quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Censura

Com o tema da censura a ser suscitado por aí, falemos do tempo em que ela existia.

A censura, no tempo do Estado Novo, era uma atividade que o regime tinha colocado nas mãos dos militares. Em Lisboa, eram famosos os "coronéis" que, dia-a-dia, se dedicavam a assinalar, a lápis azul, aquilo que, nos textos da imprensa, entendiam como podendo ofender os seus mestres ou os costumes oficialmente protegidos.

Na província, a "Comissão de Censura" (depois, com Marcelo Caetano, passou ao eufemismo de "Exame Prévio") tinha também os seus militares. Em Vila Real, era o  velho capitão Medeiros.

No final dos anos 60, já na universidade, comecei a publicar alguns artigos em "A Voz de Trás-os-Montes", um jornal local ligado à diocese, que ainda existe. Iniciei-me na escrita desportiva mas, na "primavera marcelista", ousei entrar pela política interna. Os textos eram muito rebuscados, cheios de duplas leituras, só acessíveis a alguns "happy few", um pouco à moda do que então lia no "Diário de Lisboa", no "República" ou na "Seara Nova". Agora, ao revê-los, fica patente a sua total inocuidade, garantida pelo reduzidíssimo número de potenciais leitores, afastados pelo caráter quase impenetrável da escrita. 

Por uma ou duas vezes, o capitão Medeiros ironizou com o meu Pai sobre as minhas "ideias avançadas", expressão para designar tendências esquerdistas que pressentia nas entrelinhas. Ao diretor do jornal, o padre Henrique Maria dos Santos, o nosso censor local passou também algumas mensagens de aviso, no sentido de eu me "deixar de espertezas". Lá fui, contudo, continuando a escrever, com algum cuidado mas sempre sem grandes obstáculos. Aliás, o capitão Medeiros deve ter ficado menos preocupado quando, a partir de certa altura, passei a dedicar-me apenas a temas de política internacional. Até um dia!

O tema era a Rodésia e eu analisava os problemas entre o Reino Unido e o independentismo branco de Ian Smith, bem como as polémicas entre a ZAPU e a ZANU. O texto era algo hermético, com muitos e dispensáveis detalhes, que eu tinha bebido na imprensa internacional. (Com os diabos! Só temos 20 anos uma vez!)

Uma tarde, o capitão Medeiros encontrou o meu Pai na rua Direita, esse eixo de Vila Real, e deu-lhe os parabéns: "Parece que o seu filho está a entrar no bom caminho! Escreveu um bom artigo sobre a Rodésia!". O meu Pai, que ainda não tinha lido o texto, conhecendo-me bem, estranhou, mas agradeceu o elogio.

Dias depois, o diretor do jornal, à porta da Gomes (essa pastelaria mítica da cidade), disse-me: "O capitão Medeiros está furioso. Afirma que você o enganou com o texto sobre a Rodésia. Levou uma advertência dos serviços centrais da censura, em Lisboa. Já me disse que, por este caminho, não o deixa publicar mais nada".

O que acontecera? O pobre do capitão Medeiros deixara-se "enrolar" nas minhas considerações e, em especial, permitira a última e fatal frase que eu incluíra no texto: "Ou muito me engano ou a Rodésia tem à sua frente um futuro negro". 

A quatro décadas de distância, eu estava longe de imaginar que, por detrás da procurada ambiguidade da minha frase, acabaria por residir uma triste e insuspeitada presciência...

9 comentários:

Alcipe disse...

Pois eu escrevia por essa altura no não menos sofisticado e cosmopolita "Notícias de Chaves" ... mas só sobre Poesia!

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador, acaba de me fazer reviver tempos atribulados da família que me dei ao luxo de constituir. É que fui chamada ao Pedro Nunes por causa do meu filho Miguel que, a propósito de uma redação sobre a Primavera, falava das baionetas da polícia apontadas às mulheres que a 8 de Março desciam a Av. da Liberdade!
Foi o cabo dos trabalhos para convencer a professora sobre a "liberdade poética" que o texto revelava...

Anónimo disse...

É Henrique Maria dos Santos.

Luís Bonifácio disse...

A censura existia e, ao contrário de hoje em dia, sabiamos bem com o que contar. Mas parece essa censura não sabia falar estrangeiro, pois ainda tenho comigo as Paris-Match com as reportagens do desvio do Santa Maria e da quade do Estado da Índia, compradas pelo meu pai num qualquer quiosque do Porto.

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa, sem dúvida que a censura do regime autoritário do Estado Novo nada tem a ver com as actuais tentativas de condicionamento de liberdade de imprensa. Não compartilho esta tese específica, subscrita por Pacheco Pereira no programa quadradutura do círculo, para o caso português sem que haja provas concretas.

Todavia, considero que hoje em dia neste mundo Global, como nos dizem muitos politólogos vivemos em "democracias musculadas" devido ao peso das tecnocracias e da complexidade e multiplicidade de leis e de regras que servem os interesses dos grandes poderes económicos para que os cidadãos sejam seres anódinos. Esta é a minha convicção profunda das leituras de filosofia da história do nosso mundo ( nesta metodologia de indagação que devo às leituras de Raymond Aron ).

Agredeço o testemunho pessoal, que muito aprecio, que o Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa nos deixa sobre as "fintas" feitas à censura e o embotamento crítico, ou inocência, de alguns censores da época.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

Anónimo disse...

"Censura"

Censura é quando nos sentimos...
Censura é quando Todos nos inibimos.
Censura é escárnio é maldizer
É a maledicência ébria de prazer

Isabel seixas

Helena Oneto disse...

"Censura : Função de censor, Condenação eclesiástica de certas obras. Exame crítico de obras literárias ou artísticas. Corporação encarregada desse exame. Repreensão, reprovação. Acto digno de censura"...

In "Lello & Irmão Editores, Porto 1979- Novo dicionário enciclopédico Luso-Brasileiro. O mais completo vocabulário que até hoje se apresentou em diciónarios desta naturesa, abrangendo : A língua, as letras, as ciências e as artes."

Preciso urgentemente de comprar um mais recente!

Maria Climénia Rodrigues disse...

Parafraseando a dignissima Helena Sacadura Cabral...
O Senhor Embaixador , por acaso já era nascido (para estas lides, claro) no tempo do jornal cor de rosa, Comércio do Funchal, onde, e apesar de trabalhar na altura no MNE, como secretária do Dr. Archer(que também não deve ser do seu tempo),tive o grande orgulho de fazer algumas crónicas, sempre debaixo do lápis da censura, e sempre tentando reinventar palavras que pudessem escapar ás sua malhas,e, que lidas nas entrelinhas, transmitissem todo o sentido que queriamos então transmitir...
Bem, está a bater a nostalgia....

José Cavalheiro disse...

Boa tarde Sr Embaixador.
Continuo por aqui a ler os seus posts, e ouvindo o que para ai vêm sobre o PEC ..... lá vem mais maleita para quem dada a incúria dos políticos pagar a crise ....
Gostei do seu post sobre a censura, eram realmente tempos "medonhos", e é com pena que hoje vejo que a maioria do nosso povo esqueceu esses tempos.
Considero que o facto de na escola não ser aprofundado os tempos do "ESTADO NOVO" o estamos a branquear.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...