quinta-feira, maio 22, 2014

A trabalhar numas ideias

Conheço-o há muitos anos. Mas vemo-nos muito pouco. Não posso sequer dizer que sejamos amigos, somos apenas conhecidos, embora com forte cordialidade no relacionamento. Confesso que nunca o levei muito a sério e ele deve tê-lo pressentido ao longo dos tempos, pelo que mantém comigo uma atitude que tem por detrás uma difusa tensão. É uma pessoa culta, bem preparada, informada, com alguma graça, de quem, potencialmente, se espera alguma obra. E da boa. Quando, por acidente, nos encontramos, quase sempre com anos de intervalo, temo imenso perguntar-lhe como anda a sua vida. Porquê? Porque nunca está "em nada", está sempre a caminho de ir fazer alguma coisa. Fala-me de planos, de projetos, de ideias. Nunca de nada feito, concretizado. Não sei bem como e de que vive. Eu receio inquirir, com medo de o poder ofender ou afetar a sua privacidade. Curiosamente, ele, sem limitações, como num "preemptive strike", refere-se, "de cima", à minha própria vida profissional ("então li que agora andas pelas empresas? Olha p'ró que te havia de dar! Largaste as estranjas e as viagenzecas pelos Brasis?). Curiosamente, tem sempre o tempo muito ocupado. Quando nos cruzamos, numa esquina ou num café, nunca vem sem ser de passo apressado, um pouco inclinado para a frente, numa espécie de coreografia de movimento. Transmite quase a ideia de estar a perder o seu tempo, que lhe é precioso, conosco. De papelada na mão, tem uma agenda apertada ("saí agora de um almoço com Sicrano, em que estivémos a explorar uma ideia bem gira. Um destes dias, conto-te"). Refere outros encontros para "logo" ou "amanhã", bem como viagens futuras ("tenho de ir ao Porto para a semana, para estar com Fulano") ou passadas ("estive com Beltrano em Évora, em abril, para tratar de um projeto que estamos a preparar. Sou capaz de ter de ir à Islândia antes do Verão. Conheces alguém por lá?"). Deixa coisas no ar ("tens visto aquele tipo gordo, da Guarda, que era teu amigo? Preciso de falar com ele, para um estudo que estou a preparar") ou em que podemos vir a ser-lhe útil ("se calhar, vamos ter que falar um destes dias sobre uma coisa ligada lá às Necessidades. Dás-te bem como o teu colega em S. Marino?"). Mas logo deixa cair o assunto, que fica invariavelmente para "mais tarde". Quando lhe lembro, quase só para alimentar conversa, uma ideia que em tempos me tinha dito que andava "a trabalhar", na última vez em que faláramos, diz-me, com o despreendimento de quem tem uma "carteira" de tarefas incompatível com essa coisa que se revelou menor: "É pá! Larguei essa cena há muito! Não dava!". E passa à frente, rumo ao futuro que sempre lhe alimentou o presente. Uma coisa é certa: quase todos os nomes que cita, gente com quem falou ou vai falar, são pessoas credenciadas. Cultiva, assim, junto dos amigos, uma espécie de currículo feito dos conhecimentos que alega ter, e que, aliás, nem sequer duvidamos que de facto tenha. O que nos poderia conduzir, no fim da conversa, a ficarmos com a noção de que ele está, de facto, "a colaborar" com esses nomes mais ou menos sonantes, podendo ficar nós na expectativa de o ver associado ao respetivo trabalho. Só que, lá no fundo, todos os que o conhecemos, em especial essas pessoas, sabemos, de ciência segura, que tal acabará por nunca acontecer. Mas ele, ao contrário de nós, não desiste: continuará a "trabalhar numas ideias". Será feliz?

14 comentários:

Mônica disse...

Francisco
O seu amigo deve ser como alguns que tem diversos amigos dentre eles alguns imaginarios.
Mudando de assunto
Ainda estou lendo devagarinho e resumindo aos poucos tanto amr, por isso estoud emorando para te contar o que entendi.
por email te contarei.
com carinho Monica

Um Jeito Manso disse...

Ó Senhor Embaixador, não estará a falar do grande facilitador Relvas, esse grande empreendedor e estadista que vive dos contactos, da invejável agenda, de, justamente, ir almoçar com sicrano, jantar com beltano, bater umas bolas com este, ir até ao casamento da filha do outro, agarrar no telefone e dar uns palpites... e por aí vai?

