Vivi o meu primeiro "Primeiro de maio" na segunda metade dos anos 60. Em sítios esconsos da faculdade apareceram colados uns papéis acastanhados com a expressão "Todos ao Rossio no 1º de maio", ou uma coisa assim. Creio que também havia a indicação de uma determinada hora, Com alguns amigos, muito por curiosidade, lá fui. Era um ambiente tenso, cheio de gente que se movia sem destino, olhando uns para os outros, alguns trocando sorrisos cúmplices. Vi-me a tentar perceber quem seriam os "pides" e os PSP à paisana, que sabíamos abundarem. Passaram uns bons minutos sobre a hora anunciada. De súbito, num dos cantos da praça, junto à estação, a caminho dos Restauradores, surgiu um burburinho qualquer, berros e gente a correr. Nos segundos seguintes, detrás no Teatro Nacional, saiu a polícia de choque, parte dela atrás da turbamulta que se agitara, a restante a "limpar" o largo de S. Domingos, em cuja esquina eu estava no momento. Do lado da "Casa da Sorte" criara-se uma outra onda de agitação, que caminhava na minha direção. A Ginjinha foi o meu local de refúgio. "Meu"? Devíamos ser aí uns vinte, alguns encavalitados sobre o mármore húmido do balcão, sem coragem de pedir "uma com elas", porque agora é que iam ser "elas"! Por detrás do balcão, os da casa não ousavam exigir consumo mínimo, tentando olhar o largo por cima de nós... Por maior naturalidade que tentássemos dar ao nosso ar, estar ali era uma coisa estranha. De repente, sair da Ginjinha tornou-se imperativo. Num instante, vi-me separado dos meus amigos, empurrado a caminho da praça da Figueira. Tentei não correr. Não cheguei à praça. Um bando de PSP de bastão, plantado na estratégica esquina traseira da Suíça, não estimulava continuar por esse caminho. Pensei entrar no "Braz & Braz", mas as portas tinham-se fechado. Voltar para trás era impensável, entrar na ruela à esquerda, a caminho do Hotel Mundial, era arriscado. Por alguma razão essa artéria estava deserta. Olhei à volta. O largo de S. Domingos estava pejado de uma boa dezena de polícias. Que podia fazer? Vi uma porta aberta, entrei num prédio e comecei a subir a escada, embora com a angustiante sensação de que estava a ficar cada vez mais encurralado. Ainda me perguntei: "Mas que tenho eu a temer? Não faço parte de nenhum grupo político, não tenho comigo mais do que uma pasta com sebentas". Mas logo me dei conta de que a racionalidade da situação era de difícil perceção por parte de um cívico de bastão de borracha preto com que viesse a cruzar-me. No primeiro andar, ao cimo da escada, abriu-se uma porta. Tive um baque. Era um homem dos seus cinquenta anos (provavelmente era mais novo, mas para mim tinha já alguma idade), com ar de escriturário ou coisa parecida. Ao olhar a ansiedade da minha cara, deve ter percebido tudo. "Venha para aqui. Deixe passar algum tempo. Isto depois acalma", disse, sem um sorriso, com um olhar neutro. Entrei, grato. Era um escritório, creio que de um despachante, mas já não estou seguro. Ainda devo ter balbuciado algumas palavras, mas rapidamente me dei conta de que o ambiente não estava para grandes conversas. Alguns iam, de quando em vez, por um corredor longo, até à janela num compartimento que dava para o Rossio. Achei que o meu estatuto de "asilado" não me dava o direito a partilhar esse "voyeurisme", pelo que me mantive sentado na cadeira que me tinham oferecido (nos dias de hoje, estaria a consultar o iPhone, pela certa). Não sei quanto tempo passou, pareceu-me muito, mas deve ter sido pouco mais de um quarto de hora. O meu hospedeiro, que manifestamente tinha um ascendente na sala, a qual, aliás, dava ares de estar prestes a encerrar, disse-me, a certa altura: "Acho que já pode ir. As coisas acalmaram". Agradeci e vi os outros ocupantes do escritório olharem para mim, com o que me pareceu ser uma completa indiferença. Ou seria outra coisa, não sei. Não houve sequer um sorriso, embora eu quisesse crer que era uma silenciosa cumplicidade. Porventura triste e resignada. A rua, de facto, estava livre. Já só se viam uns PSP em farda normal, de cor cinza. Cheguei ao Martim Moniz onde apanhei o elétrico até ao Chile e, depois, o "dez" para os Olivais. Terei contado a "aventura" em casa? Não sei. Tinha vindo para Lisboa para estudar, não para estas guerras.
Hoje é o "Primeiro de maio". Se calhar, vou beber uma ginjinha ao Rossio.
(Dedico este post, escrito depois da meia noite, ao Afonso Camões. Só ele percebe porquê)
Hoje é o "Primeiro de maio". Se calhar, vou beber uma ginjinha ao Rossio.
