Éramos quatro, entrámos pé-ante-pé, pelas escadas, evitando o elevador. O
prédio era "ao Califa", ali na estrada de Benfica. A informação era
muito segura: o Cordeiro, um sinistro inspetor da PIDE, ter-se-ia safado do cerco
da António Maria Cardoso e podia estar refugiado em
casa ou prestes a aceder a ela. Se iria resistir ou não, isso era o que se ia ver,
e não nos sossegava mesmo nada.
No terceiro andar esquerdo, batemos à porta e
preparámos as armas, mimando a coreografia que víamos nos filmes, com a
“expertise” operacional de quem vinha da administração militar. De dentro, uma
voz feminina perguntou quem era.. .
"Forças Armadas”, respondemos, num
plural majestático que estava a ter momentos de glória ímpar nessas horas, logo
após o 25 de abril.
A porta abriu-se, lenta, com a cara fechada
de uma mulher de meia-idade a aflorar. Logo atrás, face angustiada, via-se uma
rapariga mais nova, na casa dos 20 anos. Entrámos e o ambiente foi de
compreensível frieza, com respostas algo agrestes, de uma dignidade ferida, sem
remissão.
Eram a mulher e a filha do inspetor.
Procurámos ser muito corretos, embora firmes e incisivos nas questões, até para
dar ares de uma determinação que disfarçasse o nosso imenso nervosismo. Que
não, que o inspetor não estava, o que uma busca à casa logo confirmou, e não
sabiam onde poderia encontrar-se ou se viria até à noite. Mas, pela conversa e
outros dados circunstanciais, ficámos com a suspeição de que o Cordeiro ainda
poderia chegar. Como
nos tinham dito. Dispusémo-nos a deixar cair a noite, esperando o
fugitivo Cordeiro.
Estudámos a situação e, em discreto
conciliábulo, pensámos que seria melhor isolar as duas mulheres, afastando-as
do telefone negro na mesa da sala, não fosse elas serem tentadas a dar alarme,
caso o inspetor entretanto ligasse. Dividimo-las por dois quartos, ambas
acompanhadas. Dois de nós montámos uma espera no corredor, aguardando o
eventual abrir da fechadura.
Passara já mais de uma hora, quando, no
imenso silêncio que ali se vivia, se ouviram, de um dos quartos, uns ruídos
estranhos, parecendo gemidos ou choro, de súbito calados.
"Tu não queres ver que o Silvestre perdeu a pachorra e decidiu dar dois tabefes à filha
do pide, para lhe sacar o paradeiro do pai?!", exclamou o Branco.
Não acreditei. Esse não era o estilo do
Silvestre, um miliciano de Económicas, muito educado, com pinta de galã.
Atravessei o curto corredor, abri a porta do quarto: lá estavam eles, sentados
na cama, ela a vestir-se, sorridente e algo encavacada, com o Silvestre, já a puxar por um cigarro.