- Em qual das igrejas será?
Havia tantas, em Ouro Preto, onde estávamos a chegar, num escuro final de tarde, nesse ano de 2005. O avião que nos trouxera de Brasília a Belo Horizonte tinha-se atrasado três horas. Alugar carro, sair do aeroporto de Confins e, sem GPS, descobrir e fazer a estrada para Ouro Preto não fora tarefa fácil. Era a primeira vez que eu guiava em estradas brasileiras e estava sob uma imensa pressão de tempo. Era já seguro que ia chegar atrasado à cerimónia em que ia receber a “medalha do Aleijadinho”.
Na confusão, deixara na mala as indicações sobre a igreja em que a cerimónia se ia passar. Mas, perguntando aqui e ali, lá conseguimos chegar à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, onde está o túmulo do António Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, o genial artista que é a glória da estatuária do Brasil.
- O Francisco é que sabe, mas eu, no seu lugar, não dizia à Lusa que ia receber a “medalha do Aleijadinho”. Já estou mesmo a ver o modo como alguns dos seus “amigos” no MNE irão explorar o assunto...
O alerta tinha sido do nosso conselheiro cultural na embaixada, o pianista Adriano Jordão, com um largo sorriso. Tinha razão. O Boletim de Informação Diplomática (o célebre BID) iria titular “Medalha do Aleijadinho para Seixas da Costa”... Dei, por isso, instruções ao nosso conselheiro de imprensa, o jornalista Carlos Fino, para fazer um “black out” à notícia.
Contudo, era para mim uma grande honra ter direito à medalha que, anualmente, a prefeitura de Ouro Preto concedia a uma personalidade. Fora informado de que era a primeira vez que um embaixador de Portugal tinha essa distinção. Isso ocorreria durante a cerimónia solene em que seria celebrada a memória desse artista de exceção (nascido num ano impreciso, entre 1730 e 1738, e que morreu em 1814). Cerimónia para a qual eu estava atrasado...
- O embaixador traz motorista?, perguntara-me a chefe do Cerimonial (nome brasileiro para Protocolo) quando a contactei pelo telefone, de Belo Horizonte, informando do atraso. Deve ter ficado muito surpreendida, quiçá desiludida, quanto lhe disse que “eu era o meu próprio motorista”.
Mas lá consegui chegar. Estacionei o carro “tant bien que mal” e entrei disparado na igreja, à pinha, com uma plêiade de religiosos no altar, como eu jamais vira. Fui conduzido para junto do Prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, que recebeu com um sorriso compreensivo as minhas desculpas pelo atraso, que lhe transmiti em voz baixa, para não prejudicar o desenrolar do evento. Mal eu sabia então que o Ângelo se iria converter num grande e eterno amigo.
- Vem muito a tempo. O importante é que já cá está connosco, disse-me, sossegando a minha tensão, fruto do atraso e da condução nervosa.
Ângelo Oswaldo explicou-me a “coreografia” que se iria seguir, depois da missa que estava a decorrer (afinal, “aquilo” era uma missa e eu não me apercebera, pensando ser uma outra cerimónia - fruto da minha rara convivência com os atos religiosos).
Iria receber, das suas mãos, a “medalha do Aleijadinho” e, caber-me-ia atravessar depois toda a nave da igreja, por entre a multidão, e depositar no túmulo do Aleijadinho uma coroa de flores que, previamente, havíamos encomendado. Depois, regressaria perto do altar e, de um pequeno palanque, faria a minha intervenção.
- Quanto tempo acha que devo falar?, perguntei.
No avião, tinha lido partes de um livro sobre o Aleijadinho e preparava-me para agradecer a atribuição da medalha, a que somaria umas referências ao artista, cujo pai nascera em Lisboa (dizia-se ser essa a razão do apelido), abrindo-me assim espaço para uma evocação cultural luso-brasileira. Pensei que um improviso de 7 a 10 minutos chegaria.
- Acho que pode falar aí uns 45 minutos..., disse-me o Prefeito.
Na minha profissão, aprendi a ficar facialmente impávido em face da surpresa, mas dessa vez foi-me difícil. Retorqui: “45 minutos?!”. Ângelo Oswaldo reagiu à minha interrogação com uma concessão: “Sendo o orador do ano, pode ir até uma hora...”.
Eu era o “orador do ano”! Lera mal a carta de convite!
Os religiosos já estavam a dar por terminada a sua parte na cerimónia, acomodando-se, bem como às suas saias, num longo banco ao lado do altar. Eu iria entrar em cena quase de imediato. O Prefeito tomou então a palavra. Fez o meu elogio, entregou-me a medalha e lá fiz eu, sob o silêncio sepulcral da multidão, a colocação da coroa de flores, regressando ao palanque.
E aí arranquei, sem um minuto para pensar, para uma peça oratória, de improviso, que, perante o olhar espantado da minha mulher (a quem eu tinha falado nos sete a dez minutos), durou quase uma hora.
Não me perguntem o que disse, mas aparentemente até terá corrido bem. No final, muitas palmas e um belo jantar oferecido pelo Ângelo Oswaldo no Ópera, um excelente restaurante de Ouro Preto, cidade de que, anos mais tarde, eu viria mesmo a fazer um roteiro gastronómico...
Às vezes, na vida diplomática, os discursos não preparados são os mais bem sucedidos. Aprendi à minha custa!