(Dedico este post, escrito depois da meia noite, ao Afonso Camões. Só ele percebe porquê)
14 comentários:
Primeira metade dos anos 60 ???????
Teria no máximo 16/17 anos, não?
De primeira metade, passou a segunda?
Sr. Embaixador, gostei do texto do seu testemunho muito intenso mas que nos "dá largas" para imaginar situações e sentimentos de tantas outras pessoas nesse local e nesse dia "histórico"!
Feliz 1º de Maio para si.
Angela
Uma data universalmente celebrada, mas que de hipocrisia à sua volta. E que triste situação quando se pensa que no "Dia dos Trabalhadores", há 11,3% de trabalhadores que não têm ... trabalho na Europa. Uns milhões....
Pensar que quando Lenine em 1920 decretou que o primeiro de Maio seria feriado, todos os países acompanharam... Mesmo Hitler, que , para agradar à classe operária , decretou em 1933 que este dia seria feriado e pago... E a França de Vichy , com a mesma intenção, imitou-o em 1941...sob a ocupação. Não esquecendo de notar que a propaganda fascista de Vichy chamava a atenção para o facto que a festa coincidia com a celebração do dia de São Filipe ... como Pétain. Le Pen também adoptou esta data com grande fervor patriotico...
Os cinco enforcados pelo governo americano em 1886, os Mártires de Chicago , que tinham manifestado pelas OITO horas de trabalho , não podiam imaginar que o seu combate daria o resultado actual. Embora pelo menos um, Augustin Spies, o tivesse pensado.
Uma estela no cemitério de Waldheim, em Chicago, tem inscritas as suas ultimas palavras : " O dia virá em que o nosso silêncio será mais poderoso que as vozes que estrangulais hoje".
~
~~ Muito interessante e louvável, a crónica deste episódio vivenciado com tanta intensidade.
~~ Mais que meritório, é imperativo passar o testemunho às gerações que cresceram em democracia, pois nem imaginam como era a repressão no tempo da ditadura.
~~ Também é uma veemente exortação ao cumprimento de deveres cívicos e democráticos.
~~~~~ Com os meus melhores cumprimentos. ~~~~~~
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Por lapso, numa primeira versão o texto, que esteve legível até tarde, escrevi "primeira metade dos anos 60". Ora a historieta passou-se, creio, em 1968. Fica feita a correção sobre este episódio, no qual não há a mínima heroicidade e cuja publicacao é apenas um registo curioso de oportunidade.
"Viva" o 1ª de Maio de greve na TAP.
Muito mais educativo para o futuro, nessa quarta-feira de Maio 1968, era ver "2001 Space Odyssey", de Stanley Kubrik, mas era mais engraçado "viver" uma réplica descolorida front populaire française de 1936.....
Caro Chico
Nao estive nesse Primeiro de Maio, pois encontrava-me em Angola como tenente miliciano. Mas estive num 5 de Outubro a ouvir o Mário Soares que estava a fazer um discurso sobre a Liberdade, até que que a Polícia (s?) chegou interrompeu o discurso e correu a malta à coronhada...
Já passara por cenas semelhantes quando o Humberto Delgado no Liceu Camões apresentou (ou tentou apresentar publicamente a sua candidatura a Presidente da República.
Vinha desembestado pela Duque de Loulé (onde havia tanques) e parei junto de uma montra de uma pastelaria, quase ao chegar ao Marquês de Pombal (não do Pombal). Estava a colar com muita satisfação uns selos que diziam VOTA DELGADO com a face traseira para lamber e colar. Não havia autocolantes...
Foi então que senti nas costas uma coronhada a doer. Voltei-me. Era um cívico com uma espingarda e um capacete à alemão. O qual (cacete) era preto e tinha uma estrela a branco.
Antes que levasse outro mimo com a coronha da espingarda, pirei-me e nem sei como só parei no Restelo onde morava. Não nascera para herói...
Abç
Quando Barroso aceita prefaciar um livro de Miguel Relvas está a perder alguma da pouca aura que ainda pudesse ter e a atascar-se no mundo da lama.
Espero que tenha ido mesmo até à Ginjinha, e que esta (ou várias) lhe tenha sabido bem. Afinal (também) uma boa maneira de comemorar o 1º de Maio.
Em muitos casos só se perderam as que cairam no chão.
O comentador das 20.36 esqueceu-se de nos deixar o seu n° de membro da Legião Portuguesa, benemérita organização onde deixou a coragem que o levou a não subscrever o comentário.
O comentador das 20.36, é muito atrasadinho.
Apenas a partir do 26 de Abril de 1974 descobriu as virtudes do Homem de Santa Comba, e dos métodos que utilizava para acertar o passo ao nobre povo.
Pelo que notamos hoje, a partir da queda da cadeira foram os legionários e a Mocidade Portuguesa e seus descendentes que rasteiraram o pobre e aprendiz de feiticeiro Marcelo Caetano.
A história mostra que em Portugal as coisas para funcionar.só com a «divina providência».
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