qual Trump europeu. A culpa deve ser do Putinowsky e quejandos ou melhor ainda, de trampa a mais.
Com os meus repeitos,

Anónimo disse...

Ainda bem que a extrema-direita em Portugal "emigrou" em 25/04/74, senão ainda o ia ver a votar em Paulo Portas!

Manuel do Edmundo-Filho disse...

"O que é terrível, é que podemos dar as voltas que quisermos ao problema, se quisermos salvar a Europa, ou o que resta da Europa, e conservar uma “chance” de a repor nos rails, Macron é a única solução"

"Pelo que me toca, vou mergulhar num estado de indiferença político comatoso, sem alegria nem dor, que me torna livre de não escolher entre a peste e aqueles que a fabricaram para nos amarrar"

Dois comentários do mesmo Joaquim de Freitas ao mesmo post. De onde se conclui que Joaquim de Freitas não quer, afinal, contribuir com o seu voto para salvar a Europa.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...