Faz parte do circuito turístico obrigatório de Havana uma passagem pela moradia onde viveu Ernest Hemingway. Embora o escritor, cujas simpatias progressistas eram conhecidas, não tivesse por ali permanecido muito tempo em pleno período castrista, a sua "Finca Vigia" (curiosamente, a residência do presidente do governo regional da Madeira também se chama "Quinta Vigia") surge subliminarmente inserida na geografia afetiva de que a Revolução cubana se reivindica. Note-se, de passagem, que quinta, casa e recheio foram nacionalizados depois da queda de Fulgêncio Baptista, como a muitas outras propriedades iria acontecer em Cuba.
Há anos, durante uma visita que o meu colega embaixador português em Havana tinha preparado para nós à "Finca Vigia", estava incluído um "tour" pelo interior da casa que, não sendo muito grande, tem a curiosidade de manter alguma "memorabilia" do escritor, em especial alguns milhares dos seus livros, coisa que me divertiria observar, porque por aí ficaria a ter uma ideia daquilo que interessava a quem tão magnificamente escrevia.
Chegados à propriedade, nos arredores da capital, deparou-se-nos um inesperado problema. No dédalo burocrático que o sistema cubano ainda mantinha (e desconfio que manterá), dentre a documentação que o meu colega apresentou à responsável, faltava uma autorização de uma qualquer entidade da área cultural. Sem essa assinatura ou esse carimbo, estava definitivamente comprometida a possibilidade de entrada.
Simpática, a senhora fez algumas diligências telefónicas, desfez-se em desculpas, mas ordens eram ordens. Aliás, esclareceu, talvez para suavizar a nossa desilusão, que as autorizações para visitas ao interior eram muito raras, contando-se não mais do que uma dezena por ano. Mostrou-nos, a propósito, um livro de honra onde figurava a assinatura de uma "muy importante personalidad" que tinha, meses antes, tido esse privilégio. Tratava-se no embaixador da Macedónia junto das Nações Unidas, curiosamente um colega que eu conhecia bem.
Simpática, a senhora fez algumas diligências telefónicas, desfez-se em desculpas, mas ordens eram ordens. Aliás, esclareceu, talvez para suavizar a nossa desilusão, que as autorizações para visitas ao interior eram muito raras, contando-se não mais do que uma dezena por ano. Mostrou-nos, a propósito, um livro de honra onde figurava a assinatura de uma "muy importante personalidad" que tinha, meses antes, tido esse privilégio. Tratava-se no embaixador da Macedónia junto das Nações Unidas, curiosamente um colega que eu conhecia bem.
Bom, se não era possível a visita, far-se-ia uma volta a pé à moradia, olhando-se o seu interior através das portas envidraçadas e das janelas, a maioria das quais estavam abertas. Não sendo a mesma coisa, ficava-se com uma perspetiva generosa da casa. A nossa guia foi-nos acompanhando, com grande amabilidade, apontando as diversas áreas da habitação e chamando a atenção para alguns pormenores da decoração e equipamento.
À medida que a visita prosseguia, fui-me apercebendo de que, no interior da casa, se movimentavam três outras senhoras, que nos sorriam e se iam afastando, como para não perturbar a nossa visão. De camiseta branca e saia travada muito curta (uma "moda" que eu já tinha visto reproduzida noutros mundos do "socialismo real", mesmo se, como era o caso, estava algo inadequada ao perfil físico das senhoras), não pareciam desempenhar um trabalho muito evidente.
Não sem alguma disfarçada ironia, mas com real curiosidade, perguntei o que faziam aquelas pessoas. A resposta foi pronta: "Son las veladoras", respondeu-me a nossa guia. Inquiri o que eram as "veladoras" e foi-me explicado que a sua função era acompanhar as visitas ao interior da casa, pela qual "velavam", servindo simultaneamente de guias. "Mas não me disse que, no ano passado, apenas houve meia dúzia de visitas autorizadas ao interior da casa". Sim, claro, foi-me confirmado. "Então, nesse caso, o que é que elas fazem?" Pelo olhar do meu colega embaixador e da sua mulher dei-me conta que talvez tivesse excedido a minha quota razoável de curiosidade inquisitiva. A minha interlocutora, contudo, não se descompôs e logo respondeu: "Lo que hacen? Pues allí están para acompañar a los visitantes. Quando los hay, por supuesto!"
Não sem alguma disfarçada ironia, mas com real curiosidade, perguntei o que faziam aquelas pessoas. A resposta foi pronta: "Son las veladoras", respondeu-me a nossa guia. Inquiri o que eram as "veladoras" e foi-me explicado que a sua função era acompanhar as visitas ao interior da casa, pela qual "velavam", servindo simultaneamente de guias. "Mas não me disse que, no ano passado, apenas houve meia dúzia de visitas autorizadas ao interior da casa". Sim, claro, foi-me confirmado. "Então, nesse caso, o que é que elas fazem?" Pelo olhar do meu colega embaixador e da sua mulher dei-me conta que talvez tivesse excedido a minha quota razoável de curiosidade inquisitiva. A minha interlocutora, contudo, não se descompôs e logo respondeu: "Lo que hacen? Pues allí están para acompañar a los visitantes. Quando los hay, por supuesto!"