Olhe que há mesmo quem viva disso, Embaixador...!

Boa noite!

Helena Sacadura Cabral disse...

Belo texto, Francisco.
Julgo que todos nós "conhecemos" sempre alguém assim!

Anónimo disse...

Aqui no Porto as pessoas "assim" são apelidadas de aldrabões. E está tudo dito!
Bjhs
CL ou VW

Paulo Abreu e Lima disse...

Senhor Embaixador, deixe que lhe diga que este texto está magistralmente bem escrito. Parece que todos nós, de uma maneira ou de outra, conhecemos a personagem.

A propósito, e permita-me a graçola, surgiu-me um nome que assentaria bem nesta figura, que trabalhou muitas ideias até à descoberta final: Doutor Baptista da Silva...

Cumprimentos,
PAL

opjj disse...

Tive dois casos assim na minha Campanhia na guerra do Ultramar.Ambos excelentes pessoas, mas Um deles, extraordínário,muito culto prá época.Nunca arranjou emprego e dizia viajar muito em negócios.Outro trabalhou em vários países.Eu sentia-me pequenino no meio de tanta facilidade. No início, estavam sempre presentes no almoço anual comemorativo da Vida. Deixaram de ir, afinal as suas vidas eram frágeis e periclitantes. Que passado feliz que o tempo desfez.
Cumps.

Anónimo disse...

Quando cheguei ao meio do seu texto, confesso que, ao longo da minha vida, conheci vários "sujeitos" com essas características. Nunca vi que tivessem feito algo de concreto... A sua observação é estupenda!

patricio branco disse...

há pessoas assim, aqui está tipificado esse tipo de gente, vivem de ilusões dirigidas aos outros e tambem a eles mesmos, suprem uma certa mediocridade e incapacidade com essa encenação, seria preferivel aceitarem que são como são.
esta maneira de ser não é negativa em si, mas define um tipo psicológico e de comportamento que existe de facto, como existem outros diferentes.
um bom retrato sem duvida o aqui feito, certeiro, gostei de ler e, afinal, talvez quase todos tenhamos um pouco disso, uns mais, outros menos, outros demasiado, outros quase nada.

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto, a meu ver, algo queirosiano. Quando entramos no Ministério compenetramo-nos de "espelhismo"até à medula, isto é, à importância que temos que dar ao parecer e ao paraître. Eu serei a exepção? Acho que se fosse rico chegar-me-ia viver de literatura. Palavra de honra.

Anónimo disse...

Sr. embaixador: o seu texto é de alguém que conhece muito bem a natureza humana e que sabe transmitir isso aos outros. É alguém a quem se encomenda um trabalho, que compra todos os estudos sobre o assunto, mas que nunca passa nada à prática e que pode deixar pendurado quem lhe encomendou o trabalho. Ou quem lhe compra e paga antecipadamente um trabalho e tem de lhe "apertar os colarinhos" para o ter dentro dos prazos.Mesmo assim, às vezes não tem. Não sei de quem se trata, mas creio ter-me cruzado com um duplo dele algures na Beira Alta, junto a uma estação dos Correios ou numa estação de caminhos-de-ferro. Sou engenheiro civil e conheço pessoas a quem o seu retrato assenta às mil maravilhas.
Passam pela vida assim... Só não percebi ainda se são felizes ou infelizes. Acho que é preciso ter talento para escorregar assim pela vida. Na política, seria um portento. Será que tem rendas ou lhe saiu a lotaria? Conheci um personagem idêntico que frequentava o Montecarlo, o Vává e a Ideal das Avenidas (requiescant in pace a Ideal e o Montecarlo!!!!)

Anónimo disse...

Belo texto! Talvez escrever menos, deixar os obituários, as tentações narcísicas, escrever menos, mas com esta qualidade, neste país onde isso é cada vez mais raro.

josé ricardo disse...

Infelizmente, caro Seixas da Costa, não posso acompanhar os desinteressantíssimos comentários ao texto.

Um abraço,

José Ricardo

Anónimo disse...

Cosmopolita. O homem é um cosmopolita. É tudo! É português!
antonio pa

João Manuel Vicente disse...

Resumindo: um mitomano procrastinante...?

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