Nestes tempos em que dizemos um "até jà" à "troika", cujas sábias políticas nos trouxeram uma taxa de desemprego que vai ficar nos anais da nossa História e no sacrifício forçado de muitas e muitas famîlias, pergunto-me se o "benchmark" cubano de políticas ativas de combate ao desemprego não deveria inspirá-los.
(Roubei a foto a Ana Marques Lopes, do FaceBook)
8 comentários:
Oh... Por quem os Sinos Dobram...
Caro Embaixador,
O seu texto fez lembrar-me um episódio vivido aí mesmo, na Finca Vigia, em meados dos anos 90, quando produzi e dirigi um documentário intitulado “O enigma cubano” da autoria do meu Pai, o que obviamente me levou de volta a Cuba (onde tinha vivido durante três anos, entre 75 e 77), por mais de 2 meses.
Um dos “vivos” era filmado na “Finca Vigia”, o que motivou longas e burocráticas negociações que permitissem filmar não no exterior – como os “comissários” do todo-poderoso Instituto de Cinema, vulgo ICAIC, pretendiam – mas sim dentro da própria casa. Telefonema para lá, reunião para cá, cafezinho aqui, enfim um verdadeiro “folhetim” que culminou com uma espécie de “tratado de tordesilhas” audiovisual: “Filmas na sala principal, mas sem transpor á área fechada ao público e que está delimitada por umas baias”. Do mal o menos... Chegado o dia, lá chegámos à “Finca Vigia”. Começámos a instalar e montar o equipamento na sala, perante o ar aparvalhado do guarda da casa que nitidamente estava mais interessado em ver se “lhe tocava algum” do que em qualquer outra coisa. A uns três ou quatro metros de onde eu estava, arás das tais baias, as estantes do velho Ernest “chamavam-me”, eu diria mesmo “clamavam” por mim – as lombadas mexiam-se inquietas, os volumes piscavam-me o olho, os livros ajeitavam-se, alguns mesmo deitavam-me lânguidos e prometedores olhares. E eu ali, “embaiado”, contido, doido para, na verdadeira acepção do termo, “pular a cerca” e pegar-lhe, mexer-lhes, folheá-los... A certo momento não aguentei mais e ao mesmo tempo que mandava o camera mexicano que trabalhava comigo ignorar o raio das baias e colocar o tripé e as luzes do lado de lá, enfiei uma nota de 100 dólares na mão do “compañero” que supostamente estava ali para fazer cumprir as ordens superiores emanadas desde Havana. escusado será dizer que segundos depois e enquanto a produção ajeitava as coisas para começarmos a gravar, já eu estava de cócoras observando detalhadamente as estantes. Não sei porquê, fui direito a uma prateleira das debaixo (talvez a segunda ou terceira a contar do chão) e comecei a ver os títulos das lombadas. De repente, numa lombada, creio que azul escura, vejo sete letras douradas já um bocado para o gastas: “Salazar”. Pego no livro, abro-o e deparo-me com a edição norte-americana do livro de António Ferro, publicada em Miami - já não me recordo em que ano!
Escusado será dizer que foi um "frou" entre os portugueses que ali estávamos : “O livro do António Ferro sobre o Salazar?! Na biblioteca do Hemingway?! Extraordinário!”
Para acabar: confesso que (naturalmente) estive quase a abichá-lo.Não o fiz porque pensei que o meu Pai ficaria furioso comigo. Imagine qual não foi o meu espanto quando à noite, ao jantar, com um sorriso malandro, ele perguntou-me: “Então Zé Paulo, trouxeste o livro do António Ferro, espero...”. Não imagina o trabalhão que tive em convencê-lo do contrário. E as vezes que me apeteceu voltar à “Finca Vigia” com mais uma nota de cem dólares...
Quem sabe se um dia destes ainda volto lá…
Ehehehehhehehehehheheheheheheheheh!
Abraço,
ZPF
Caro José Paulo Fafe: magnífica memória a que aqui nos deixou, com muito mais graça que o meu texto que a motivou. Isto é como as cerejas... Um abraço
boa história que não é só anedótica mas profunda, definidora de concepções politicas, governativas, de sistemas aplicados num lado ou noutro, para mim sei qual o que prefiro, etc, boa crónica, pena que aquilo não se possa visitar como todas as casas museus...
Não é só em Cuba. Há uma Casa-museu na rua Almeida Araújo, em Lisboa, que é semelhante. Pode ter sido azar meu, mas no dia em que lá fui aquilo foi um autêntico Calvário. Começou pelo olhar desconfiado dos vigilantes quando abriram a porta da rua e apareceu o único visitante que era eu. Depois, sucessivos entraves para ver as salas todas onde, aliás, nunca deixei de ser seguido a par e passo. A seguir, proibição de aproximar demais das vitrinas onde estavam expostos imensos bibelots, muitos deles relógios antigos e raros e outras peças que só podem ser apreciadas de perto. Finalmente o ar de alívio dos 3 ou 4 vigilantes quando o único visitante saiu. Enfim...
boa historia tambem a de zpf e, já agora, que casa é a da rua araujo, gostava de saber, gosto de casas museus sem duvida...
Referente ao comentarista Domingos:
http://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/
Quereria dizer: Rua Rosa Araújo?
Vou ver o cambio 100 dólares/€, mas parece-me uma "gorgeta" muito elevada... ah ah ah ah ah ah.
Devia ter aproveitado, discretamente. Foi tolo. Ou julga que o Criador se iria importar?
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